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A data oficial escolhida para as comemorações de aniversário da cidade de São Paulo é o dia 25 de janeiro por motivo de homenagem à fundação do Colégio dos Jesuítas em solo paulistano. A Companhia de Jesus tinha por missão a expansão da educação pela adequação dos povos autóctones aos modos de vida de seus dominadores europeus – no caso paulista, além da imposição ao trabalho escravo, base da economia de policultura de subsistência da então São Paulo de Piratininga, os habitantes nativos foram paulatinamente introduzidos aos trabalhos missionários de catequese, de aprendizado das primeiras letras da língua portuguesa e de tudo que seus educadores reconheciam como parte integrante dos processos civilizatórios da vida e da cultura locais (a notar a forte presença jesuítica no ensino brasileiro, inclusive em nível superior, até nossos dias). A escolha do santo padroeiro que deu nome à cidade faz referência ao apóstolo Paulo de Tarso, que segundo a tradição católica teria se convertido ao cristianismo em 25 de janeiro. No mesmo dia, em 1554, foi celebrada numa choupana improvisada a primeira missa no vilarejo, evento que marcou a ocupação do espaço.Em seu aniversário de 464 anos, São Paulo continua ocupada. E sua ocupação não é, como já percebeu uma vasta parcela da população, isenta de interesses que geram dividendos sociais, políticos, econômicos e artísticos, em âmbito local e global. Gostaria de destacar uma das iniciativas de ocupação dessa metrópole que parece apresentar possibilidades concretas para promover a educação crítica e a integração democrática de seus habitantes, não apenas porque oferece cultura como matéria para a instrução fina, mas por viabilizar e fomentar uma vivência ou experiência espacial da cidade enquanto núcleo urbano integrado e humanizado. Tomemos por exemplo os centros culturais.
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São Paulo não precisa (nem deve) ser uma sucessão de erros, um mercado aberto à prospecção que visa ao lucro…
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A Avenida Paulista, reconhecidamente um ícone da cidade, se consolidou em 2017 como um importante eixo cultural. Aos já existentes centros como Casa das Rosas, Itaú Cultural, Fiesp e Masp somaram-se dois outros: a Japan House, com o conspícuo projeto do célebre arquiteto Kengo Kuma para a iniciativa do governo japonês de disseminar a imagem de um país arrojado em termos culturais e tecnológicos – sem esquecer o local central ocupado pelos negócios –, e o novo Instituto Moreira Salles, um caixote de cimento e vidro projetado pelo escritório de arquitetura Andrade Morettin Arquitetos (lembrando que uma unidade do Sesc na mesma avenida tem previsão de inauguração para o primeiro semestre deste 2018). Se centros de cultura são bem-vindos numa metrópole como São Paulo porque ampliam os espaços destinados ao consumo e à formação cultural, que dizer de sua integração, em termos arquitetônicos, com a própria cidade como espaço urbano? Como tais edifícios se relacionam com os espaços a seu redor? Como, se é que o fazem, ocupam a cidade, acolhendo seus visitantes e integrando-os de modo a sugerir que o coletivo é efetivamente bem-vindo, como coletivo, ao local? Respostas sensíveis a tais questões encontram-se materializadas na obra de Paulo Mendes da Rocha, o consagradíssimo arquiteto e professor aposentado da Universidade de São Paulo. Ainda no âmbito dos centros culturais, pensemos num de seus últimos trabalhos, o projeto para o Sesc 24 de Maio, inaugurado em 2017.
O edifício impressiona pela simplicidade das soluções de inventividade sem fim: a parede de vidro com estruturas metálicas semelhantes a azulejos ou formas geométricas abstratas que sustentam e decoram ao mesmo tempo, o vestiário semiaberto à cidade, a disposição dos lavatórios (recuperada do mestre Vilanova Artigas), a piscina com um “furo” no centro e bordas sem degrau que lembram um lago no último pavimento, a comunicação dessa área com o andar inferior (onde há um espelho d’água, pelo qual o visitante pode caminhar como se flutuasse dentro de sua cidade), a relação visual estabelecida com as adjacências (sem esconder os espaços externos, ao contrário, expondo e emoldurando o entorno, incluindo as vistas da Praça da República e da Avenida São João, emblemas da cidade, assim revelando as relações entre o “dentro” e o “fora”, o “particular” e o “geral”), as entradas no pavimento térreo (uma delas tão integrada à rua que, embora demarcados, mal sabemos distinguir a separação dos espaços), as áreas de convivência (que nos convidam ao ócio, à introspecção ou à interação com outros visitantes), as rampas em concreto aparente (que nos incitam a olhar para o vai e vem, recuperando o footing), o mobiliário (que combina o “tradicional”, a excepcional cadeira paulistana, criada pelo arquiteto em 1957, com o contemporâneo, a mobília desenhada especialmente para a unidade com técnicas industriais, surpreendentemente sensual, colorida e confortável) e o edifício anexo, que “desaparece” ao abrigar os serviços essenciais de manutenção do prédio principal.
