“Libelu – Abaixo a Ditadura” retrata a oposição estudantil uspiana

Filme traz entrevistas com 20 ex-militantes do movimento Liberdade e Luta, que lutou contra o regime militar

 25/05/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 27/05/2021 as 21:21
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O filme Libelu Abaixo a Ditadura estreia nas plataformas de vídeos on demand neste mês – Fotomontagem com imagens de divulgação do filme Libelu Abaixo a Ditadura

 

O ano era 1976. Foi quando se organizou uma tendência estudantil de orientação trotskista, responsável por retomar as palavras de ordem “Abaixo a ditadura” nas ruas. Numa época em que a luta armada contra o regime militar já tinha acabado e havia menor mobilização das oposições, o movimento estudantil recomeçou a fazer barulho. Uma de suas expressões foi o grupo Liberdade e Luta, a Libelu, surgida na USP. A história desses jovens militantes é recuperada no documentário Libelu – Abaixo a Ditadura, dirigido por Diógenes Muniz. Em exibição nos cinemas desde 13 de maio, o filme estreia nas plataformas de vídeos on demand ainda neste mês.

O diretor Diógenes Muniz – Foto: Divulgação

Hoje em ciclo comercial, Libelu – Abaixo a Ditadura foi inicialmente exibido na 25ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, entre setembro e outubro de 2020, e ganhou o prêmio de melhor longa ou média-metragem brasileiro. O festival é o principal evento dedicado a esse gênero cinematográfico na América do Sul. 

O diretor Diógenes Muniz diz que a vitória no festival foi uma surpresa. Libelu é o primeiro documentário de Muniz, que é formado em Jornalismo, e foi produzido por uma equipe pequena. “É um momento muito difícil para os lançamentos de filmes, ainda mais os independentes, de baixo orçamento, que são os que perdem mais espaço no mercado audiovisual. Ganhar o É Tudo Verdade foi providencial para o filme ter mais alcance”, afirma.

A Libelu

“A Libelu foi impulsionada das sombras por uma organização clandestina, a Organização Socialista Internacionalista (OSI)”, explica Muniz. “Na época, vários outros grupos clandestinos também começaram a articular faces públicas semilegais. Assim, o movimento estudantil foi se articulando para reerguer as entidades representativas que tinham sido fechadas pelo regime militar.”

Cartaz da Libelu para eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP, desenhado por Cadão Volpato – Foto: Divulgação

O diretor conta que a greve ocorrida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP em 1975, que mobilizou boa parte da Universidade, foi um catalisador para o desenvolvimento da Libelu. A greve foi um movimento de oposição ao então diretor da ECA, Manuel Nunes Dias, que, para os professores e alunos, era alinhado com as ideias de repressão da ditadura. Em 1976, a Liberdade e Luta surgiu oficialmente nas eleições para o Diretório Central dos Estudantes Alexandre Vannucchi Leme, o DCE Livre da USP — entidade máxima de representação estudantil da Universidade. Com o tempo, militantes universitários do interior de São Paulo e de outros Estados brasileiros também se associaram à Libelu. 

O grupo se popularizou e passou a chamar a atenção tanto de outros militantes como do regime militar. Mas teve vida curta, conforme o País entrou nos últimos anos da ditadura. “No começo dos anos 1980, o que acontece de mais interessante no panorama da oposição política já não é mais o movimento estudantil. É o movimento operário”, explica Muniz.

O objetivo do documentário é “amarrar as pontas soltas desse período de terra arrasada” em que a luta estudantil teve destaque, segundo o diretor. Para ele, a Libelu não foi uma “combustão espontânea”. Há uma linha cronológica bem marcada por eventos conhecidos: os assassinatos do líder estudantil e estudante de Geologia da USP Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, e do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e a invasão da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo pela repressão, em 1977. “Mas são fatos pouco conectados quando se busca na historiografia. Há bons estudos na academia, mas poucos trabalhos como livros ou filmes. A ideia era conectar essas histórias a partir de um objeto que achávamos muito fascinante, que é a Libelu”, afirma.

