Exposição Rastro dos Restos flagra o nosso tempo

Em 80 obras, Ricardo Ribenboim revela, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, a violência do homem e da destruição da natureza

 17/11/2023 - Publicado há 12 meses     Atualizado: 29/11/2023 às 13:25

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Joyce Tenório*

Autorretrato de Ricardo Ribenboim - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O desenho do tempo. É essa a sensação que a exposição Rastro dos Restos parece compor. O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP traz 80 obras de Ricardo Ribenboim, produção recente que instiga os sentidos e questiona a realidade com a sua violência, a destruição do homem e da natureza. O público vai rastreando as esculturas de madeira. E há de se lembrar de Franz Krajcberg recolhendo árvores destruídas para povoar, com seus troncos, os campos da arte.

Ribenboim segue o legado de Krajcberg. Expressa a sua força de proteção à natureza, porém com seu jeito próprio e inusitado de sentir e criar. As madeiras ganham novas formas e, aliadas às peles, fios e tecidos, dialogam com o espaço do cotidiano da vida e da cidade. 

“Uma lona manchada e guardada por anos faz a vez da tela. O artista não espera uma superfície incólume. Pelo contrário, o movimento inicial está em trabalhar a partir da mancha, do furo ou rasgo que despertam a próxima jogada”, observa a curadora Rachel Vallego, doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP.  “Ali o artista reúne outros materiais, brinca com eles, uma obra provoca a próxima, que modifica a anterior. O procedimento da colagem com todo tipo de material disponível no ateliê, incluindo obras antigas ou seus fragmentos, é continuamente revificado, gerando novos enigmas. Ribenboim experimenta diversas combinações, a obra somente é dada como concluída quando sai para alguma exposição ou coleção.”

O espectador vai seguindo os restos, os rastros, e é envolvido por um aroma que se espalha pelo espaço. Logo se depara com um arco de madeira apoiado em dois blocos brancos de cânfora. “Achei interessante a forma como o artista se utilizou dessa planta”, diz Adriana Reis Andrade, farmacêutica, especialista em Cosmetologia, que veio com a mãe, dona Maria Elvira, visitar o MAC. “Vim ver essa exposição e fiquei contente por perceber a arte buscando um recurso da natureza. Talvez para purificar o ar, eliminar bactérias. Ou simplesmente para trazer um toque agradável ao olhar.” 

No meio do arco, pregada na parede está a obra Teresa, com tranças de tecidos coloridos e diversos que se estendem pelo chão. “Quem será a Teresa que inspirou uma obra tão interessante?”, pergunta dona Maria Elvira.

Uma lona manchada e guardada por anos faz a vez da tela. O artista não espera uma superfície incólume. Pelo contrário, o movimento inicial está em trabalhar a partir da mancha, do furo ou rasgo que despertam a próxima jogada.” (Rachel Vallego)

“A trajetória artística do paulistano Ricardo Ribenboim é tão significativa quanto a de gestor cultural”, explica a curadora Rachel Vallego. “Foi aluno de Evandro Carlos Jardim e da Escola Brasil, sob orientação de José Resende e Carlos Fajardo. Em 1974, participa da Bienal de São Paulo. Trabalha como designer gráfico entre os anos 1970 e 1990. Nos anos 1980, cria o Museu Brasileiro do Papel, posteriormente incorporado ao MAC. Foi diretor do Paço das Artes em 1996, que o leva à direção do Itaú Cultural entre 1996-2002, sendo responsável pela criação dos Eixos Curatoriais, das enciclopédias em meio digital e do Programa Rumos – que considera uma de suas grandes obras.”

Como bem observa a curadora, “Ribenboim engloba as várias facetas da produção, tanto ao produzir grandes exposições e projetos culturais como sua própria produção artística”. Parte das obras que estão no MAC também foi apresentada, em 2022, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, com a curadoria de Yuri Quevedo, mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. 

