Marcia Pastore, Frestas em Máquina, 2004-2019 – Foto: Marcelo Arruda

Quando as inquietações têm cor, forma... e um livro para refletir

Depois de ouvir artistas e analisar suas obras por décadas, a curadora Sylvia Werneck lança Pensamentos sobre Arte

 11/04/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Simone Gomes

Maxwell Alexandre. vista da exposição Novo Poder, 2022. cortesia do artista e A Gentil Carioca - Foto: Ding Musa

“Pensar sobre arte é uma coisa que entra pelos poros e muda a maneira como enxergamos tudo, dentro e fora dela, daí o fracasso de minhas tentativas de fuga.” A curadora e crítica de arte Sylvia Werneck descobriu  logo cedo que arte é resistência. E muita dedicação. Uma linguagem que foi descobrindo em um diálogo com a arte, artistas, analisando os detalhes e o cotidiano de suas obras. Um convívio entre pesquisas de mestrado no Programa Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) e de doutorado no Programa de Integração da América Latina (Prolam), ambos da USP.

Aprendizado que resultou em artigos publicados ao longo de quase duas décadas em jornais e revistas do País. E que, desde o início do mês, podem ser lidos no livro Pensamentos sobre Arte, publicação lançada com o apoio do Programa de Ação Cultural de São Paulo (Proac) e da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.  Através dessa edição, Sylvia Werneck compartilha e apresenta a infinitude e os desafios da arte contemporânea.

Em entrevista ao Jornal da USP, a autora conta: “Por que um livro?”. Sylvia acatou a ideia da artista e amiga Néle Azevedo, que há tempos vinha sugerindo que organizasse seus textos escritos nas últimas décadas em uma publicação. “Quando foram divulgados os editais do Proac, em 2021, eu me lembrei da sugestão. O edital no qual fui contemplada era, na verdade, um prêmio por histórico de realizações. ”

O livro tem a narrativa de uma conversa que flui entre questionamentos, vivências, sonhos, realidade. Pensamentos sobre Arte, da Alter Edições, traz, como a própria autora afirma, “elucubrações sobre o mundo além do sistema da arte que podem ser úteis aos que se interessam pelo tema a partir das obras na qual estão imersas”. Sylvia acredita: “Uma obra de arte sempre comunica alguma coisa, sempre pressupõe uma audiência. Trata-se de compartilhar pensamentos sobre aquilo que nos inquieta – e o que é arte, senão a materialização poética das inquietações humanas?”.

“A partir da década de 1980, começou a se delinear uma nova configuração mundial que teria seu ápice nos anos 1990.”

O artigo que abre o livro é datado de 2004. Foi apresentado no 2º Congresso em Estética e História da Arte na USP. Nele, Sylvia Werneck faz uma retrospectiva da arte no País desde o movimento modernista, “com forte oposição da crítica e da sociedade até a sua legitimação no cenário cultural”. Destaca o segundo momento de ruptura, na década de 1950. Cita o movimento concreto, com Max Bill. Lembra a reação carioca neoconcreta, com Lygia Clark e Hélio Oiticica, do caminho independente de Guignard e Volpi, até o cenário político de ditadura militar.

“A partir da década de 1980, começou a se delinear uma nova configuração mundial que teria seu ápice nos anos 1990, com o colapso dos regimes socialistas, a emergência do capital especulativo e o encolhimento do mundo através das tecnologias da informação e comunicação remota”, observa a autora. “ Foram as primeiras manifestações da globalização e da abertura dos países à internacionalização.”

Arte Contemporânea – Entre a América Latina e o Mundo é outro artigo, uma referência para o pesquisador entender o significado do ser latino-americano. O texto é de 2012, mas a observação da autora vale para a realidade atual: “A internacionalização da arte na América Latina precisa ser acompanhada por mais diálogo e reflexão, a fim de evitar que fique calcificada como um gueto, ou um gênero. É preciso aproveitar o momento para dar voz à região – uma voz que deixe claro que aprecia o convite para a festa global, mas que comparecerá como convidada, e não como atração exótica para o deleite dos convivas habituais”.

Sylvia chama a atenção para os holofotes acesos sobre o Hemisfério Sul pelas mãos da economia. “É preciso cuidado para não permitir que o mercado se transforme no novo juiz do gosto, capaz de influir sobre a relevância artística e/ou histórica  das obras de arte”, alerta. “Com poder e influência crescentes, o mercado de arte tem sido capaz de fazer circular a produção da América Latina no sistema global com velocidade significativamente maior que o setor institucional.”

“É impossível separar a arte da vida real, que fornece o contexto de onde emergem as ideias e os impulsos criativos.”