Uma assembleia da Libelu, nos anos 70 – Foto: Divulgação

 

“Nossa ‘religião’ permitia tocar rock”

Uma das razões para a popularidade da Libelu foi sua personalidade e sua relação singular com a arte e a cultura. O jornalista e professor da ECA Eugênio Bucci — um dos entrevistados no documentário — entrou na ECA em 1978 e logo se filiou ao Centro Acadêmico Lupe Cotrim. Mais tarde, também estudou na Faculdade de Direito da USP, onde foi presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1985. “Na Libelu, chamava muita atenção o grau de cultura sobre estética e sobre a dimensão que eu chamo de extrapolítica. Isso tinha um peso muito grande no que eu valorizava”, afirma o professor.

Pelo alinhamento ideológico, em determinado momento Bucci foi recrutado para a OSI. Ele se identificava com os fundamentos teóricos do trotskismo que inspiravam o grupo, como as ideias de internacionalismo e de revolução permanente. “Outro pensamento de Trótski, que trago até hoje, é a de uma revolta contra a instrumentalização da arte. Ela é um domínio próprio, não se subordina a causas políticas”, explica o professor. 

Em relação a outros grupos de militância, Bucci e seus colegas pensavam que a Libelu era “mais inteligente, tinha mais vivacidade e repertório e uma concepção menos rudimentar”, diz. Esse “horizonte mais arrojado”, nas palavras do professor, era um atrativo.

Eugênio Bucci, hoje professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em uma assembleia estudantil, durante a ditadura militar – Fotos: Divulgação e arquivo pessoal

 

Segundo o diretor Diógenes Muniz, a Liberdade e Luta “era uma tendência barulhenta, que chamava atenção pelo comportamento, que na época talvez fosse considerado chocante inclusive dentro da esquerda”. Enquanto outros jovens valorizavam a MPB, em suas populares festas os libelus — como eram conhecidos os militantes da Libelu —aderiam à música estrangeira. “Eles eram internacionalistas, e isso se reflete não só na política, mas também no consumo que fazem e no trânsito que têm com a cultura e com a arte”, afirma Muniz. “Muita gente falava das festas da Libelu, eram ótimas. Tínhamos a nossa ‘religião’, que permitia tocar rock, enquanto militantes do movimento estudantil de algumas organizações falavam que o rock era música imperialista”, relembra Bucci. 

“Abaixo a ditadura”

O aspecto essencial que dá relevância a essa tendência estudantil, para Muniz, foi “uma ótima leitura de conjuntura e ótimas decisões tomadas a partir dela. Nem sempre é tão simples dizer em que momento político se está e o que fazer a partir disso”.

Para Bucci, o sucesso do movimento também se deu por esse acerto de discurso, proveniente de uma análise acurada. “Uma leitura política importante, e que o documentário tenta enfatizar, é que a Libelu chamava a ditadura de ditadura. Essa palavra de ordem é da maior importância, porque a mensagem política dirigida pelos estudantes era direta, clara”, diz o professor.

Além disso, para Bucci, as lideranças da Libelu — que define como “incomparáveis” — tinham inteligência e carisma que faziam diferença no engajamento dos estudantes. O professor relata que era comum agentes da repressão comparecerem disfarçados às assembleias estudantis para fotografar os participantes, e por isso era hábito cobrir o rosto quando havia cliques. “Eu me lembro de uma vez em que um estudante, o hoje jornalista Ricardo Melo, se levantou e falou que quem tinha que esconder o rosto e o que fazia não éramos nós, mas sim eles. Aquilo foi uma libertação. Essas lideranças eram faróis no meio dos estudantes.”

