Arte sobre fotos de Rolf Gustaf Odelius, Planta da Cidade de São Paulo – Arquivo do Estado de São Paulo e capa do dossiê "Identidades Paulistanas" - Revista Casa Museu Ema Klabin

Quem é essa São Paulo de todos nós? Tão única e multifacetada

Com o dossiê ˜Identidades Paulistanas”, a Revista da Casa Museu Ema Klabin traz uma reflexão sobre a cidade em seus 467 anos

08/01/2021
Por Leila Kiyomura

As diversas faces da São Paulo dos imigrantes estão sendo apresentadas no dossiê Identidades Paulistanas, o segundo número da revista da Casa Museu Ema Klabin. Nesta edição, os organizadores Ana Cristina Moutela Costa e Paulo de Freitas Costa reúnem artigos que trazem a história da cidade com a sua população de imigrantes, a sua literatura, os diversos museus e os sons da cidade que destaca o compositor Adoniran Barbosa. Há também textos homenageando a paulistana Gilda de Mello e Souza, filósofa e professora da Universidade de São Paulo que contribuiu com o projeto da Fundação Cultural Ema Gordon Klabin.

Filha de imigrantes lituanos que vieram para o Brasil no final do século 19, Ema Gordon Klabin nasceu no Rio de Janeiro em 1907. Mas viveu, trabalhou e participou ativamente da vida cultural e social de São Paulo.

Ema Klabin - Foto: Arquivo pessoal

“A cidade que Ema Klabin conheceu em sua infância e juventude crescia vertiginosamente, onde boa parte da população mal falava o português e guardava fortes costumes e tradições de seus locais de origem”, explica o editor do dossiê Paulo de Freitas Costa. “Fundada no início da colonização do país por jesuítas que ensejavam a conversão religiosa das populações nativas, a cidade passava por grandes transformações.”

Costa abre o dossiê pontuando a história da cidade. “A cafeicultura, baseada no trabalho de africanos escravizados, foi fundamental para sua expansão e modernização, especialmente depois da construção de ferrovias, que tornaram a cidade um grande centro comercial do país, diretamente ligado ao porto de Santos”.

Lembra a cidade após a abolição, quando imigrantes europeus e asiáticos também aportaram em busca das novas oportunidades. “Entre eles estavam o pai e os tios de Ema, estimulando a expansão do comércio e o surgimento da indústria, que ampliariam ainda mais o poder econômico paulistano. Após a década de 1930, o empenho de grandes contingentes de migrantes de outros estados brasileiros colaborou para a transformação da cidade na metrópole que  hoje conhecemos.”

Os grupos culturais que contribuíram com a formação da cidade é o tema central dos nove artigos que compõem o dossiê Identidades paulistanas. A música, a literatura, os povos originários, o patrimônio, a fotografia, as pessoas, a culinária, entre outros temas abordados, trazem uma relevante reflexão sobre elementos do passado e do presente que nos alertam para importância do encontro das diferentes culturas para a estruturação de uma sociedade mais justa e inclusiva”, observa Costa.

“Diabólica, fantasmagórica, sedutora, mãe generosa, São Paulo é musa de desde românticos como Álvares de Azevedo, aos chefes de fila modernista como Mário de Andrade e Oswald de Andrade..."

No artigo Indígenas identidades paulistanas, o indígena Casé Angatu ou Carlos José Santos, doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) faz uma reflexão sobre as lutas indígenas pelo direito à memória, território, autonomia e defesa da natureza. E destaca que São Paulo também sempre será indigenamente Piratininga. “Numa leitura decolonial valorizamos outras histórias, memórias e identidades. Esta é uma das nossas militâncias indígena e acadêmica. Isto é, decolonizar olhares, saberes e espíritos. Mostrando o quanto as presenças indígenas, negras, caboclas, nordestinas e imigrantes são fundamentais na construção de várias cidades, entre elas: São Paulo.”

A importância de São Paulo na literatura é o tema do artigo de Ana Beatriz Demarchi Barel, professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), pós-doutorada pela USP e membro do Grupo de Pesquisas Brasil-França (Grupebraf–USP). “A cidade ocupa um lugar privilegiado na literatura, definindo um dos temas mais importantes nos estudos sobre o espaço. Desde o século 19, São Paulo é objeto da atenção de autores que nela projetam sentimentos os mais díspares”, destaca. “Diabólica, fantasmagórica, sedutora, mãe generosa, São Paulo é musa de desde românticos como Álvares de Azevedo, aos chefes de fila modernista como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Importante mote para a definição de uma identidade nacional e paulista em Alcântara Machado e Guilherme de Almeida, ela é pátria de imigrantes europeus no início do século 20.”

Planta da Cidade de São Paulo – Arquivo do Estado de São Paulo

Ana lembra que nos escritos de Zélia Gattai e Ana Miranda, São Paulo é pano de fundo e personagem central, retomando a cidade-refúgio dos anos 1920. “Complexa, rica e intrigante, São Paulo é fonte de inspiração do recente romance de José Roberto Walker, em que se misturam material histórico, humor e ficção.”

“A orientação de socar os temperos frescos com sal para depois marinar a carne. Prática indígena...”

Isabella Callia, doutoranda em Literatura e Cultura Italianas pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, também está no dossiê Identidades Paulistanas com uma interpretação literária sobre a gênese das receitas no artigo Perna à la gringo em Dona Benta: traduções de culturas culinárias. “Do que é feita uma receita, como ela nasce, o que ou quem ela representa, e se existiria receita de modo de ser e pensar são reflexões surgidas da rica intertextualidade contida nessas fórmulas culinárias”, questiona. “Assim, as obras de Pellegrino Artusi, de Luís da Câmara Cascudo e Dona Benta, juntamente aos pressupostos antropológicos de Franco La Cecla, nos conduzem por uma análise narrativa que rejeita o caráter meramente pragmático da receita, pois a enxerga como dado ostensivamente cultural.”

