Blog
Tese discute ensino de artes sob ótica de Paulo Freire
Pesquisa analisou gestão do educador na Secretaria Municipal de Educação e atualidade de suas propostas
Capa do livro Das Fresta dos Muros - Foto: Divulgação
Paulo Freire faria 102 anos em 2023. Falecido em 2 de maio de 1997, continua sendo um dos melhores antídotos para ideias obscurantistas e opressoras que vira e mexe rondam as concepções e políticas públicas sobre educação. Estudos que evidenciem seu legado e mostrem a vitalidade de seus ideais são sempre bem-vindos, sobretudo nessa era na qual ainda não estamos totalmente livres de delírios como escola sem partido, educação militar e outras armas do arsenal da guerra cultural.
Das frestas dos muros: o ensino de arte em diálogo com o território, a partir de Paulo Freire é o título da tese de doutorado defendida em agosto por Leandro de Oliva Costa Penha, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Com orientação da professora Sumaya Mattar, coordenadora do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (GMEPAE), o trabalho se dedica a compreender as possibilidades de relação entre a escola pública e seu entorno, considerando a cultura local e os saberes populares no ensino das artes.
O trabalho foi desenvolvido a partir de duas tríades, explica Oliva, uma temporal e outra espacial. Passado, presente e futuro, de um lado, universidade, escola e território do outro. Essas linhas se interconectam a partir do estudo de três experiências educacionais distintas, mas alicerçadas por ideais comuns. Primeiro, a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1992, durante parte do mandato da prefeita Luiza Erundina. Depois, o curso de extensão Arte e Educação para professores realizado pelo GMEPAE em 2019 e 2021. A terceira, por sua vez, engloba as atividades do projeto social PALCO, coordenado pelo próprio pesquisador.
Oliva levou em conta a contribuição intelectual e a atuação na gestão pública de Freire, direcionando seu olhar para o ensino de arte. Interdisciplinaridade, formação docente permanente, diálogo, participação e integração com o território foram algumas das propostas que o pesquisador encontrou na passagem do educador pela Secretaria. Trata-se, sintetiza o pesquisador, de uma perspectiva de conhecimento com as pessoas e não para as pessoas.
“Todos esses elementos estavam integrados naquele plano educacional”, conta Oliva. “Pensar o plano da escola com disciplinas integradas em projetos que envolvessem saberes das diferentes ciências e linguagens. Fazer um trabalho de investigação por meio da relação dialógica entre educadores, educandos e toda a equipe escolar, Criar um lugar de desierarquização de saberes, sem a ideia do professor como único detentor do conhecimento e sem a desvalorização dos saberes populares ou da experiência feita, como chama Freire”.
A formação docente continuada foi outro marco das políticas de Freire para o setor, estabelecendo parcerias com universidades como a USP, a Unicamp e a PUC. Uma medida que não teve continuidade em gestões posteriores, pontua o pesquisador.
Cartografia com base na entrevista com Alexandre Liba, educador de desenho do Projeto PALCO. Concepção: Leandro Oliva. Bordado: Lara Moreira. Retrato: Eder Chiodetto.
Cartografia com base na entrevista com a professora Elaine Santana, participante da primeira edição do curso Arte e Educação para professores na ECA/USP (2019 e 2021). Concepção: Leandro Oliva. Bordado: Lara Moreira. Retrato: Eder Chiodetto.
Cartografia com base na entrevista com Andreza Rodrigues, educadora de teatro do Projeto PALCO. Concepção: Leandro Oliva. Bordado: Lara Moreira. Retrato: Eder Chiodetto.
Cartografia com base na entrevista com o professor Fernando Ramos, participante da primeira edição do curso Arte e Educação para professores na ECA/USP (2019 e 2021). Concepção: Leandro Oliva. Bordado: Lara Moreira. Retrato: Eder Chiodetto.
