Exposição no MAC traz o mundo interior de Eleonore Koch

Pinturas, fotografias, cartões postais e estudos da artista estão em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP até 17 de julho

 Publicado: 19/04/2024

Texto: Lara Paiva*

Arte: Joyce Tenório**

Entrada da exposição Eleonore Koch: em Cena, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP apresenta a exposição Eleonore Koch: Em Cena, com curadoria da professora Fernanda Pitta. São 190 obras da artista naturalizada brasileira, conhecida por suas pinturas de paisagens, interiores e naturezas-mortas com atenção à composição e cor.

De origem judia-alemã, Eleonore Koch (Berlim, 1926-São Paulo, 2018) era criança quando sua família fugiu do nazismo e se estabeleceu em São Paulo. Muitos de seus quadros retratam espaços sem presença humana, como um cenário antes ou depois da consumação de uma cena. Koch pintava com têmpera, técnica que garantia a pureza da cor na tela, e permitia que a artista explorasse contrastes e tensões. Produzia muitas versões de um mote, mudando apenas elementos e cores, resultando na produção de sensações diferentes no público a cada variação.

A exposição é dividida em quatro núcleos: A Cena, Interiores, A Importância do Objeto e O Método. A estrutura referencia o cinema, uma das paixões de Lore, como a artista também era conhecida. “A primeira sala tem paisagens, uma espécie de visão panorâmica. Depois os interiores, que são os planos médios, e as naturezas-mortas, os detalhes; são três tipos de ‘tomada’”, explica Fernanda Pitta, que pesquisa a artista há mais de dez anos. “O Método traz a ideia da montagem: pelos estudos, podemos ver como ela monta e compõe as cenas.”

Koch trabalhou com cenografia e foi uma cinéfila ferrenha. No arquivo, álbuns da década de 1940 até 1990 mostram recortes de filmes assistidos por ela. A curadoria explorou o diálogo da obra com a sétima arte e como os filmes impactaram seu método e linguagem artística. “Há um olhar cinematográfico no jeito de compor a cena: os enquadramentos, os pontos de vista, a relação entre a visão panorâmica e o detalhe”, aponta Fernanda. Para ela, a sensibilidade de Eleonore Koch remete à de um olho treinado pelo cinema a ver imagens.

A curadora Fernanda Pitta - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Na mostra, chama a atenção a ausência de presença humana. As únicas duas telas são retratos dos filhos de Alfredo Volpi, ícone do Modernismo que serviu de “mentor” para Eleonore no início de sua carreira como pintora. A artista pintou objetos e paisagens, aproveitando os mesmos elementos em várias obras. A mesma palmeira figura em paisagens do Rio de Janeiro, do Egito e da Califórnia, como em uma colagem. “Eles reaparecem como personagens no cinema silencioso do trabalho dela”, expressa Fernanda Pitta. A artista tinha como método a repetição com variação de cores, criando assim diferentes contrastes. 

Para André Maia, estudante de História, em visita à exposição, a força da cor foi a primeira impressão da mostra. “É muito diferente presencialmente, tem uma profundidade. É algo para ver ao vivo mesmo”, opina.

Mesmo com o passar das décadas, voltam os mesmos móveis, sozinhos ou em duplas, com variação de cor, em cômodos solitários, nas pinturas de Eleonore Koch. A pintura de interiores (Zimmerbilds) foi popularizada na burguesia europeia do século 17, mas, a partir do século 19, artistas passaram a expressar sua subjetividade por meio dos objetos. É o caso dos interiores de Eleonore: Fernanda aponta que não são só objetos representados, mas agentes e personagens da vida dela. “Eles são levados a sério e têm uma presença, são signos importantes de uma experiência”, comenta. “É curiosa a ideia de que a pintura de Eleonore seja solitária. Ela está impregnada de vida: uma vida mediada pelas coisas que estão no dia a dia dela, prenhe de memórias e lembranças.”

Para André Maia, os espaços desabitados despertam a curiosidade e a imaginação: o instinto é imaginar qual “cena” se passaria ali. Já para Pedro Menezes, estudante de Letras, também em visita à exposição, destaca-se o apreço de Eleonore pelo comum e cotidiano. “No primeiro momento, eu estranhei não ter pessoas”, diz. “Mas o que é dela diz muito sobre ela. Como artista, ela se revela pelas coisas que registra; e tem muito dela ali.”