O artigo de Isabella chama a atenção para o modo de preparo dos alimentos: “A orientação de socar os temperos frescos com sal para depois marinar a carne. Prática indígena. Opa, Macunaíma presente. Cascudo cita no cardápio indígena a prática de socar mandioca, macaxeira, milho, raízes ou peixe; e na dieta africana idem: amendoim, castanhas, cereais e folhas, todos pilados. Ou seja, a receita é de gringo, mas a técnica é made in Brazil. E modernista”, destaca. “O minucioso trabalho investigativo de Cascudo narra as implicações humanas, geopolíticas e históricas da formação da identidade alimentar brasileira, inclusive debatendo acerca de predileções de paladar e olfato, de sistemas de constructos sensoriais dos nativos, dos trazidos como escravos e dos colonizadores.”

“São Paulo é reflexo de um movimento contínuo de grandes dimensões que absorve as novidades, mas preserva as tradições...”

“Qual é a música que se identifica diretamente com São Paulo e seu dinamismo?, questiona Marco Prado. Músico, historiador e professor graduado pela USP, ele narra sobre os Sons da Pauliceia. “Quando pensamos em samba, a imagem espontânea é Salvador ou Rio de Janeiro; quando nos remetemos ao frevo ou ao maracatu, nos transportamos para a história de Olinda ou de Recife. É bom lembrar que temos funk no Rio, rock em Pernambuco, choro em Brasília e jazz em Salvador – essas imagens são significativas, simbólicas e podem definir mais facilmente pontos de partida para pesquisas, mas são arbitrárias.”

O músico explica que o paulistano parece não se encaixar nesse ideal de provedor de ritmos exóticos ou dançantes, de estilos interessantes, de tradições, de peculiaridades atraentes ou mesmo como fornecedor de excentricidades. “Podemos notar isso, de maneira bem simples, em catálogos de viagem ou percebendo a expectativa de turistas a respeito de um passeio pelo Brasil. A cidade quase sempre se torna uma imagem aérea de prédios, de muita gente em ruas de asfalto, de luzes noturnas e, às vezes, da Avenida Paulista ou do Parque do Ibirapuera. São Paulo é reflexo de um movimento contínuo de grandes dimensões que absorve as novidades, mas preserva as tradições.”

Prado observa que São Paulo, no entanto, abriga vários cenários musicais entre discotecas e rodas de choro, música instrumental e acadêmica, samba e eletrônico, rock e jazz, pagode e rap que não param de interagir ou reagir com rigor ao movimento. Cidade em que encontramos os redutos das tradições e as efervescências das contemporaneidades. O difícil para qualquer análise, ainda, é que podemos observar as cidades e nos perder em delimitações pessoais muitas vezes subjetivas, fazendo apenas um diálogo sugestionado pelo nosso meio social, pelos nossos gostos, pelos nossos hábitos, pela nossa maneira particular de ver a metrópole e, principalmente, pela nossa história dentro dela – caminhos direcionados pelas nossas memórias emotivas.”

Neste ritmo paulistano, há um compositor que mostrou que São Paulo faz samba também. E dos bons. No artigo Adoniran em Partitura: Canções inéditas, Memória Viva e Radioteatro, Tomas Bastian – pesquisador, mestre e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – traz um trabalho desconhecido do sambista, que vem pesquisando desde 2010. “Nosso trabalho de investigação teve início, por um lado, com o estudo dos principais livros sobre o artista e, por outro, com a tentativa de reunir e catalogar todos os fonogramas que compõem a obra musical do compositor paulista.”, explica. “Porém, como se trata de um material absolutamente disperso, isso só seria possível com uma lenta e paciente garimpagem nas mais diversas fontes, como acervos físicos e digitais de instituições públicas e privadas, acervos de colecionadores e editoras musicais, bibliotecas e hemerotecas.”

Assim que conseguiu reunir parte considerável das gravações, Bastian ficou surpreso com a diversidade da obra musical de Adoniran Barbosa. “Quem poderia imaginar que o maior ícone do samba paulista teria criado xotes, baiões, valsas, cateretês e até um rock? Como acreditar que não havia um catálogo completo de sua produção musical e que a maior parte dessas gravações estava completamente dispersa e inacessível ao público? Diante disso, sem pressa nem pretensão, o Conjunto João Rubinato começou a reunir e catalogar a obra musical de Adoniran. Ali já estava claro que havia muito por se descobrir para além de Saudosa maloca, Samba do Arnesto e Trem das Onze, mas ninguém poderia imaginar o que nos esperava.”

E foi assim que surgiu o disco-livro Adoniran em partitura: 12 canções inéditas, álbum de estreia do Conjunto João Rubinato, lançado no ano de 2017. Criadas entre 1935 e 1970, as músicas abrangem todos os períodos da trajetória artística de Adoniran Barbosa.

O dossiê ˜Identidades Paulistanas” da revista Casa Museu Ema Klabin pode ser acessado gratuitamente. Para o download acesse: 

https://emaklabin.org.br/cadernos/identidades-paulistanas

Dossiê "Identidades Paulistanas”

O dossiê ˜Identidades Paulistanas” da revista Casa Museu Ema Klabin pode ser acessado gratuitamente. Para download, acesse:

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