USP Filarmônica apresenta a “pretitude da música brasileira”

Neste sábado, dia 1º, a orquestra faz o concerto de abertura do Festival de Inverno de Campos do Jordão com obras recuperadas de artistas pretos e pardos dos séculos 18 e 19

 29/06/2023 - Publicado há 10 meses

Texto: Rebeca Fonseca
Arte: Carolina Borin Garcia

A USP Filarmônica é uma orquestra ligada ao Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP - Foto: Vinícius Barros/Arquivo USP Filarmônica

“Os maiores compositores brasileiros dos séculos 18 e 19 eram, sem exceção, ex-escravizados ou filhos deles”, defende o professor Rubens Russomano Ricciardi, maestro e regente titular da USP Filarmônica, orquestra ligada ao Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. São obras de alguns desses compositores – autores pretos e pardos do período colonial brasileiro e do Romantismo musical – que a USP Filarmônica vai apresentar na abertura do Festival de Inverno de Campos de Jordão, neste sábado, dia 1º de julho, às 16 horas, acompanhada pelo Coro Acadêmico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). No dia seguinte, 2 de julho, às 11 horas, a mesma apresentação será feita na Sala São Paulo. “A história da música brasileira é impensável sem eles. Eles foram protagonistas nas linguagens as mais experimentais e inventivas naqueles tempos”, afirma o maestro. 

O repertório dos concertos inclui obras de Manuel Dias de Oliveira, Lereno Selinuntino, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, José Maurício Nunes Garcia, João de Deus de Castro Lobo, José Maria Xavier, Antônio Carlos Gomes, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha, além de autores anônimos. 

Ricciardi defende que definir a arte a partir da branquitude apaga a atuação de pessoas pretas e pardas. “Com esse preconceito contra as artes, ignora-se toda uma rica produção dos nossos artistas pretos e pardos. Muitos deles conquistaram a sua liberdade por conta da música”, destaca o maestro. “Eles fundaram de fato a nossa história e teriam inaugurado o que permaneceria caso fosse lembrados. Foram grandes mestres, reconhecidos em seu tempo. Pena que estão quase todos esquecidos hoje”, analisa.

Rubens Russomano Ricciardi - Foto: IEA/USP

O professor Rubens Russomano Ricciardi, maestro e regente titular da USP Filarmônica - Foto: IEA/USP

“Os concertos serão uma excelente oportunidade de divulgar a pretitude na música brasileira desde a segunda metade do século 18”, destaca o maestro.

Ainda segundo Ricciardi, há um desconhecimento da história da música brasileira. Ele lembra que os principais artistas do País, desde os tempos coloniais, vieram das camadas oprimidas da sociedade. “A arte brasileira da mais alta qualidade não se voltava às elites nem se encontrava atrasada em relação a outros países. Além disso, elementos de brasilidades são evidentes desde o século 18”, diz.

 

O maestro argumenta que a leitura modernista e acadêmica do século 20 prejudicou a recepção tardia desses compositores. “Os teóricos, em especial das letras, quando muito convencionaram que aqueles cantos tinham pouca força literária ou musical. Mas até os tempos da República Velha aqueles artistas, que atuavam nos mais diversos gêneros musicais, eram bem mais reconhecidos.”

Ricciardi cita como exemplo o poeta, tradutor, libretista, violeiro e cancionista Domingos Caldas Barbosa, conhecido pelo pseudônimo de Lereno Selinuntino, que no final do século 18 foi o precursor da canção popular e do Romantismo no Brasil.

Outro exemplo é Manuel Dias de Oliveira, compositor de motetos devocionais populares não litúrgicos em vernáculo, então mais populares do que as poesias árcades.

As composições foram recuperadas por pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance em Música (NAP-Cipem) do Departamento de Música da FFCLRP.