Toda uma série de práticas, enfim, que Oliva voltou a encontrar na atuação dos participantes do curso de extensão Arte e Educação para professores realizado na ECA pelo GMEPAE. Um projeto que, em sua visão, está totalmente integrado às perspectivas freirianas. “Mais de 30 anos depois, temos em uma universidade pública como a USP um curso de extensão construído com pesquisadoras e pesquisadores mas, sobretudo, com professoras e professores da escola pública”, comenta. “Nós nos debruçamos sobre a prática de cada professora e professor para debater e refletir, não para julgar e questionar. A ideia é o professor se perceber como autor, criador, artista, sua aula como sua arte, como uma criação autoral.”
São essas mesmas diretrizes que balizam as ações dos educadores do projeto PALCO, experiência constitutiva de uma trajetória de 25 anos de envolvimento de Oliva com projetos sociais, tanto em outros Estados quanto em diferentes regiões da cidade de São Paulo. No Jaguaré, onde se situa o projeto, o pesquisador atua há 22 anos.
“Comecei lá como educador em um projeto social ligado a uma empresa”, relembra. “Já naquela época era um projeto que acontecia no contraturno das escolas públicas da região e envolvia arte-educação: música, teatro dança e, posteriormente, artes visuais. Ingressei como educador, passei a coordenador cultural e, nos últimos anos de existência do projeto, me tornei coordenador geral.”
Por uma questão de política interna, prossegue Oliva, a empresa deixou de organizar o projeto e ele foi convidado a criar uma nova organização social, que reuniria todos os eixos da anterior. Com patrocínio da instituição, Oliva rodou então o Brasil, conhecendo outros projetos sociais. Mas quando voltou para São Paulo, sua visão havia mudado. Tinha a certeza de que não iria construir mais uma outra organização.
Professoras e professores de escolas públicas em aula do Módulo I do Curso de Extensão Arte e Educação para professores, organizado e realizado pelo GMEPAE, com coordenação da profa. Sumaya Mattar (ECA/USP), em 2019 – Foto: acervo GMEPAE, 2019
“O que vi nessa viagem é que as organizações sociais muitas vezes olham para a criança e para o jovem apenas no período em que eles estão dentro de seus muros. Quando vão embora, pouco se sabe de suas trajetórias”, conta. Além disso, no que diz respeito ao ensino de artes, Oliva se deparou com muitas iniciativas que considerou tratar a área de maneira superficial. “Parece que tudo vale quando é em relação às artes. Não há intencionalidade pedagógica e artística.”
Adotando o que considera uma postura ética, poética e política para o ensino das artes é que Oliva criou então o projeto PALCO, em 2014, para atuar no contraturno de escolas públicas, unidades básicas de saúde, organizações sociais, associações de moradores e outras entidades do território. Um trabalho que foi amadurecendo gradualmente e recebeu muita influência justamente da própria trajetória na pós-graduação do pesquisador, que iniciou a pesquisa como um mestrado e, durante a qualificação, foi convidado a ingressar no doutorado direto.
“O PALCO foi se transformando com a pesquisa e tornando-se um projeto com bases freirianas”, explica, fazendo uma autoavaliação de sua própria trajetória. “É uma prática que se transformou a partir do desenvolvimento científico.”
No bordado da tese – uma imagem que percorre todo o texto ao lado da ideia de fios que se ligam e formam um todo – além da pesquisa bibliográfica, que incluiu a obra de Freire e de seus estudiosos, Oliva teve acesso a documentos públicos da Secretaria Municipal de Educação referentes ao período do educador frente ao órgão. Mas o núcleo do trabalho se constitui mesmo a partir das entrevistas realizadas com professoras e professores que estavam na sala de aula durante a gestão de Freire, que participaram do curso ministrado na ECA e que atuam no projeto PALCO.
Essa centralidade na figura das professoras e professores reverbera no próprio modo como a tese é construída. Seus nomes, retratos e produções poéticas ganham destaque ao lado da análise do pesquisador, evidenciando-os enquanto sujeitos. Oliva também não foge de se colocar no trabalho, encerrando-o com uma carta endereçada ao próprio Paulo Freire, na qual reconhece seu aprendizado e transformação pessoal ao longo do projeto.
