Avaliações sobre acessibilidade de aplicativos são escassas, mas suficientes para revelar falhas graves

Estudo revelou que apenas 0,003% das avaliações recebidas pelos aplicativos mencionam aspectos de acessibilidade e estão associadas a alguma deficiência visual ou condição ocular; artigo recebeu menção honrosa na mais importante conferência humano-computador do mundo

 01/06/2023 - Publicado há 11 meses

Texto: Danilo Queiroz
Arte: Carolina Borin Garcia

Pesquisa da USP aponta a dificuldade na acessibilidade nos mais diferentes aplicativos disponíveis - Arte Jornal da USP com imagens Freepik e Flaticon

Audiodescrição da reportagem "Avaliações sobre acessibilidade de aplicativos são escassas, mas suficientes para revelar falhas graves", de Danilo Queiroz para o Jornal da USP

No mínimo, as tecnologias deveriam ser desenvolvidas para atender às necessidades de todas as pessoas, sem distinção alguma. No entanto, o Grupo de Pesquisa em Acessibilidade Digital, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, concluiu que, apesar do escasso número de avaliações dos usuários com deficiência visual ou condições oculares – fotofobia, daltonismo, baixa visão – em aplicativos, os feedbacks são suficientes para revelar falhas graves nas usabilidades dos aplicativos. Geralmente, as avaliações são utilizadas para aprimorar o refino das interfaces, ou para que os desenvolvedores projetem um novo software. 

“As avaliações não são suficientes numericamente. Imagina só, você tem um aplicativo com um bilhão de downloads. Mas, só há 300 pessoas questionando sobre acessibilidade. Por mais que deem feedbacks, as empresas responsáveis por essas tecnologias não priorizarão adotar novas posturas”, explica Marcelo Eler, coordenador da pesquisa e professor da EACH. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 36 milhões de pessoas no mundo são cegas e outras 217 milhões têm baixa visão. No Brasil, a ausência de dados atualizados por meio do Censo prejudica estimar atualmente dados mais precisos.

Marcelo Eler - Foto: Arquivo Pessoal

Marcelo Eler - Foto: Arquivo Pessoal

O estudo é resultado das pesquisas de doutorado de Alberto de Oliveira e Paulo dos Santos, do Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Informação (PPgSI) da EACH, sob a orientação de Marcelo. Além disso, a pesquisa teve a colaboração de Wilson Júnior e Danilo Eler, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Wajdi Aljedaani, da Universidade do Norte do Texas (UNT), nos Estados Unidos. Eles observam que é “preciso que o mecanismo de avaliações seja explorado para deixar evidente às empresas que os problemas de usabilidade existem, importam e têm consequências sérias.”

No artigo Analyzing Accessibility Reviews Associated with Visual Disabilities or Eye Conditions o grupo apresenta, de forma inédita, a avaliação de mais de 180 milhões de usuários que utilizaram os 340 aplicativos mais baixados – compostos dos dez aplicativos mais populares dentre 34 categorias, como entretenimento, livros e jogos – da Google Play, ou Play Store, como popularmente é mais conhecida a loja de aplicativos do sistema Android. Os resultados evidenciaram que apenas 0,003% mencionam deficiência visual ou condições associadas nas avaliações. 

Além disso, comentários positivos, como possibilidade de leitura de tela, são geralmente associados a pontuações altas e feedback negativos, como impossibilidade de configuração do tamanho da fonte, com pontuações mais baixas. No total, 936 das críticas (18,7%) foram positivas e 4.063 críticas (81,3%) foram negativas. Apenas 228 dos 340 aplicativos analisados têm pelo menos uma revisão de acessibilidade. O Facebook foi o app mais criticado por oferecer poucos recursos acessíveis, seguido do Gmail e Instagram. Já a versão You Version Bible, da Bíblia, foi a mais bem avaliada por oferecer audiodescrição, possibilidade de configurar tamanho da fonte e alteração de cor. 

“Para as pessoas sem deficiência, alguns desses comentários avaliando positivamente, solicitando melhorias, ou expondo alguma reclamação, podem parecer um detalhe ou uma frescura. E não é! A ausência de interfaces acessíveis impede as pessoas de serem autônomas, pois precisarão de alguém para auxiliá-las, como, por exemplo, num pedido de entrega de alimentos”, explica Marcelo ao mencionar a necessidade de evidências empíricas para romper com esses preconceitos ou atitudes capacitistas, ou seja, discriminação às pessoas com alguma deficiência. 

 

Por se tratar de uma ciência aplicável, o professor também comenta que a pergunta norteadora da pesquisa foi: “o que os usuários estão avaliando nos apps em relação à acessibilidade?”. “Melhor, ao invés de olhar só para qualquer aspecto de acessibilidade, o que as pessoas com deficiência visual e condições associadas estão comentando”, completa ele.

O risco da ausência das avaliações pode promover uma falsa impressão de que determinadas empresas são acessíveis, mas não são, segundo Marcelo Eler. “A escassez da atualização das revisões realizadas pelas plataformas é uma violação de direitos. Existem códigos, normas e leis que asseguram o direito à acessibilidade”, afirma. “O silêncio do usuário não é indicativo de felicidade ou satisfação”, acrescenta ele.

