De marco temporal a conflitos do passado, rap indígena combate apagamento cultural

Músicas denunciam opressões centenárias aos povos originários por meio de um movimento que completa 50 anos em 2023, o hip hop; pesquisador branco e músico indígena contam experiência conjunta que levou ao nascimento do grupo Oz Guarani

 02/06/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 19/06/2023 as 6:57

Texto: Tabita Said
Arte: Carolina Borin Garcia

Grupo "Oz Guarani" produz músicas que denunciam opressões históricas contra os povos originários - Foto: Reprodução/Facebook

Unindo uma manifestação artística recente e uma cultura ancestral, o rap indígena é um fenômeno que vem crescendo nas plataformas de streaming e adentrando o universo acadêmico. Um artigo recentemente publicado por pesquisadores da USP descreve a relação que criaram com três jovens indígenas, da etnia Guarani Mbyá, nos primeiros passos para a formação do grupo de rap Oz Guarani. A publicação destaca o processo criativo do grupo como um ato de resistência para a sobrevivência de sua cultura, e define sua performance como um “ativismo artístico”. 

De acordo com Kleber Nigro, doutorando do Instituto de Psicologia (IP) da USP e autor do artigo, o pequeno repertório do Oz Guarani é composto de canções anticoloniais focadas nos 520 anos de conflito entre os guaranis e os invasores não indígenas de suas terras, “em cujas letras também manifestam sua distinta cultura milenar”. 

A aproximação de Kleber com os integrantes do grupo de rap indígena – sob supervisão de seu orientador, também indígena, Danilo Guimarães -, se deu no contexto de criação e consolidação da Rede de Atenção à Pessoa Indígena, do IP, diante da experiência artística prévia de Kleber. DJ experiente, ele também estudou, durante o mestrado, o Teatro jaguarizado contra a colonização do pensamento

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Kleber Nigro trabalhou com o grupo Oz Guarani em sua primeira formação - Foto: Arquivo Pessoal

Ao Jornal da USP, Kleber conta que se juntou a Jefersom Xondaro, Vlad Macena e Mano Glowers no ano de 2014, quando os jovens apresentaram a ele a canção Conflitos do Passado. “Jefinho abriu o celular, soltou uma batida e começou a cantar… No primeiro verso, a arte escancarou conflitos colonialistas, de dominação, imperialistas, que de repente nem são só dele”, conta o pesquisador. Ele explica que desde que passou a frequentar a Terra Indígena Jaraguá, zona noroeste da capital paulista, aprendeu sobre coletividade. “É uma cultura coletiva, todos compartilham seus pensamentos com as lideranças e há um grande respeito pelos mais velhos”, diz.  

Kleber identificou, no modo de vida guarani e nas composições dos jovens rappers indígenas, argumentos que a literatura acadêmica descreve com certo distanciamento observador. Parte da rotina com o grupo consistia em reuniões de horas para trocarem músicas, letras, batidas e canções. 

Neste registro, o pesquisador gravou uma dessas reuniões em sua casa, em 2015, com participação de Kunumi MC Owerá - Vídeo: Reprodução/YouTube

Em 2017, gravam Conflitos do Passado, a primeira canção que fez o grupo despontar no cenário musical - Vídeo: Reprodução/YouTube

Um dos integrantes do início do grupo é Mirindju Glowers. Ele saiu do Oz Guarani e segue em carreira solo, além de produtor e descobridor de novos talentos do rap indígena, entre eles o grupo Mbya Mc’s. Mano Glowers conta que o grupo está em fase de gravação do single Nosso Poder 2, continuação da música composta por ele e lançada pelo grupo há cerca de seis meses. 

Glowers relata que o rap indígena guarani se caracteriza por ser uma música bilíngue e de integração de seu povo. “O Oz Guarani surgiu durante uma reintegração de posse aqui no território. Para bater de frente com isso, os dois jovens aqui do Jaraguá, o Jefersom e o Vlad, fundaram esse grupo e depois de um ano eu fui acolhido. Fiz composições, somei, para falar do cotidiano real do que a gente passa aqui na aldeia. É uma luta constante, não só para nós, mas em outras etnias”, conta. 

Mano Glowers vive na Terra Indígena Jaraguá apoiando outros jovens indígenas rappers - Foto: Arquivo Pessoal

Single Nosso Poder, que vai ganhar uma continuação, Nosso Poder 2. O segundo single está em fase de gravação - Vídeo: Reprodução/YouTube

O músico indígena destaca que a opressão de anos está presente neste momento na vida das aldeias que ocupam a menor terra indígena do Brasil, com 1,7 hectare. Outros 532 hectares de terra declarada ainda aguardam homologação federal. Ele descreve o PL 490, que regula o marco temporal, como uma pressão de deputados conservadores. “Para nós, essas situações não são novidade, porque vivemos de luta. O clima aqui está pesado, muito tenso, porque foram homologados apenas seis territórios, quando deveriam ter sido 250. Ainda há muita injustiça, mas enquanto estivermos aqui, vamos incentivar as gerações que estão vindo. Para os jovens, adquirir conhecimento dos não indígenas é importante, para falar em defesa do nosso povo”, diz.

