Foto: Flickr/ Deputado Rosemberg

Mesmo com discriminações, mulheres trans encontram acolhimento no Candomblé

Constatação é feita por babalorixá que realizou um estudo de caso com mulheres transexuais frequentadoras do Candomblé Ketu em Ribeirão Preto

 05/10/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 17/01/2023 as 10:28

Texto: Tabita Said

Arte: Ana Júlia Maciel

Embora possa reproduzir violências e discriminações sociais, o terreiro de Candomblé ainda é o lugar menos agressivo e mais acolhedor para mulheres transexuais candomblecistas. Foi o que constatou um estudo de caso defendido na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP, em 2021. A pesquisa de mestrado Mulheres Transexuais do Candomblé Ketu em Ribeirão Preto-SP: Costuras identitárias na interface com a saúde mental foi desenvolvida junto ao ORÍ – Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Saúde e Sociedade, sediado na EERP. O autor, Ronan Parreira Gaia, acompanhou e entrevistou três mulheres trans iniciadas e praticantes de terreiros de Candomblé da cidade, situada no interior do Estado de São Paulo. O estudo é pioneiro ao relacionar questões de gênero e religiosidade.

Além de investigar como mulheres transexuais do Candomblé expressam e corporificam a questão do gênero em suas práticas religiosas, o estudo também teve o objetivo de compreender se a relação delas com a religiosidade afro-brasileira poderia promover algum sofrimento psíquico. “São mulheres com histórias de vida muito distintas, que encontraram no Candomblé, também, uma fonte de resistência para encorajar outras mulheres a assumirem sua identidade de gênero”, conta Gaia. O autor explica que, apesar de demonstrarem grande devoção à religião, todas elas vivenciaram um certo tipo de exclusão. “Se não no terreiro em que foram iniciadas, em outros terreiros”, diz. Para ele, a transfobia não se restringe aos terreiros de Candomblé, mas afeta toda a sociedade, que é o cerne das práticas religiosas. “É uma responsabilidade coletiva garantir os direitos humanos da população LGBTQIA+ em todos os espaços da sociedade”, lembra o pesquisador.

Ronan Gaia - Foto: Arquivo Pessoal

Babalorixá* e frequentador do Candomblé há pelo menos 20 anos, Gaia empregou no estudo a endoperspectiva – uma visão do trabalho de campo ou do objeto de pesquisa a partir da inserção do próprio pesquisador enquanto sujeito participante. É o pesquisador que fala com conhecimento de causa; fala “de dentro”. Ao Jornal da USP, ele conta que esta condição foi o que possibilitou a aproximação e a participação das mulheres trans estudadas na pesquisa. “Foi o que garantiu que elas seriam ouvidas e compreendidas”, diz. O autor identificou outros estudos que se concentravam apenas nos pais e mães de santo do Candomblé ou apenas na Umbanda, “que é uma religião muito diferente”, pontua. “Então, pensei que era importante ouvir os dirigentes, porque muitas vezes eles são reprodutores dessas dinâmicas excludentes, mas é preciso ouvir os oprimidos nesse processo”, destaca.

Mesmo sendo do Candomblé e um homem negro, Gaia ainda hesitava em escrever sobre gênero. Mas, desde criança, uma questão o intrigava: como uma religiosidade que é marginalizada e excluída socialmente poderia criar marginalizações? “Fui criado por minha mãe e por minha avó, o que marcou de uma forma muito interessante minha vida. Porque ela me levava para o terreiro e para o carnaval, e eu via as mulheres trans no carnaval corporificarem a identidade de mulher. Mas, no terreiro, muitas vezes precisavam assumir a identidade biológica, ‘guardando’ sua identidade de gênero. Isso me causava uma série de inquietações, preocupações. Eu era criança e não conseguia entender. Respondiam que era tradição e que tradição não muda.”

O autor começou, então, a conversar informalmente com mulheres trans para “costurar” a pesquisa. Neste processo, ele encontrou seu maior estímulo, justamente, em uma mulher trans costureira. “Ela me encoraja a fazer esta pesquisa e inclusive conta que estava afastada do Candomblé por conta disso. Segundo as participantes do meu estudo, o orixá as enxerga como elas são. E elas não querem ser mulheres; elas já são mulheres”, relata. De acordo com o autor, é na prática espiritual, muitas vezes individualizada, que transexuais encontram forças para enfrentar as discriminações cotidianas.

A pesquisa considerou como mulheres transexuais todas as pessoas que nasceram biologicamente do sexo masculino mas se identificam como mulher transexual, independentemente de terem se submetido a alguma ou nenhuma alteração cirúrgica. “Para todas as participantes do meu estudo, a roupa é uma construção social que não importa, e sim a coletividade. O problema é a opressão que ela reproduz.” Mesmo assim, todas descreveram o terreiro de Candomblé como um espaço de escuta e de ampliação de família.