“Cacos, gravetos, retalhos, cera. Cola, tinta, letras, lonas. Entulho, escombros, restos, sarrafos. Troncos calcinados, raízes do mangue usinadas, metais fundidos, chapas enferrujadas”, aponta Quevedo. “Fragmentos do ordinário, do urbano e de outros ecossistemas combinados – interações provisórias entre o que é fabricado e o que brota, cresce e morre. Restos do cotidiano do ateliê. Rastros do trabalho do artista. Memórias de sua trajetória. O que Ricardo Ribenboim nos apresenta nesta exposição é seu programa para lidar com a passagem do tempo: sem assombro, ele entende o curso da história e a finitude das coisas, deixa o tempo agir e transformar o todo em apenas vestígios. Então, ele os recolhe. Considera de cada um o significado, seleciona trechos de sentido. Anima cada um deles, arrastando-os para o presente.  A partir da lembrança, Ribenboim propõe a singularidade.”

O que Ricardo Ribenboim nos apresenta nesta exposição é seu programa para lidar com a passagem do tempo: sem assombro, ele entende o curso da história e a finitude das coisas, deixa o tempo agir e transformar o todo em apenas vestígios. Então, ele os recolhe.” (Yuri Quevedo)

Quem Mandou Matar Marielle é o questionamento da obra de madeira calcinada e cera feita em 2018. Integra o acervo Itaú. A violência do fato ocorrido há cinco anos e oito meses, quando a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram assassinados, é lembrada na mostra. Os suspeitos pelo duplo homicídio estão presos. Mas Ricardo Ribenboim protesta contra os mandantes da execução.

Bala Perdida é o título de outra obra. Uma série de balas de verdade, todas na mesma direção, sugerindo um alvo certeiro, faz parte do desenho emoldurado.

Há também outra escultura que traz os resíduos do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro. E outra que lembra a violência no Oriente Médio.

Junto da realidade, há também os sonhos no horizonte. “O que será que significa essa escultura estranha?”, perguntam duas jovens ciclistas, que estavam no Parque Ibirapuera e resolveram ver a exposição. As amigas Jussara Nunes, 16 anos, e Mariana Castro, 14 anos, param diante de uma obra com três bases de madeira pintadas de preto. Ficam olhando atentas sem entender, até que o segurança Renato Bento Xavier pede licença para explicar: “São três cisnes negros”. E continua: “Estão vendo os bicos como são bonitos e bem delineados?”.

A fotógrafa do Jornal da USP, Cecília Bastos, se admira com a postura sensível de Renato e pede para fotografá-lo. Mas ele faz questão primeiro de pedir autorização de sua chefia. Devidamente autorizado, conta orgulhoso: “Sabe que eu gostei desta obra desde quando o artista estava buscando um lugar no espaço para ela? Ele tinha colocado lá naquela direção, perto dos elevadores, e eu opinei dizendo que ficava melhor aqui. Estaria bem mais visível e fiquei feliz porque o artista acatou. Aí olhei para essa escultura e a batizei por minha conta de Cisnes Negros”.

Uma história que, quem sabe, vai para o memorial do artista. “No período de pandemia, enclausurado em meu ateliê, trabalhei com tudo que tinha ao meu redor”, explica Ribenboim. “Letras que guardei que me fazem lembrar a Mira Schendel, pedaços de madeira, ferro, chapas de cobre de gravuras, cera, borracha e resíduos de outros tantos materiais. Construí, assim, um novo conjunto de obras que são eixos, pontos cardeais, prumo, quilha, leme, espinha dorsal que ancoram aquilo que intitulei de Miradas.”

Poemas também são referências importantes para o artista, como ele próprio argumenta. Na sua memória está sempre presente, por exemplo, o poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, que afirma: 

De tudo ficou um pouco.

Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco

Ficou um pouco de luz

captada no chapéu

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco.

(Muito pouco.)


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