O riso que a pandemia calou

A morte de Paulo Gustavo comove e ganha os holofotes como símbolo da tragédia e desamparo nacional

 07/05/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 18/05/2021 as 12:48
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Paulo Gustavo, ator, humorista, diretor, roteirista e apresentador – Fotomontagem sobre imagem de Humor Multishow/ Reprodução – CC BY 3.0

Paulo Gustavo morreu. O que isso significa?

Vivemos em tempo de notícias como temporal e enxurrada. Qualquer portal, grande jornal ou veículo especializado oferece dezenas de cliques para informações e mais informações. Paulo Gustavo morreu. Uma passeada mediana por sua rede social favorita proporciona volume de conhecimento sobre o mundo – próximo ou longe, vai da bolha e do algoritmo de cada um – que parecia impossível há 30 anos.

Nessa maionese de informação – Caetano já se perguntava no final dos anos 60 quem lê tanta notícia –, é preciso alguma hierarquia, particular ou oferecida, para digerir o mundo. Paulo Gustavo morreu. Um veículo decide isso entre seus editores, mesclando interesse público e sensibilidade própria para decidir o que ganha espaço, qual o tamanho desse espaço e por quanto tempo esse espaço ficará disponível para tal ou qual assunto. Já no âmbito individual, e especificamente em 2021, há uma mistura dos interesses mais singulares, atravessados pelo pandemundo, e os algoritmos – já falei deles?

Paulo Gustavo morreu. Não é só. Porque mesmo entre interesses particulares e miradas editoriais, existem certos acontecimentos que se impõem – novamente um termo polivalente – individual e socialmente. Podem ser impostos por quem detém os meios de informação – “por que esse jornal não para de falar disso?” – ou por nosso olhar focado em determinados assuntos – “para onde eu olho é só isso, menino! – ou pelo significado maior com que acaba cobrindo toda uma população. Paulo Gustavo morreu.

Sim, Paulo Gustavo morreu. Ao mesmo tempo em que milhares precisaram de ar e não tiveram, uma escola em Santa Catarina era profanada pela morte de crianças e um ex-ministro da Saúde dava explicações para uma CPI sobre nosso gerenciamento personnalité do desastre sanitário. Com toda essa versão tropical, pós-moderna e sem carnaval das pragas do Egito, por que justamente a morte de Paulo Gustavo é que lateja tanto, interrompe noticiários, alimenta homenagens de Facebook e Instagram, fecha punhos em revolta e movimenta centenas de dedos em textos como este?

Sentimos todas as tragédias, é claro, seria absurdo ranqueá-las por proximidade, números ou qualquer outro critério – mas por que, repito, é a morte específica de Paulo Gustavo que deixa o café esfriar na xícara e nos faz sentir o mundo mais vazio? Até em casos como o meu, que mal conhecia seu trabalho, não assisti a nenhum de seus filmes e trabalhos para televisão.

Não é este texto que vai entregar a resposta. Quero dizer, não acredito que exista explicação única, mas sim interpretações. Algumas podem parecer curvilíneas demais, outras certeiras para a leitora ou o leitor deste texto. Alguns colegas de profissão captaram pontas desse novelo de sentimentos que a história de Paulo Gustavo cria no peito.

Em 4 de maio, Tony Goes destacava na Folha de S. Paulo o engasgo de uma trajetória estratosférica subitamente aniquilada. “A morte de Paulo Gustavo, aos 42 anos de idade, marca o fim precoce e repentino de uma carreira estelar, com poucos paralelos na indústria do entretenimento do nosso país. Em pouco mais de 15 anos, o ator saiu do anonimato para o posto de maior chamariz de público do cinema brasileiro.” É a vida que poderia ter sido e não será, em uma licença bandeiriana.

Já no El País, Joana Oliveira registrou em 6 de maio que a morte de Paulo Gustavo “catalisou a dor coletiva e o ódio pela perda de quase meio milhão de brasileiros. A avaliação mais frequente é que ao menos parte das mortes seria evitável caso o governo federal, sob comando de Jair Bolsonaro, tivesse adotado as medidas necessárias na gestão da pandemia, como a compra em massa de vacinas já no ano passado”. Paulo Gustavo como símbolo, como a expressão mais panoramicamente possível do crime e tragédia covidiana nacional.

Ainda no dia 6, Maurício Thuswohl noticiava na Carta Capital a iniciativa de moradores da cidade natal do ator. “Em Niterói (RJ), uma petição iniciada pelos moradores de Icaraí, bairro onde vive a família dele, pede que o nome Paulo Gustavo passe a batizar uma das principais vias da cidade: a Coronel Moreira César. A proposta, já encampada por vereadores e pela Prefeitura de Niterói, ganhou ares de protesto contra Jair Bolsonaro e sua postura frente à pandemia.”

Por fim, em 7 de maio Jana Sampaio e Raquel Carneiro resumiam na Veja o caráter ecumênico da tragédia pessoal de Paulo Gustavo. “Anestesiado por quase 420 mil mortes pela pandemia, o País via a doença, implacável, ganhar o rosto e o nome de Paulo Gustavo, inventor e encarnação de Dona Hermínia, a personagem levada do teatro para o cinema e que virou a mãe debochada de cada um. E, então, os brasileiros ficaram órfãos.”

Quando esse homem de 42 anos, que atingiu o estrelado vestido de mulher inspirado pela própria mãe, pai de dois filhos pequenos e com a coragem de ter outro homem como marido neste país insistentemente conservador, morre pelas complicações de uma doença cuja pandemia poderia ter seus impactos diminuídos com menos negacionismo e políticas públicas eficientes, temos um resumo, uma versão condensada de todos os nossos erros recentes como país. Por isso, sua morte é um símbolo, é um canal para expressar sentimentos de angústia e frustração, mas também de carinho e solidariedade.

Dona Hermínia, personagem interpretada por Paulo em Minha Mãe É Uma Peça – Foto: Divulgação

O professor Luciano Maluly, chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, analisa o significado dessa comoção: “Paulo Gustavo não era uma peça, mas sim a pessoa que buscamos nas notícias, ou seja, aquele que luta contra a morte da cultura”, disse o professor ao Jornal da USP. “Seu talento é indiscutível e seu legado de vida deve e precisa ser preservado. Ele foi pai, mãe, filho, ator, entre outros tantos papéis que exerceu como um ato de amor.”

Um homem morre e leva junto, também, a magia da arte. Especificamente essa que é tão difícil, a da comédia. É a alegria que se vê acuada por uma tropa de opressão, dor e confinamento. E, quando acontece, sentimos faltar o ar, o espaço e a esperança. Se é possível que o próprio riso – alívio mas também arma – tombe, o que nos resta, País que sem ilusões de heroísmo romântico elegeu como salvadores seus humoristas?


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