O Projeto de Lei do Marco Temporal foi aprovado na última terça-feira, 30, em sessão na Câmara dos Deputados, determinando que apenas sejam demarcadas as terras ocupadas pelos povos originários até a promulgação da Constituição Federal de 1988. O PL 490 foi votado com urgência antes de seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em mais uma vitória da bancada ruralista. O Supremo deverá votar uma ação sobre o tema na próxima quarta-feira, 7. Contestando a decisão, guaranis da Terra Indígena Jaraguá bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes e foram duramente reprimidos pela Polícia Militar de São Paulo. Lideranças pedem que o marco temporal seja derrubado, alegando o direito originário de ocupar terras ancestrais. 

O projeto chegou ao Senado federal e deve seguir a tramitação regimental dentro da Casa, sem o caráter de urgência. De acordo com a Agência Senado, durante a tramitação da matéria na Câmara, outros itens foram acrescentados ao PL 490, como: a permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas; a proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas; a adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras; e a nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.

No último dia 30, indígenas da Terra Guarani Jaraguá organizaram um ato na Rodovia dos Bandeirantes contestando a aprovação do projeto de lei que pode inviabilizar as demarcações de Terras Indígenas e abrir áreas já demarcadas para exploração e empreendimentos - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

50 anos de hip hop

O dia 11 de agosto de 1973 marca o nascimento do hip hop. Há quase 50 anos, uma festa organizada pelo DJ jamaicano Clive Campbell – conhecido como Kool Herc – e sua irmã, Cindy, no bairro do Bronx, teve como intenção arrecadar fundos para a volta às aulas. Em sua Back to School Jam, Herc isolou a batida da bateria em discos de hard funk, surgindo assim o breakbeat, música base do hip hop. Neste contexto, surgem as bases fundamentais do movimento, entre elas a dança break e o rap. No ano passado, o Senado dos EUA reconheceu a data como Dia Nacional de Celebração ao Hip Hop, tornando-a feriado nacional.

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“Eles queriam romper com essa cultura disco, muito disseminada em Nova York. Mas esse cara [Herc] começa a tocar soul e funk, especialmente James Brown”, afirma Kleber. O pesquisador lembra que, no Brasil, o movimento floresceu no início dos anos 1980, essencialmente como uma cultura de rua, ligada aos afrodescendentes e às populações pobres. “Uma arma contra a invisibilidade, uma poderosa ferramenta de expressão e transformação”, explica. 

A partir da pesquisa da literatura, seu trabalho identifica a relação da música com os territórios de origem. “Um dos motes do rap para a população afrodiaspórica é resgatar o orgulho em ser o que se é; ser negro, na própria etnia. Os indígenas não precisam resgatar isso, pois estavam e permanecem aqui, há mais de dois mil anos”, pondera. 

Apesar das diferenças, Mano Glowers diz que se identificou com o movimento. “Em 2014 eu tive essa conexão com o rap, ainda mais enquanto indígena de uma grande cidade como São Paulo. No meu ponto de vista isso é ativismo, por fazer parte da luta do povo”, diz. 

Para Kleber, esta é uma “intersecção maluca”, de um movimento muito recente, ainda em ebulição, com uma cultura de dois mil anos de relação com o território, com o ambiente e com a natureza. “A forma que eles encontraram de combater o apagamento foi fortalecendo a cultura”, afirma.

Criatividade como resistência

O artigo Criatividade como resistência para sobrevivência: o anticolonial grupo de Rap indígena “Oz Guarani” é um dos capítulos do livro A Dialogical Approach to Creativity, publicado pela Palgrave Studies in Creativity and Culture, do grupo Springer Nature. O livro investiga a criatividade como um fenômeno sociocultural e a cultura como um processo transformador e dinâmico.

No artigo, Kleber aprofunda a ideia previamente exposta em seu mestrado de “alteridade canibal”, tido como um violento sistema de forças para uniformização cultural. O autor argumenta que o conceito pode configurar uma ferramenta para a psicologia, permitindo identificar processos nocivos e indicar caminhos para experiências de vida com maior dignidade e liberdade. 

O pesquisador destaca a atuação de seu orientador, um dos mais jovens livres-docentes da USP, e grande catalisador de outros pesquisadores indígenas na Universidade, como Julieta Paredes Carvajal, do povo Aymara, da Bolívia, e Tácio Sales Carvalho, de origem Pataxó. Atualmente, ele procura desenvolver estudos acerca de uma psicologia indígena, baseada na escuta das ideias dos povos originários sobre a relação com os colonizadores. Danilo Guimarães coordena o serviço Rede de Atenção à Pessoa Indígena da USP desde 2015.  

Um dos conceitos propostos pelo orientador de Kleber é o da “apreensão afetiva da experiência”. Ela é o que estabelece a possibilidade de entendimento mútuo em um campo intersubjetivo, como a arte.


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