Mitologia da Mineiridade ajuda a entender os paradoxos de Minas Gerais

Livro da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda mistura vivência e história para refletir sobre o mineiro, sua cultura e tradições

 Publicado: 10/04/2024

Texto: Ricardo Thomé*

Arte: Simone Gomes

Capa do livro Mitologia da Mineiridade - O Imaginário Mineiro na Vida Política e Cultural do Brasil, de Maria Arminda do Nascimento Arruda - Foto: Reprodução

Minas Gerais é protagonista na história do Brasil. Desde o período da mineração, passando pela Inconfidência Mineira, pela Primeira República, pela “política do café com leite” e pelo Modernismo, até chegar à redemocratização, o Estado esteve ativo nas artes, na literatura e na política nacionais. E foi com base nessa noção de Minas, do mineiro e do que Gilberto Freyre cunhou como “mineiridade” que Maria Arminda do Nascimento Arruda, mineira de Tombos, escreveu o livro Mitologia da Mineiridade – O Imaginário Brasileiro na Vida Política e Cultural do Brasil. Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Maria Arminda é socióloga e atual vice-reitora da USP. O lançamento da segunda edição de sua obra — originalmente publicada em 1990 — acontecerá às 17 horas do próximo sábado (13), na Livraria da Travessa do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo.

O objetivo da obra é, como afirma o jornalista e escritor Nirlando Brandão (1946-2020) na contracapa do livro, visitar os paradoxos de Minas Gerais, “num passeio pela literatura, cultura e política”, ajudando “a entender o mito sem ter a compulsão de sufocá-lo” por meio da exaltação, mas também da realidade histórica do Estado. A partir daí, Maria Arminda constrói sua análise da formação da identidade do povo mineiro por meio de fatores históricos e culturais, em temas que permeiam o mito, a liderança política e o Modernismo mineiros, este último especialmente na literatura.

Identidade mineira

 

Para abordar essas nuances, que estão interligadas, Mitologia da Mineiridade é dividido em cinco capítulos — As Fontes do MitoA Construção MíticaO Enleio do ImaginárioImaginário e Sociedade e Cultura e Política —, além de um Prefácio à Segunda Edição e de uma Introdução.

A Introdução do livro recorre à vinda da família real para o Brasil, em 1808, para identificar uma mudança na forma como o País passa a ser descrito. Seja num contexto romântico, seja no Modernismo, o livro destaca o quanto as visões de Brasil (e de Minas Gerais) foram se ampliando a partir do século 19 — e como isso foi refletido nas artes: “Provavelmente, a maior originalidade mineira está na literatura. Tipicamente mineira no conteúdo manifesto das suas personagens, empurra a visão para além-montanhas. É uma visão mineira e universal”.

O teor universalizante proposto na literatura mineira é trazido por meio da análise do crítico literário Antonio Candido (1918-2017) e se explicita nas produções oitocentistas, iniciadas já no Arcadismo com Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), poeta e ativista jurídico português que participou da Inconfidência Mineira. Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), Alvarenga Peixoto (1742-1792) e Silva Alvarenga (1749-1814) são outros autores mencionados.

Maria Arminda do Nascimento Arruda - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Maria Arminda descreve o Modernismo mineiro como melancólico em relação ao passado (das classes dominantes diante da decadência da mineração) e vanguardista, mas com a preservação da tradição. Grande expoente do Modernismo mineiro, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o adjetivo “drummondiano” ou suas obras são citados um total de 57 vezes ao longo das 277 páginas do livro. Seu poema Os Últimos Dias, que brinca com as estratégias envolvendo a morte, ganha destaque por ter uma de suas estrofes fechando a Introdução de Mitologia da Mineiridade. Outro nome relevante, Guimarães Rosa (1908-1967) aparece em 32 oportunidades. Para se ter uma ideia, as palavras “modernismo” e “modernistas” aparecem cinco vezes cada.

Pedro Nava (1903-1984), escritor mineiro, retrata, já no século 20, uma mudança de comportamento dos intelectuais mineiros — e modernistas.

 Antes em contato constante com o poder e com os políticos na chamada Rua da Bahia, em Belo Horizonte, “a geração modernista desenvolveu uma rebeldia a seu modo”, como traz a vice-reitora da USP. O conservadorismo não mais era o agente principal das obras, e a negação do mundo trazida pela expressão artística de Drummond se diferenciava da certeza da visão mítica, ainda que mantidas algumas características do universalismo.

Para explicar essa ideia, a autora cita Affonso Romano de Sant’Anna, poeta mineiro: “’Com Drummond – diferentemente do que sucedeu com alguns poetas modernistas – ocorreu um equilíbrio entre o localismo e o universalismo. A província (Minas Gerais, Brasil) é aí apresentada não somente num tom ingênuo, mas, principalmente, através de uma perspectiva crítica’”. No que concerne à grande obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, o citado é Antonio Candido, que identifica uma combinação entre o mito e o logos”. Com personagens ambíguos e a premissa de que “o sertão é o mundo”, o autor quebra alguns padrões enquanto mantém outros.   

