Mandetta e o oráculo

Para a autora, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta é a pessoa certa para explicar o que acontece no Brasil da epidemia

 19/01/2021 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 02/07/2024 às 15:24
Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

por Janice Theodoro da Silva

A vida política é cheia de incertezas. Os gregos, em momentos de difícil decisão, consultavam o oráculo. Interpretar a vontade divina correspondia a fazer política, na polis. O oráculo não era neutro e nem sempre respondia o que se perguntava. Não era fácil interpretar as mensagens, mas em momentos de crise aguda as palavras indicavam a forma mais apropriada de agir. Exigia-se do intermediário observação acurada, análise e interpretação dos sinais inscritos nos voos das aves, no fígado de um animal e, nas palavras.

Considero Luiz Henrique Mandetta, em matéria de epidemia, a pessoa certa para consultar o oráculo. Ele já realizou várias consultas e as respostas obtidas demonstraram capacidade de ler sinais. Respeitou os presságios, previu o futuro, observou, interpretou e enfrentou a doença como médico. Ele sabe como avança a covid-19, a disponibilidade de médicos intensivistas no Brasil, as características da enfermagem, a rede hospitalar, a quantidade de leitos disponíveis, a capacidade assistencial da rede pública e privada. Em suma, Mandetta dispõe de percepção e conhecimento necessário para avaliar e equacionar, da melhor maneira, os problemas da epidemia. Ele é e foi capaz de salvar vidas.

Além de entender da área médica, Mandetta conhece os ritos jurídico-políticos exigidos pela tradição grega, raro hoje em dia. Ele sabe, como sabe o cidadão da polis, que o homicídio é delito gravíssimo no direito grego, especialmente quando interfere na ideia de justiça da polis. Segundo a leitura de Michel Foucault, no caso de Édipo, por exemplo, os responsáveis pelo assassinato de Laio deveriam ser nomeados e julgados para pôr fim ao flagelo da cidade. No caso brasileiro a situação é similar.

Na tragédia o coro desempenha papel importante. Em Édipo-Rei ele se manifesta para tratar do orgulho e da tirania: “ O orgulho é que produz o tirano, e quando tiver em vão acumulado excessos e imprudências, precipitar-se-á do fastígio de seu poder num abismo e males, de onde não mais poderá sair! ”. (Coro) Bom exemplo para o Brasil.

A palavra utilizada por Mandetta, para qualificar a motivação do delito praticado, é perversão. Não se trata, como ele diz, de loucura, porque louco é aquele sujeito alienado frente à realidade em que vive. No caso do presidente brasileiro ele tem consciência plena dos seus atos, foi informado por cientistas sobre as condutas corretas capazes de poupar a vida de doentes de covid-19. Com consciência ele optou pela barbárie, ancorada na falsa ideia de seleção natural ou imunidade de rebanho.

O assassinato de milhares de pessoas, quando se localiza o culpado, a prática jurídica sugere, como ocorre em Édipo-Rei, comparecimento em um tribunal. Violação aos Direitos Humanos por meio de valorização de torturadores merece condenação. Foucault aponta os vínculos entre memória e testemunho de grande importância na prática jurídica e da qual não podemos nos distanciar, se a pretensão for salvar a polis, a cidade.

A tragédia ocorrida em Manaus é estarrecedora. Ela justifica, até para os mais cautelosos, o limite, sinalizando a quebra no uso das categorias políticas: da prudência, do equilíbrio e da tolerância.

A cena trágica exige a participação do coro, cuja analogia remete ao Congresso. O coro revela, como lembra Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet[1], a presença de “‘um colégio oficial de cidadãos cujo papel é exprimir em seus temores, em suas esperanças, em suas interrogações e julgamentos, os sentimentos dos expectadores que compõem a comunidade cívica […][2]’. Segundo Incerti[3], formado eminentemente por homens, o coro é a representação máxima dos valores da cidade, que estão neste caso [em Édipo-Rei de Sófocles], profundamente abalados pelas transgressões …”.

Novamente a analogia sugere manifestação do Congresso e a utilização da prática jurídica mediante testemunho daqueles que assistiram à tragédia e pretendem, em nome da polis, reconstruir o tecido social, composto por memória e verdade.