Sidney Philocreon, Tiro Certo, Lucro Duvidoso, 2020 – Foto: cortesia do artista

Camila Soato, Ventilador na Ppk dxs Outrxs É Refresco, 2017 – Foto: cortesia Zipper Galeria

A sensação do leitor é de peregrinar por ruas e vielas, atrás dos pensamentos de Sylvia. Ela anda por todos os espaços da arte, parece captar todos, questiona e deixa uma trilha para quem quiser percorrer. Do pintor Pablo Picasso ao sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 101 anos; das impressões e lembranças do artista paraibano José Rufino sobre o Nordeste canavieiro às paisagens da artista ítalo-brasileira Laura Villarosa, está a infinitude dos caminhos da arte. “E ser um pensador da arte, um crítico, é tarefa para quem vê o voo dos pássaros como arte e ciência”, observa Edgar Morin.

Na avaliação da autora, é impossível separar a arte da vida real, que fornece o contexto de onde emergem as ideias e os impulsos criativos. “Os aspectos da realidade que impulsionarão a criação artística variam de pessoa para pessoa, de contexto para contexto e, em última instância, de cultura para cultura.”

Sylvia não tem, como ela própria assegura, a pretensão de oferecer respostas para os dilemas do nosso tempo. “A meu ver, a grande potência da arte é justamente motivar perguntas, gerar discussões, abrir o pensamento para outros modos de estar no mundo e de estar com o outro. Entendo a arte como uma forma de filosofar, de transformar pensamentos em fenômenos criativos. Considero as perguntas mais importantes do que as respostas, e a arte faz isso. Encarar a arte como entretenimento, como ‘respiro’, é um desserviço, um convite para acomodações que podem ser muito perigosas. A arte não serve para tranquilizar os ânimos. Serve para chacoalhar certezas, que podem ser usadas como armas de dominação bastante eficientes.”

José Rufino, Exhumed corpus, 2019 – Foto: cortesia do artista

 

Sylvia reitera: “Para que as sociedades funcionem, é preciso que todos sigam as regras. Mas, para que as sociedades mudem, é preciso que alguém as desobedeça. Essa desobediência transformadora requer imaginação.”

“Combater injustiças deve ser uma tarefa prioritária para a sociedade como um todo, e passa por não exigir que artistas que já vivenciam vulnerabilidades falem apenas sobre determinados temas.” 

Na conversa com o Jornal da USP, Sylvia deixa transparecer, talvez, um próximo livro, pesquisa ou curadoria. E comenta: “Até hoje, cada novo projeto me deixa com ‘borboletas no estômago’, como se fosse a primeira vez . É realmente um caso de amor eterno”.

Sobre os caminhos da arte brasileira com a decolonização e a diversidade, a pensadora opina: “Artistas fazem arte porque não conseguem não fazer. É sua maneira de responder aos estímulos do mundo, transformando as inquietações em algo que mexa com os sentidos e a mente do espectador. Uma obra de arte sempre comunica alguma coisa. Sempre pressupõe alguém que vai se relacionar com ela. Os disparadores dessas inquietações vêm do que está acontecendo ao redor. No momento, questões como decolonialidade, diversidade e crise ambiental são prementes. Portanto, tendem a estar imbricadas na produção de muitos artistas, em maior ou menor grau”.

Por outro lado, Sylvia pontua que, na arte, obrigação é restrição. Ela faz questão de citar a defesa do antropólogo argentino Nestor Canclini, 83 anos.  “Canclini diz que não se espera que um artista europeu afirme sua ‘europeidade’ em sua arte, mas quando um artista latino-americano está num contexto global, espera-se que sua obra tenha claros elementos de sua origem. Isso acaba colocando a arte da América Latina como uma categoria, reforçando desigualdades. Na minha opinião, artistas sempre devem ter a liberdade de falar sobre questões que os prejudicam, mas pressioná-los a fazer isso para que sejam valorizados pode se tornar uma armadilha.”

Sylvia Werneck - Foto: Ana Helena Lima

Sylvia levanta outras questões que se apresentam no cotidiano da arte:  “Uma artista mulher é muito mais que um ser oprimido pelo machismo. Um artista negro ou indígena é muito mais que um ser oprimido pelo racismo. Um artista LGBTQIA+ é muito mais que um ser oprimido pela heterocisgeneridade. Suas obras são intrinsecamente criadas a partir de suas subjetividades e circunstâncias, mesmo quando não falam explicitamente sobre isso. Combater injustiças deve ser uma tarefa prioritária para a sociedade como um todo, e passa por não exigir que artistas que já vivenciam vulnerabilidades falem apenas sobre determinados temas.” 

 

Capa do livro Pensamentos sobre Arte, de Sylvia Werneck – Foto: Helena Marc


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