O trabalho do grupo de pesquisa consistiu na recuperação de manuscritos encontrados em diferentes arquivos. Os pesquisadores buscaram documentos no Museu da Inconfidência e na Casa do Pilar, em Ouro Preto (MG), na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (RJ), no Centro de Ciências, Letras e Artes, de Campinas (SP), no Museu da Música, em Mariana (MG), e outros acervos em Portugal e na Espanha.

 

O compositor Domingos Caldas Barbosa, filho de uma escravizada angolana, foi formado pelos jesuítas no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro - Imagem: Domínio público / Wikimedia Commons

Cada manuscrito possui um diferente estado de conservação. Por isso, as metodologias de restauro foram variadas. Uma das obras recuperadas do compositor Manuel Dias de Oliveira, o moteto Eu Vos Adoro, por exemplo, foi redigida à mão por ele mesmo, o que permite reconstituir a intenção do autor com mais segurança.

 

Já os autógrafos dos motetos Encomendação de Almas e Amante Supremo, também de Manuel Dias de Oliveira, se perderam, restando apenas cópias tardias. Nesse caso, os pesquisadores do NAP-Cipem realizaram uma edição crítica das obras. “É preciso desenvolver uma boa interpretação dessas cópias manuscritas, ou seja, faz-se necessária uma leitura ainda mais atenta enquanto exegese hermenêutica. As fontes tardias e contraditórias não viabilizam todas as respostas”, detalha Ricciardi.

 

"Encomendação de Almas e Manto Supremo", de Manoel Dias de Oliveira - Foto: Reprodução/YouTube

Encomendação de Almas e Manto Supremo, de Manoel Dias de Oliveira - Foto: Reprodução/YouTube

As sonoridades orais também podem ser reconstituídas, em especial a percussão, que raramente era anotada nos manuscritos do período. A pesquisa inclui ainda a realização de acompanhamentos. “Em outros casos, para que possamos incorporar a obra à sala sinfônica de concertos, temos que escrever até mesmo novos arranjos. Foi o que aconteceu com Carinhoso, a famosa polca vagarosa de Pixinguinha, Yara, uma chotiça de Anacleto de Medeiros, e ainda a modinha Moreninha, de autor anônimo.” Nesses três casos, Ricciardi atuou como arranjador e orquestrador.

Pixinguinha - Foto: Reprodução/Wikipedia

A temporada de 2023 da USP Filarmônica foi aberta em abril com esse repertório de compositores pretos e pardos dos séculos 18 e 19, mas os concertos de julho trazem novidades. As composições de Manoel Dias de Oliveira nunca foram tocadas e, neste sábado, dia 1º, na abertura do Festival de Inverno de Campos do Jordão, a orquestra e o Coro Acadêmico da Osesp as apresentam pela primeira vez. Para Ricciardi, os concertos e a pesquisa são formas de recuperação da memória e da ancestralidade musical através do repertório. “Minha missão é trazer para o som o que estava em silêncio”, diz.

A USP Filarmônica é composta por alunos do curso de Música da USP em Ribeirão Preto. Além da pesquisa, é um projeto de ensino que trabalha com inovação nos palcos. “Somos um laboratório da poíesis (composição) e da práxis (interpretação-execução)”, relata Ricciardi.

No dia 1º de julho, sábado, às 16 horas, a USP Filarmônica abre o Festival de Inverno de Campos do Jordão, no Parque Capivari (Rua Engenheiro Diogo José de Carvalho, 1.291, Capivari, Campos do Jordão). Entrada gratuita. Sem necessidade de retirada prévia de ingressos. Detalhes da programação podem ser encontrados no site do festival.

No dia 2 de julho, domingo, às 11 horas, a USP Filarmônica se apresenta na Sala São Paulo (Praça Júlio Prestes, 16, Campos Elíseos, São Paulo). Entrada gratuita. Os ingressos podem ser retirados pela internet ou nos totens localizados no piso térreo da Sala São Paulo. Mais informações no site da Sala São Paulo.


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