Etapas do estudo

O estudo também teve como objetivo fornecer quais as deficiências ou condições mais relatadas pelos usuários com dificuldade de uso dos apps e as principais barreiras encaminhadas nas avaliações. Para isso, a coleta dos dados foi dividida em quatro etapas, a fim de chegar a uma conclusão mais precisa.

Primeiramente, realizou-se uma revisão dos 180 milhões de avaliações disponibilizadas na Play Store dos 340 aplicativos mais baixados. Em seguida, o grupo filtrou essa grande massa de dados por meio de um sistema automático, que selecionou 403 palavras-chaves e expressões informais, e até mesmo pejorativas. Algumas dessas palavras em tradução livre são: cegueira, olhos fracos e fotofobia, ou seja, sensibilidade à luz. Os termos técnicos e médicos utilizados foram extraídos de glossários médicos, produzidos por organizações internacionais de saúde.

Etapas do estudo. Divulgado no artigo Analyzing Accessibility Reviews Associated with Visual Disabilities or Eye Conditions - Infográfico: Carolina Borin Garcia - Imagens: Flaticon

Depois, na terceira etapa, foi preciso inspecionar os termos e expressões manualmente, pois poderiam resultar em falsos positivos, ou seja, que não possuem associação relacionada às condições oculares ou deficiências, nem com acessibilidade. Por exemplo, “ah, esse desenvolvedor deve estar ‘cego’ [termo capacitista] porque essa funcionalidade aqui ninguém usa.” Para isso, foram definidos critérios de inclusão e exclusão nas avaliações. A amostra final se deu em 4.999 comentários. 

Por fim, os feedbacks foram agrupados em condições, conforme apresentam os glossários médicos internacionais. O grupo, por exemplo, associou “visão perto” e “visão curta” à miopia. Houve dois casos em que os pesquisadores se basearam em suas próprias interpretações: “deficiência visual”, quando nenhuma condição é nomeada nas avaliações, apesar de serem mencionadas tecnologias assistivas comumente utilizadas por pessoas com deficiência visual. E, “possivelmente fotofobia”, quando usuários reclamam que um fundo branco “os cega” à noite, mas nada precisamente também é mencionado sobre uma condição específica.

Problemas relatados

Apesar do avassalador desenvolvimento dos softwares nos dias de hoje, o pesquisador relata que o foco das empresas de tecnologias não se baseia no desenvolvimento social. Com algumas exceções, tudo é projetado em torno do lucro e da competitividade. E, para isso, infelizmente, acabam estabelecendo interfaces a um público sem deficiência – , que desrespeitam as pessoas que necessitam de ícones mais acessíveis para garantir o uso. 

“Incorporar acessibilidade demora. Por isso muitas das versões iniciais dos apps não se preocupam com essa questão. Eu tenho a percepção de que as organizações que mais investem em tecnologias acessíveis são os bancos. Neste caso, além de promover  inclusão digital e seguir a legislação, entendem bem que um ambiente inclusivo definitivamente atrai mais clientes!”, critica ele.

No estudo, dentre as 4.999 avaliações dos usuários, os pesquisadores concluíram a presença de 36 tipos de deficiência ou condições associadas a problemas oculares: deficiência visual (2.207), cegueira (823) e fadiga ocular (559). Somado a isso, eles apresentaram também que os feedbacks detalham condições físicas, deixando evidente que não são questões de preferência, mas barreiras digitais, que os impedem de utilizar plenamente determinadas funções. 

A mudança na postura das empresas de tecnologias não pode ser reflexo de uma atitude pessoal de um programador ou designer, segundo Marcelo.  “A acessibilidade não pode ser pensada como motivação pessoal de pessoas que entendem de acessibilidade. Ao contrário, deve ser uma política executiva, ou melhor, coletiva!”, aconselha, ao relatar o trabalho colaborativo dos usuários com ou sem deficiência.

As avaliações continham comentários relacionados a pontos positivos de acessibilidade, como permissão para utilizar o recurso de leitura de tela,  melhorias, como indicação da incrementação de determinada função, ou problemas, que impediam severamente a autonomia dessas pessoas no uso dos apps, como a impossibilidade de aumentar o tamanho da fonte utilizada.

Para cada aplicativo, as barreiras encontradas são específicas. Por exemplo, usuários com daltonismo possuem severas dificuldades de utilizarem o Google Maps, que utiliza cores atribuindo significados, como o uso de vermelho para indicar trânsito. No caso das pessoas com fotofobia e fadiga ocular, os resultados indicaram que o Facebook, Kindle, YouTube, WhatsApp, Messenger e Gmail, redes em que se gasta mais tempo utilizando, as avaliações foram mais negativas em virtude da ausência de modo escuro – mais confortável aos olhos – e excesso de luz branca na tela.