Física e culturalmente, por sua vez, o mineiro é definido por meio de um estereótipo, nas palavras do explorador britânico Richard Burton: “É um tipo alto, magro, ossudo, que, quando exagerado, representa nosso popular Dom Quixote esguio e macilento (…). Ele é pacato, embora altivo, além de provinciano, nobre e sensato, e vive uma vida cavalheirosa”. Conforme explica Maria Arminda, a chegada da família real e a abertura dos portos pelo Brasil permitiram que houvesse maior conhecimento do território, expandindo as descrições do País para algo além da fantasia observada nos períodos anteriores — ainda que o eurocentrismo predominasse.

Formadores da "dimensão épica" da mineiridade

O conservadorismo e o tradicionalismo observados na literatura mineira também se veem presentes na sociedade, que se ruralizou nos anos 1800, trazendo à tona os ideais de saudosismo e de ritualismo. Na obra, a socióloga aponta para esses aspectos que, nas palavras dela, fazem do maneirismo uma “subcultura regional”: “A vida social de Minas durante o século 19 concorreu a conservar na mente dos mineiros as imagens gloriosas do passado (…), com um misto de nostalgia e de apreço exagerado à realidade setecentista”. Esse memorialismo, que, segundo a autora, vem acompanhado de um temporalismo, é responsável por alimentar o “tempo mítico”, que foge ao tempo cronológico e cria uma “dimensão épica” do que seria a mineiridade, fundindo lembranças do passado a reflexões da atualidade. Ela se vale de obras do poeta modernista surrealista mineiro Murilo Mendes (1901-1975) para exemplificar a junção entre mito e memória na construção da mineiridade. 

Politicamente, as transformações no Brasil foram muitas ao longo do século 19, mas também antes e depois dele. E, em ambos os momentos, Minas Gerais foi protagonista. Ainda no século 18, em 1789, ocorreu no Estado a Inconfidência Mineira — cujo principal agente foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Movimento separatista e fortemente vinculado aos ideais liberais da Independência dos Estados Unidos (1776), a Inconfidência alçou Tiradentes a modelo para cidadãos e nacionalistas, segundo o livro.

Já no final do século, Minas Gerais assumiu a linha de frente dos primeiros anos de República no Brasil. A partir de 1894, com a instituição da “política do café com leite” — em que São Paulo e Minas Gerais alternavam a Presidência da República entre si —, o Estado voltou a ter papel importante. A ideia de protagonismo é retomada quando se traz o contexto da publicação original: Tancredo Neves, primeiro presidente civil no período pós-ditadura militar (1964-1985), era mineiro. Sinal de esperança para o País naquele momento, ele morreu antes de assumir o cargo. Tancredo é descrito como “fundamental e insubstituível”, na mesma medida em que classifica Minas Gerais como um lugar de “cultura política própria que ganha relevo nos momentos de transição no Brasil, visível no chamado fenômeno da conciliação”, valendo-se do conceito de conciliação proposto pelo livro Conciliação e Reforma no Brasil, de José Honório Rodrigues.

Sobre o quesito regional, Mitologia da Mineiridade afirma que o Brasil tem uma tendência maior ao centralismo do que ao regionalismo e que Minas Gerais acaba sendo um bom ponto de partida para a análise histórica do País, que, nas palavras do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não pode ser apreendido totalmente por meio de categorias previamente definidas por se tratar de uma sociedade colonial e complexa. A relação entre autoritarismo e nacionalismo, entre economia e cultura e internacionalização e entre o capitalismo e a homogeneidade cultural — fatores constantes na história brasileira — levam à afirmação de Benedetto Croce, filósofo, historiador e político italiano, de que “toda história é sempre contemporânea”. E isso vale tanto para Minas quanto para o Brasil.

A segunda edição

O Prefácio da segunda edição de Mitologia da Mineiridade, publicada pela Ateliê Editorial, serve como um guia para as motivações por trás do livro, que nasceu de uma tese de doutorado de Maria Arminda. Nele, explicita-se que uma das razões de a obra ter sido relançada foi compreender o papel de Minas Gerais em momentos de transição do País — como a época em que foi publicada pela primeira vez. É destacado, inclusive, o quanto “os estudos sobre autores que interpretaram o Brasil ganharam força” desde então. A autora esclarece que a redação original foi preservada, bem como o uso do substantivo “homem” como sinônimo de “humanidade”.

Na orelha, Heloísa Pontes, mineira, antropóloga e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realça alguns aspectos da escrita da vice-reitora da USP que contribuem para que seu objetivo seja alcançado, entre eles uma mistura entre familiaridade e distanciamento em relação ao Estado, onde nasceu mas passou pouco tempo, e o estilo de escrita — que mistura “a linguagem moderna da sociologia à dramaticidade expressiva alimentada pela literatura”.

O evento de lançamento da segunda edição do livro Mitologia da Mineiridade – O Imaginário Brasileiro na Vida Política e Cultural do Brasil, de Maria Arminda do Nascimento Arruda, acontece no próximo sábado, dia 13, a partir das 17 horas, na Livraria da Travessa do Shopping Villa-Lobos (Avenida Ruth Cardoso, 4.777, em Pinheiros, São Paulo). Haverá sessão de autógrafos. Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis pelo telefone (11) 2394-8352.

* Estagiário sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro


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