Os primeiros meses de 2022 trouxeram uma série de novidades literárias nas mais diversas áreas. Ensaios e pesquisas de fôlego, por exemplo, que abrangem desde uma visão mais detalhada sobre a Guerra do Paraguai – esse conflito no qual o Brasil se envolveu no século 19 mas sobre o qual parece que ainda sabemos pouco –, as mulheres modernistas – que souberam encontrar seu espaço em uma ambiente eminentemente masculino –, a relação filosófica de Nietzsche e as mulheres, uma inesperada descoberta setecentista que lança luzes sobre a educação no Brasil colônia e um importante documento sobre a escravidão contemporânea no interior de São Paulo. São livros instigantes, que levam a uma série de necessárias reflexões.
A Guerra contra o Paraguai em Debate, de Ronald León Núñez. Ed. Sundermann. 472 pág.
Este livro, fruto de trabalho baseado em sólida pesquisa documental do pesquisador paraguaio e doutor em História pela USP Ronald León Núñez, lança novas luzes sobre o conflito bélico mais prolongado e sangrento da América do Sul no qual o Brasil se envolveu: a Guerra do Paraguai (1864-1870), um tema pouco conhecido pelos brasileiros, apesar de imensa bibliografia disponível. O livro é produto, em parte, da pesquisa e das principais conclusões da tese de doutorado de León Núñez, defendida em 2021. O autor, a partir do exame dos fatos relacionados com as origens, desenvolvimento e consequências da guerra, que definiu o processo de conformação dos Estados nacionais da Bacia do Prata, elenca algumas questões: qual o caráter da guerra? Qual o papel de Pedro II e do Império do Brasil? O Paraguai do século 19 era uma potência industrial? Qual o papel do Império Britânico? Houve um genocídio do povo paraguaio? Nesse sentido, o livro apresenta dados sobre redução da população e do território. Entre outros números, o autor ressalta que o Paraguai perdeu entre 60% e 69% de sua população total após o fim da guerra, um extermínio de proporção histórica. O país vizinho também perdeu cerca de 40% de seu território, que foi anexado pelo Brasil e pela Argentina.
Nietzsche e as Mulheres. Figuras, Imagens e Tipos Femininos, de Scarlett Marton. Ed. Autêntica. 224 pág.
Esta é a versão brasileira da obra Les ambivalences de Nietzsche, de Scarlett Marton, professora titular do Departamento de Filosofia da FFLCH, publicado em abril do ano passado pela Éditions de la Sorbonne. Não há dúvida de que recorrer aos dados biográficos de Nietzsche ou apelar para a sua inserção num momento histórico determinado poderia contribuir para justificar as posições que assumiu em relação às mulheres, mas essas duas maneiras de proceder não estariam em condições de explicar o seu caráter filosófico. É por isso que a autora se recusa a adotar uma abordagem psicológica ou sociológica dos textos nietzschianos. Ela tampouco deseja julgar o indivíduo Nietzsche, condená-lo ou eventualmente absolvê-lo. Seu intuito consiste em pretender que, quando se exprime sobre as mulheres, Nietzsche se comporta sobretudo como filósofo. Para bem compreender o teor das considerações de Nietzsche sobre as mulheres, Scarlett Marton julga essencial inscrevê-las no seu empreendimento filosófico. Para tanto, empenha-se antes de mais nada em contextualizá-las. E isso de dois modos distintos: restituindo-as no seu contexto imediato e no conjunto do corpus nietzschiano. A partir de uma leitura imanente dos textos do filósofo segundo sua ordem cronológica, ela põe suas reflexões sobre as mulheres em relação com os principais temas da sua filosofia.
Apologia das Letras Humanas — A Educação Retórico-Poética em Dois Colégios Jesuíticos da Bahia. Org. Marina Massimi e Alcir Pécora. Edusp. 320 pág.
A série de ensaios que compõem esse livro parte de uma descoberta inesperada: um manuscrito setecentista guardado na biblioteca pública de uma pequena cidade do centro da Itália, Urbania (antiga Castel Durante). O documento encontrado é uma fonte manuscrita elaborada no Brasil, no Seminário de Belém da Cachoeira e no Colégio dos Jesuítas da Bahia, que traz uma coletânea de exercícios escolares realizados por docentes e alunos dessas instituições. Os ensaios do livro, realizados por especialistas nas áreas de de teoria literária, educação, arquitetura, arte e história cultural, dão uma importante contribuição para a compreensão da natureza do manuscrito, assim como dos processos históricos de sua criação e transmissão. Além dos textos de especialistas, o volume também traz a transcrição em latim do manuscrito e a tradução de epigramas seletos – apesar de, talvez, o ideal fosse trazer a tradução completa do texto encontrado, a fim de lançar luzes mais intensas não só sobre a fonte documental mas também sobre o período em que ela foi composta.
Mulheres Modernistas, de Ana Paula Cavalcanti Simioni. Edusp. 360 pág.
A arte moderna brasileira ou seu ponto mais incisivo, a Semana de 1922, tem tradicionalmente como protagonistas figuras de homens como Mário e Oswald de Andrade e Villa Lobos, entre outros. Esse protagonismo masculino é amplificado no meio artístico modernista mundo afora. Como explicar, então, o sucesso no Brasil de duas artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, grandes pioneiras do Modernismo brasileiro? É isso o que a pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni explora nesse seu longo e preciso ensaio. Atenta às dinâmicas internacionais da arte moderna e empreendendo um diálogo crítico com os paradigmas da historiografia da arte feminina, a autora discute essa singularidade do País, analisando o papel que tanto Tarsila quanto Anita tiveram no nosso marco modernista, a experiência parisiense de ambas e mesmo a preocupação que alguns – como Mário de Andrade – tiveram ao ver Anita, em alguns momentos, parecer enveredar – ou retroceder – por uma caminho mais “conservador”. Em seu livro, Ana Paula também traz um contraponto: uma artista menos conhecida e introdutora das artes decorativas no Brasil, Regina Gomide Graz, o que adensa a análise com um olhar inovador para as relações entre materialidade e gênero. Afinal, segundo a autora, o êxito dessas artistas não se fez a despeito do gênero, mas por meio dele.
Nos Limites da Lei, de Nauber Gavski da Silva. Saga Editorial/Edusp. 296 pág.
Este livro do historiador Nauber Gavski tem um subtítulo incômodo, mas extremamente importante para a reflexão sobre questões como cidadania e as relações sociais e de trabalho no Brasil: “A escravidão contemporânea no interior de São Paulo (1991-2010)”. Fruto de pesquisas para seu pós-doutorado no Centro de Pesquisa em História Social da Unicamp, Gavski propõe, neste trabalho, uma instigante análise da escravidão contemporânea no Brasil. O autor reconstitui com rigor relatos de pessoas que vivenciaram situações de escravidão no interior paulista, para onde migraram de cidades do Nordeste e do Centro-Sul do País, atraídas por promessas de trabalho e salários dignos – o que se mostrou completamente falso. Segundo Fernando Teixeira da Silva, do Departamento de História da Unicamp e que assina a orelha do livro, “o historiador Nauber Gavski da Silva assume os riscos de evitar classificações e delimitações conceituais fixas para poder ir muito longe: compreender como os próprios sujeitos implicados no fenômeno atribuem significados às noções de escravidão e liberdade”.