Travestir-se de orixá

O Candomblé é uma religião fortemente hierarquizada, em que dirigentes religiosos têm poder e condições de, inclusive, escolher as vestimentas utilizadas durante os ritos. Diferente do Iaô, que embora tenha sido iniciado, ainda não cumpriu com os rituais de obrigação, que duram sete anos, e portanto não pode escolher. “Roupa é um marcador social também de poder, no Candomblé”, explica Gaia.

A partir da revisão de literatura recente, Gaia chegou ao estudo de Kaio Lemos, que discute a questão da vestimenta no Candomblé sob a perspectiva de um homem trans. Neste estudo, Lemos questiona se é permitido ao homem trans “transitar nos espaços masculinos” na hierarquia do sistema religioso.

Levando em conta essa perspectiva, Gaia buscou identificar a relação que as mulheres trans entrevistadas em seu estudo tiveram com as vestimentas nos ritos religiosos. As três tinham idade, escolaridade e funções muito distintas no terreiro, porém duas eram iniciadas para divindades femininas: Oyá e Oxum, e a terceira para Oxalufan, uma das designações de Oxalá. Na pesquisa, elas foram identificadas pelos nomes fictícios Ayòdélé, Folàrìn e Adéolá.

Ayòdélé

Foto: Wikimedia Commons

Mulher trans autodeclarada parda e iniciada no Candomblé há 22 anos, Ayòdélé afirmou que não se importava com a roupa estabelecida pelo dirigente. “Porém, durante o processo de iniciação, ela precisou usar cueca. E isso causou seu afastamento do terreiro”, relata Gaia. Para ela, era mais importante seguir como amiga e costureira dos dirigentes da casa, do que voltar como filha de santo. “Possivelmente pelo trauma que ela sofreu no processo de iniciação, que é o renascer para essa vida religiosa e ancestral. No caso dela, causou uma ruptura.” Ainda assim, Gaia conta que ela mantinha algumas práticas, como o jogo de búzios, o recolhimento dos ebós (oferendas) e o cuidado com sua orixá. “Mas ela nunca mais vestiu uma roupa de santo para entrar na roda. Ela chegava nos Candomblés e sentava no canto”. Na dissertação, Gaia descreve o relato da mulher trans que, ao sentir que manifestaria sua orixá de cabeça, optou por se retirar do terreiro. Ayòdélé morreu há pouco mais de um mês. “É delicado, porque ela sequer teve os rituais fúnebres da religião.”

Folàrìn

Foto: Wikimedia Commons

Outro caso acompanhado pelo pesquisador é de Folàrìn, que se identifica como mulher “transformista” e que, por questões de segurança, considerava viável manter duas identidades. No trabalho, ela se veste com roupas masculinas e, para a pesquisa, se denominou “enfermeiro”. “Quando eu era criança e minha avó me levava no carnaval, era ela que eu via”, conta o pesquisador. “Ela, inclusive, assume posto de poder no Candomblé, que é o posto de Babakekerê (pai pequeno). É a segunda pessoa mais importante! Na ausência do Babalorixá, é ela quem responde pelo terreiro”. Segundo Folàrìn, o dirigente do terreiro que frequenta nunca a impediu de assumir sua identidade feminina, que é expressada em todos os outros espaços. Sua escolha estaria relacionada a uma “questão de proteção”. Por sua altura, estrutura corporal e pele retinta, ela considera não estar nos padrões socialmente aceitos como femininos.

Adéolá

Foto: Wikimedia Commons

Ialorixá* e iniciada no Candomblé há 16 anos, Adéolá relatou que sua transição foi bem aceita tanto por sua família, quanto no âmbito religioso. Atualmente, ela passa por processo de hormonioterapia e afirmou ao pesquisador que o gênero do orixá deveria ser soberano a qualquer ferramenta de exclusão. “Os itans já resolveram esse problema, mas aqui no Brasil o machismo ancora e adentra os Candomblés”, disse em entrevista para a pesquisa. Gaia explica que os itans são mitos africanos responsáveis por salvaguardar as histórias de cada divindade. Na pesquisa, Adéolá relembrou um itan sobre o orixá Logun-Edé, que precisou se travestir “para Oxum escondê-lo dentro do mundo do pai dela, Olokun, para ele não ser descoberto”. Adéolá reforçou que o respeito aos direitos consolidados pela população trans deveriam estar em todos os terreiros, sobretudo pelo caráter inclusivo do Candomblé para com as populações marginalizadas. Exercendo um cargo de dirigente religiosa, ela contou que já iniciou outras mulheres trans e as deixou usarem saia. “O espírito delas é assim, elas devem ser respeitadas, porque o orixá é muito além disso.”

Estando próximas ou distantes da prática religiosa, todas elas responderam ao pesquisador que o Candomblé representa tudo em suas vidas. Embora uma delas tenha se afastado da família no processo de corporificar a identidade de gênero, todas elas tinham algum grau de apoio.