Grande parte desta reflexão se insere na leitura de Michel Foucault de Édipo-Rei com foco na tragédia, uma prática jurídica marcada pelo nascimento do inquérito. A leitura sugere, por analogia, o papel necessário por parte do Congresso brasileiro, caso ele tenha alguma pretensão de garantir a sobrevivência da nação brasileira.

Os mortos já estão expostos em praça pública. O que falta?

Um detalhe, contido na tragédia enquanto arte da política, merece destaque: o momento exato em que os mortais devem agir, o instante da responsabilidade contida na ação humana prática, de interferência na realidade em razão do sistema de valores estruturantes da polis ter sido colocado em xeque.

A sabedoria do oráculo, interpretada pelo sacerdote, ao analisar o voo das aves e o fígado dos animais – fígado, metáfora utilizada para expressar o limite –, assinala a circunstância da ruptura, momento em que o homem assume ser ele, o próprio homem, o seu objeto. Ele não negocia mais.

A estratégia da conciliação é finita. A tragédia termina na morte do protagonista da história. É a última cena antes de fechar as cortinas do teatro.

Existe cólera entre os deuses. É a indignação sentida por todos nós. Ela é, enquanto prática política, o momento da ruptura, o momento em que o conflito trágico deixa de lado a retórica mentirosa, demagógica sobre, por exemplo, os remédios paliativos, os agrados a empresários e o preço das ações (em alta), para diante da morte exposta em praça pública, defender a vida. No caso brasileiro defender o impeachment.

Para além da dor, a esperança é remédio como diria Prometeu. Tomei tantos remédios. Fiquei de mãos vazias. Em meio aos mortos, ao sufocamento, aos enterros e sem saber como acender a luz, pedi emprestado sabedoria para Adélia Bezerra de Meneses, no seu artigo “O Sonho e a Literatura: Mundo Grego”[4].

Em época, sem utopia, sonhar é remédio para uma senhora esculpida à moda antiga.

Analogia: para Artemidoro de Daldis[5] (II, 25), ‘a interpretação dos sonhos não é outra coisa que uma aproximação do semelhante com o semelhante’. E aqui a gente encontra um eco de Aristóteles, que termina seu estudo sobre ‘A Adivinhação através dos sonhos’ com a afirmação de que ‘o mais hábil intérprete dos sonhos é aquele que pode observar as analogias’ (Aristóteles, De Divinatione Per Somnum).

Mas o que é mais importante é que a analogia é fundamento não apenas do mundo mágico e do mítico, mas também da poesia, esse universo analógico em que os sons ‘se respondem’ e em que se revelam as afinidades obscuras entre as coisas: CORRESPONDÊNCIAS – de que o poema de Baudelaire é o prestigioso avatar. Diz Octavio Paz[6] (1974):

A ideia da correspondência universal é provavelmente tão antiga como a sociedade humana. É explicável: a analogia torna o mundo habitável. À contingência natural e ao acidente opõe a regularidade; à diferença e à exceção, a semelhança. O mundo já não é um teatro regido pelo azar e o capricho, as forças cegas do impossível: governam-no o ritmo e suas repetições e conjunções. (…) A analogia é o reino da palavra como essa ponte verbal que, sem suprimi-las, reconcilia as diferenças e as oposições (p. 95).

A analogia permite uma visão do mundo reordenado segundo um princípio que lhe confere sentido. Os fatos humanos não são assim desraigados e aleatórios, mas estão inscritos nas entranhas e nas estrelas, no mundo biológico e no mundo cósmico.”

 

[1] Citados por Fabiano Incerti em seu artigo O Nascimento do Inquérito na Tragédia de “Édipo-Rei” :Uma leitura foucaultiana. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2016000200545

[2] Vernant, Jean-Pierre, Vidal-Naquet, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga, São Paulo, Editora Perspectiva, 1999.

[3] Sugestivo artigo, de Fabiano Incerti, O nascimento do inquérito na tragédia de Édipo-Rei: uma leitura foucaultiana.

[4] Adélia Bezerra de Meneses. (https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642000000200012&lng=pt&tlng=pt)

[5] Artémidore, D. (1975). Le clef des songes: Onirocriticon (A.J. Festugière, trad.). Paris: J Vrin. Viveu no século II d.C. e foi intérprete de sonhos.  Natural de Éfeso.

[6] Paz, Octavio (1974). Los hijos del limo; del roanticismo a la vanguardia. Barcelona, España: Seix Barral.


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