Para Bucci, a Libelu foi um movimento político e estético de uma geração, com importância cultural. Mas a visão de que o movimento estudantil era feita por “candidatos a heróis”, em suas palavras, não o agrada. “Nós já tínhamos tido uma geração imediatamente anterior em que pessoas foram perseguidas, assassinadas e tiveram seus corpos desaparecidos. Esse pessoal foi herói, mas não era essa a nossa perspectiva”, diz.

Palco das assembleias estudantis

A produção de Libelu – Abaixo a Ditadura durou cinco anos, entre uma abrangente fase de pesquisa e pré-entrevistas, realizadas por Muniz e pela jornalista Bianka Vieira, e as gravações de fato. Para reconstruir a história no filme, foram entrevistados 20 ex-militantes da Liberdade e Luta — hoje artistas, políticos, jornalistas e economistas — para investigar como eles, mais de 40 anos depois, enxergam o movimento e sua atuação na época. Além de Bucci, dão seu depoimento no filme os jornalistas Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli e Cadão Volpato e o economista Eduardo Gianetti, entre outros.

A gravação de todas as entrevistas para o documentário aconteceu na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP – Foto: Divulgação

 

Para a gravação das conversas, o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP foi utilizado como única locação. Embora muitos dos entrevistados tenham estudado na ECA, a equipe percebeu nas pré-entrevistas que a FAU trazia muitas lembranças devido às assembleias estudantis que aconteciam ali — foi uma espécie de palco para aqueles acontecimentos. Uniram-se às memórias a beleza do projeto, obra do arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) — também um perseguido pela ditadura militar —, e o orçamento limitado, que impedia várias locações. Além disso, havia o desejo de estabelecer as mesmas circunstâncias de conversa para todos os participantes. “Esse plano vinha um pouco da tentativa de convencê-los a falar com a gente. Muitas das pessoas que estão ali não se falam há décadas ou até se desprezam. Era importante que as condições fossem semelhantes, para todos se sentirem confortáveis para falar”, acrescenta Muniz.

Cartaz do filme Libelu — Abaixo a Ditadura – Foto: Divulgação

No início, o diretor se interessava por entender o desenrolar da vida desses personagens, que foram revolucionários mas seguiram caminhos tão diversos. A maioria não seguiu a carreira política, alguns passaram por mudanças ideológicas. “Ao longo da produção isso foi se amenizando, porque percebemos que era mais curioso ouvi-los formulando como tudo isso se dá na vida deles. Não é tanto sobre se a pessoa virou x ou y, se foi para a direita ou para o centro. É o quanto ela fez essa análise para si mesma, pensou sobre desejos e recalques, do que se arrepende ou não”, reflete Muniz. 

Ele exemplifica isso com a participação de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil. “O caso dele é bastante curioso para mim. Foi um jovem radical, idealista, se tornou um exemplo público, e mais tarde foi preso pela Lava Jato.” A entrevista, concedida em prisão domiciliar, foi difícil de conseguir, mas Muniz considera o relato surpreendente. “Palocci fala, por exemplo, que, talvez, se não tivesse ‘dançado conforme a música’, seria uma pessoa melhor hoje”, conta o diretor.

Ele destaca também uma cena com o jornalista Ricardo Melo, ao ser perguntado sobre os rumos da revolução. “Ele diz que, se soubesse, não estaria ali dando entrevista para mim. Penso que ele não falaria isso para alguém da mesma idade, ou que viveu aquilo com ele. E acho isso precioso, tem que fazer parte do filme”, completa o diretor. 

Assista no link abaixo ao trailer oficial do filme Libelu Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz.

O filme Libelu — Abaixo a Ditadura está em cartaz nos cinemas e chega em 27 de maio às seguintes plataformas de vídeos on demand: Now, Vivo Play, Oi Play, Google Play, Itunes, YouTube Filmes e Apple TV. No dia 20 de julho, será exibido pela primeira vez no Canal Brasil. Confira o trailer do documentário aqui.


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