Ao “devolver” os resultados da pesquisa para as mulheres trans entrevistadas, Gaia percebeu a importância do processo para elas. De acordo com o pesquisador, a Iaô, que estava afastada do terreiro, concluiu que estendia a obrigação de se vestir como homem entre os ambientes familiar e religioso. “O retorno delas foi importante para mim, porque não sou uma mulher trans, mas sou um babalorixá”, diz Gaia.

Sem referencial

Na Tenda dos Milagres, ladeira do Tabuão, 60, fica a reitoria dessa universidade popular. Lá está mestre Lídio Corró riscando milagres, movendo sombras mágicas, cavando tosca gravura na madeira; lá se encontra Pedro Archanjo, o reitor, quem sabe? Curvados sobre velhos tipos gastos e caprichosa impressora, na oficina arcaica e paupérrima, compõem e imprimem um livro sobre o viver baiano.
Jorge Amado

Assim como na descrição de Jorge Amado, em Tenda dos Milagres, Gaia se sensibilizou para as particularidades da religião e das mulheres de sua pesquisa, evitando encaixá-las em uma bibliografia acadêmica eurocêntrica. Para fundamentar o estudo, o pesquisador encontrou um referencial teórico mais apropriado do outro lado do Atlântico, por meio dos estudos da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Boa parte das obras precisou ser traduzida pelo próprio pesquisador. “É uma autora que tem ganho destaque nas pesquisas sobre gênero, mas ainda pouco destaque nas pesquisas sobre gênero nas religiões afro-brasileiras”, diz. Ele conta que recebeu diversas indicações para que relacionasse o tema com a obra da filósofa estadunidense Judith Butler. “Mas, não fazia sentido usar [esta autora] para falar de três mulheres negras em uma religião afro-brasileira”, aponta.

Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí - Foto: Wikimedia

Partindo da perspectiva africana, o pesquisador buscou compreender os papéis de gênero na contribuição de Oyěwùmí sobre o que se entende por homem e mulher nas sociedades africanas anteriores à invasão europeia. De acordo com Oyěwùmí, o determinismo biológico do qual parte o Ocidente para categorizar seus papéis sociais de gênero não se aplica aos iorubás, para quem as diferenças e hierarquias sociais não são construídas sobre uma lógica cultural pautada na biologia. Pelo contrário: a legitimidade das relações sociais deriva dos fatos sociais, e não físicos. Na obra A Invenção das Mulheres, Oyěwùmí afirma que, no Ocidente, as explicações biológicas parecem ter prioridade sobre outras alternativas de explicação para marcadores sociais, e que a diferença é vista como “degeneração”.

Na pesquisa, Gaia aponta que os iorubás carregam um teor mais holístico na construção de sua cosmogonia, fenômeno que a socióloga nigeriana chama de “cosmossensação”. Sua contribuição aponta que, no continente africano, o princípio de organização social é fundamentado pela senioridade.

Função social

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Para o mestrado, Gaia tinha planos de realizar uma etnografia dos terreiros, após identificar e contatar pelo menos 12 pessoas transgênero em sua cidade iniciadas na religião. Com a pandemia, a pesquisa se transformou em um estudo de caso com as três mulheres trans que representam um trânsito das próprias casas de Candomblé em Ribeirão Preto. “Uma grande dificuldade que encontrei e se tornou o problema central do meu doutorado é resgatar esse aspecto histórico”, diz o pesquisador que agora cursa o doutorado.

Segundo o pesquisador, ser assumidamente candomblecista e transexual é uma dupla reafirmação identitária, afrontando todo um sistema que busca silenciar e desigualar aqueles tidos como fora dos padrões socialmente hierarquizados. “É ser um outro duas vezes”, afirma. “Encarar esse sistema racista, violento, transfóbico e misógino tende a gerar perturbação mental àqueles que optam por resistir, valorizando e reafirmando suas identidades marginalizadas, violadas e atribuídas à indignidade”, ressalta.

“A minha luta é no combate ao racismo, ao machismo, porque é o que eu passo cotidianamente. A partir do momento que eu estou a caminho da escola, aqui no trabalho, eu posso ser confundido com alguém que tenha atitude suspeita. Então, que tenhamos coragem! E que utilizemos nosso diploma não apenas pela titulação, mas no combate às desigualdades”, afirma.

*Babalorixá – [Bàbálórìṣà] comumente conhecido como pai de santo, dirigente religioso de determinado terreiro, responsável pelas iniciações, obrigações, pela matrigestão e demais procedimentos religiosos internos e externos.

Ialorixá – [Ìyálórìṣà] comumente conhecida como mãe de santo, dirigente religiosa de determinado terreiro, responsável pelas iniciações, obrigações, pela matrigestão e demais procedimentos religiosos internos e externos.


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