Resultados

Número de avaliações de acessibilidade das 20 deficiências/condições nos olhos mais mencionadas na amostra da pesquisa

Amostrasavaliações
DEBILIDADES/CONDIÇÕESAPLICATIVOSPOSITIVASNEGATIVASTOTAL
Fotoceratite2044
Retinopatia diabética4415
Olho seco7549
Glaucoma105813
Degeneração macular108513
Miopia1721921
Olhos fracos1772128
Astigmatismo2122830
Catarata17151631
Cegueira parcial24192544
Visão parcial50226385
Presbiopia (olhos velhos)482977106
Cegueira legal535174125
Daltonismo529125134
Baixa visão8138173211
Possivelmente Fotofobia6914317335
Fadiga ocular9676483559
Cegueira 138208615823
Deficiência visual 18643017772207

Mapa de calor com número de avaliações associadas a uma condição/disfunção visual específica e aplicativo

Componentes de interface mais comentados pelos usuários com deficiência visual ou condições oculares

componente/recursoavaliações
EMOJI25
MEDIA32
BARRA8
LINK44
LISTA45
NOTIFICAÇÃO53
LAYOUT57
ÍCONE60
MENU64
MAPA67
CAPTURA DE TELA81
RÓTULOS105
ÁUDIO119
VÍDEO146
IMAGEM154
BOTÕES229
PLANO DE FUNDO271
COR302
FONTE373
TEXTO388

Mudança de postura

Ainda falta muito para que as empresas adotem uma postura anticapacitista. Não basta que as grandes empresas de tecnologias, ou como são mais conhecidas as Big Techs, proporcionem uma melhor experiência ao usuário. Segundo Eler, a acessibilidade deve ser garantida por direito e uma atitude que deve ser exigida por todas as pessoas. “Será que se todo mundo reclamasse dos problemas de acessibilidade não causaria uma maior pressão, e as interfaces começariam a ser repensadas?”, provoca ele.

O pesquisador também comenta que é papel das universidades desenvolver esse pensamento também, através de um ensino pautado não apenas pela lógica da técnica, mas também da aplicabilidade e do público que vai usufruir dessas ferramentas. “Acredito que muito dessa mudança de postura, dita universal, partirá das universidades. Aos meus alunos eu ensino interação humano-computador, e a proposta é também formar profissionais que aos poucos transformem seus ambientes de trabalho, estabelecendo uma cultura ainda mais inclusiva”, confessa.

Apesar do artigo não se concentrar nos motivos que levam esses usuários a não avaliarem os serviços dos apps, atualmente o grupo de pesquisa tem realizado estudos a respeito disso – talvez, mecanismo de avaliação não acessível ou falta de motivação, pois podem acreditar que não serão atendidos. Eles também avaliam como isso possui até implicações físicas e emocionais, uma vez que a falta de acessibilidade pode deixar o indivíduo irritado e possivelmente com dor de cabeça. Ou até mesmo evidenciar questões de ordem social, pois determinados apps são somente acessíveis no sistema IOS, da Apple, sendo o Iphone um modelo mais caro financeiramente. Além disso, também estão mapeando como as empresas têm recebido esses feedbacks e como reagem após receberem tais comentários.

 

#PraCegoVer

Alguns movimentos têm surgido, com o intuito de promover um ambiente digital cada vez mais inclusivo. No Instagram, por exemplo, o #PraCegoVer foi um recurso desenvolvido para que pessoas com deficiência visual ou problemas oculares pudessem acessar a rede, sem prejuízo algum. A hashtag alerta para que os conteúdos produzidos pelos usuários descrevam imagens publicadas ou audiodescrição por meio de uma breve descrição alternativa.

Isso ocorre por meio da leitura de tela, tecnologia assistiva, que acompanha as configurações dos smartphones, mas pode ser impedida de ser utilizada em alguns aplicativos. Para ativar essa função, basta ir na configuração do seu celular. Clicar em acessibilidade, acionar serviços instalados e permitir o uso do Talkback – após instalado pela Play Store -, no caso do Android. Em seguida, é preciso que o usuário permita que o recurso seja aceito pelo sistema operacional. Basicamente, no caso, o leitor de tela captura a hashtag e descreve para o usuário o que está presente ali.

Reconhecimento internacional

O artigo, que teve financiamento da Capes e da Fapesp, foi publicado na maior conferência internacional humano-computador do mundo, a ACM CHI Conference on Human Factors in Computing Systems, que aconteceu na cidade de Hamburgo, Alemanha, entre os dias 23 e 28 de abril deste ano.

O grupo recebeu menção honrosa na Trilha de Acessibilidade, dentre os mais de 3.000 participantes presencialmente, e 800 virtualmente. Em seguida, eles reuniram os premiados numa revista especializada. O evento exigia que todos os artigos fossem desenvolvidos em modelo de PDF acessível, com legendas descritivas, caso estivessem presentes gráficos e tabelas.

Para além desse reconhecimento, Marcelo Eler admite que o objetivo do grupo é também desenvolver um guia interativo acessível. “Caso desenvolva um elemento não textual, você deve incluir um código que permita a leitura de tela”, exemplifica ele. Atualmente, o grupo de pesquisa tem traduzido o material para o português para que possam difundir o artigo no Brasil.

Saiba mais: marceloeler@usp.br, com Marcelo Eler


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