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Não podemos nos esquecer que a cidade é uma construção contínua, portanto, um processo que pode ter seu curso ajustado…
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Na manifestação artística que é o projeto explicita-se que não estamos diante da mera reforma do edifício que um dia pertenceu à loja de departamentos Mesbla, mas de uma inteligente construção dentro de outra, funcional, inventiva e festiva, compatível com a vida desejada na cidade contemporânea. Revela-se mais uma vez um Paulo Mendes da Rocha frutiferamente indignado, que insiste em modos subjuntivos de conceber e vivenciar a cidade: São Paulo não precisa (nem deve) ser uma sucessão de erros, um mercado aberto à prospecção que visa ao lucro e que produz, em escala industrial, uma população de conformistas e alienados. Nem os centros culturais precisam ser uma vagueza específica, pois a cidade já é, ela própria, um centro de cultura popular e interdisciplinar. Nesses termos, parece novamente nos perguntar: e se não operássemos como mônadas, mas como núcleos integrados que respeitam as individualidades e diferenças? E se ocupássemos os espaços de modo criativamente transgressor, sem contemplar as soluções de modo frio ou mecânico, mas com apreço ao trabalho manual (à técnica), elogiássemos o juízo que resolveu o problema ou necessidade? E se as edificações não coagissem ou condicionassem o comportamento dos indivíduos, mas os sensibilizassem e os educassem para a revisão crítica das experiências virtuosas dos lugares inteligentemente tocados – uma inteligência que evita mais tragédia e que procura assegurar mais liberdade coletiva, recompondo as rotas de desastre? Contra a solenidade enfadonha da prestidigitação que elogia o supérfluo e desmoraliza o trabalho (a técnica), a solução engenhosa da arquitetura que exibe o êxito dos procedimentos do desenho e da engenharia, pretexto para o discurso que prega a ocupação consciente da cidade, promovendo com ela as necessárias revoluções das relações sociais. Esta “política da arquitetura” é verificável ao longo da carreira do arquiteto, dentre outros, nos projetos para o Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE), na reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo e na reconfiguração da Praça do Patriarca (comentada pelo arquiteto com lucidez ímpar no recente documentário sobre sua obra, Tudo é projeto, de 2017, dirigido por Joana Mendes da Rocha e Patrícia Rubano) – isso para ficarmos apenas em São Paulo.
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Essa arquitetura não tem por objetivo cumprir um programa de caráter funcional ou instrumentalizado, mas satisfazer as necessidades básicas da coletividade, “amparando a imprevisibilidade da vida”, segundo as palavras de Paulo Mendes da Rocha. Não podemos nos esquecer que a cidade é uma construção contínua, portanto um processo que pode ter seu curso ajustado. Para nós, habitantes dessa metrópole, tudo o que temos é São Paulo e o desejo coletivo de nela estarmos. Já sabemos que ela pode (e deve) ser melhor do que é e precisamente por isso devemos ocupá-la com o otimismo que nos ensina nosso arquiteto – não por capricho ou excentricidade, mas por projeto. E um que eduque, transforme e ampare a vida humana, disponibilizando saberes existentes e ainda encarcerados no cativeiro das forças produtivas.
Marcos Fabris é doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com pós-doutorado na Universidade Columbia (Nova York), Université Paris Ouest Nanterre (Paris), MAC-USP, FFLCH-USP (São Paulo) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É autor dos livros Correspondências: pintura, fotografia e o retrato da modernidade e Trabalho da encenação – ensaios sobre fotografia norte-americana.
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