Entre os participantes do curso realizada na ECA, a relação entre território e aprendizagem pôde ser vista na experiência de um professor que utilizou o grafite como elemento de diálogo com os estudantes, trazendo as ruas e os muros do bairro para a sala de aula. Já outra professora, que atua na educação infantil na região do Bom Retiro, relatou o trabalho com as origens familiares dos estudantes, considerando a presença de muitas crianças vindas de famílias de refugiados ou imigrantes da América Latina. Uma terceira professora, que se dedica à Educação de Jovens e Adultos (EJA), desenvolveu um trabalho sobre a terra, o chão e o quintal das pessoas, espaços nos quais ervas e chás compõem um lugar de cura e saúde.
O projeto PALCO, por sua vez, enfrentou os desafios da pandemia de covid-19, que tomou conta do planeta enquanto a pesquisa de Oliva ocorria. Por isso, foi preciso a elaboração de estratégias criativas para não desconectar a atividade dos educadores do território. Uma delas foi orientar o trabalho das aulas de desenho para a observação a partir das janelas de casa. Encontros via plataformas de reuniões virtuais ou mesmo chamadas telefônicas foram outros mecanismos para manter os canais de diálogo e participação, conforme relatado pelo pesquisador.
Oliva também estimulou os professores participantes da pesquisa a produzir e trocar cartas entre si, recurso pedagógico utilizado por Freire e resgatado para o trabalho. Os professores que atuaram na gestão freiriana escreveram para os participantes do curso da ECA que, por sua vez, endereçaram cartas para outros professores em exercício, estudantes de licenciatura e integrantes do projeto PALCO. Complementando esses materiais, o pesquisador analisou ainda os planos de aulas dos dez professores que aparecem na tese.
Projeto PALCO: gestão pioneira na perspectiva de uma escola sem muros, onde ruas e movimentos sociais fazem parte da constituição do conhecimento- Foto: Betinho Alvares
Reunindo todos esses dados, Oliva percebeu que, mesmo sem influência direta da obra ou da gestão de Paulo Freire, muitas de suas premissas permeiam as práticas dos educadores. Premissas que, de acordo com o pesquisador, fizeram parte de uma gestão pioneira em consolidar a perspectiva de uma escola sem muros, onde ruas e movimentos sociais faziam parte da constituição do conhecimento.
Além disso, suas conclusões salientam a importância da inserção do processo educativo na realidade local, em parceria com universidades e organizações sociais e comunitárias. As primeiras agindo na formação continuada e as segundas, aponta Oliva, colaborando com o estudo da realidade e a construção de projetos educacionais significativos, com participação ativa de alunos, professores, famílias e toda a comunidade. “As universidades podem colaborar com conhecimentos técnicos e científicos e a formação permanente de professores”, comenta. “Além disso, as organizações e movimentos sociais, as associações de moradores e coletivos culturais também podem colaborar, porque estão inseridos nos territórios.”
Temas geradores elaborados por toda a comunidade, interdisciplinaridade, leitura da realidade e diálogo são alguns dos fundamentos lançados no início dos anos 1990 e que, segundo Oliva, continuam essenciais para uma educação popular, crítica e libertadora. “Pensando que estamos hoje no debate sobre a curricularização da extensão, é preciso considerar essa experiência”, aponta.
Para o pesquisador, é fundamental que o processo educativo não esteja isolado, mas sim inserido nessa tríade que envolve a comunidade local em parceria com a universidade e com movimentos sociais. “Infelizmente, nós vemos cada vez mais a escola fechada, deixando de ser esse polo de discussão política e transformação da realidade, um lugar de encontro, público, uma praça pública”, analisa. “Essa integração entre universidade, escola pública e território – considerando a educação formal, a educação social, os coletivos e organizações sociais – tem a potência da construção de um conhecimento coletivo, em prol da qualidade de vida das pessoas em uma perspectiva libertadora e crítica, como diria Paulo Freire”, finaliza.
Das frestas dos muros: o ensino de arte em diálogo com o território, a partir de Paulo Freire, Leandro de Oliva Costa Penha, estará disponível a partir de outubro na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.