Associando elementos e relações de cor, Eleonore Koch gera obras distintas umas das outras, transformando a reação ao quadro.  Fernanda Pitta considera que o objetivo não é a representação fidedigna, mas sim a síntese de uma visão. “Esse é o grande foco da pintura dela: pensar as sensações que as cores causam através da pintura. Não à toa, ela usa a técnica da têmpera.” A têmpera data da arte medieval; combina-se um pigmento com um aglutinante, como água ou gema de ovo. “Com a pureza da cor, ela experimenta essas misturas nas composições e estuda as variações com muita variedade”, explica a curadora.

Eleonore Koch em 1959 - Foto: Reprodução

Lore Koch, “a única discípula de Volpi”

Em obituários, a artista era identificada como a única discípula de Alfredo Volpi. Sua carreira ficou relacionada com a figura do modernista, mesmo após se tornar independente. Ela aprendeu a técnica da têmpera com Volpi, mas desenvolveu sua própria receita, que, hoje, faz parte da coleção do Núcleo de Conservação e Restauro da Pinacoteca de São Paulo.  Seu estudo de cor levou-a a um caminho diferente; sua pintura meditativa e introspectiva põe mais ênfase em contrastes, explica Fernanda Pitta. A curadora considera que Eleonore precisa ser reconhecida pelas suas especificidades para que sua obra seja vista de verdade.

As obras de Eleonore dialogam com o movimento concretista, mas ela não se encaixa numa corrente artística específica. Fernanda considera que a falta de reconhecimento a ela em vida foi por ter sua figura atrelada a Volpi, pela questão do gênero e por não se encaixar nos grandes “debates” que a historiografia da arte no Brasil se dedicou a analisar. Na discussão entre o abstracionismo e o figurativismo, Lore Koch trilhou seu próprio caminho. Ela se emancipa de Volpi ao se mudar para o Rio de Janeiro e passa a representar paisagens e aumentar a escala dos quadros. Quando vai à Inglaterra, ela se dedica integralmente à pintura e experimenta com combinações de cores mais ousadas, definindo seu estilo característico. “É a partir desse momento que se observa mais sistematicamente a questão da serialização e repetição”, comenta Fernanda sobre a produção da artista a partir da década de 1960.

Mesmo não pertencendo a uma vertente particular, a obra de Eleonore Koch dialoga com a de outros artistas da sua época, principalmente os pertencentes à coleção de seu curador, Theon Spanudis. A influência de artistas pop britânicos dos anos 1960 e 1970 fomentou a serialização de suas pinturas durante seu tempo na Inglaterra, onde viveu entre finais da década de 1960 e a década de 1980. Outra referência foi Josef Albers, autor de A Interação das Cores. “Ela traz para o dia a dia como a cor impregna o nosso cotidiano”, expressa Fernanda Pitta. A melancolia, afeto, sensibilidade, memória, carinho e a importância dada aos objetos que representam lembranças dão densidade à obra. “Isso tem a ver com a própria experiência de Eleonore com a vida em exílio que ela sempre viveu. Essa forma bastante cerebral da pintura acaba ganhando o caráter de experiência por meio das cores”, opina a curadora.

Um novo olhar

O MAC programa a exposição Em Cena há dois anos, mas a revisão histórica é fruto de um trabalho de pesquisa de uma década por Fernanda Pitta. O interesse por Eleonore Koch veio da variedade gerada a partir da repetição metódica, assim como da forma como a artista atualiza a pintura para lidar com temas contemporâneos. Mesmo com uma obra extensa e instigante, a artista é pouco estudada e conhecida. Com essa exposição retrospectiva, o museu busca apresentar Eleonore Koch a um público mais amplo e estimular uma revisão dessa produção. “A história da arte e da pintura no Brasil deu pouco espaço para olharmos para produções como a dela”, diz Fernanda Pitta.

O MAC é o museu público com mais obras da artista. O curador Theon Spanudis doou seu acervo ao museu. Para a  exposição, foram emprestadas obras do Museu de Arte de São Paulo (Masp), da Pinacoteca e do Museu de Arte Moderna (MAM). Mas o destaque é o arquivo pessoal da artista, sistematicamente organizado com fotografias, correspondências, recortes de jornal e documentos pessoais. Os herdeiros de Koch doaram seu espólio para que pesquisas possam ser desenvolvidas a partir do trabalho da artista.

Com uma grande quantidade de obras da artista, o MAC visa a entender seu processo de produção por meio da comparação. Eleonore Koch vai ser um dos casos de estudo do Centro Multiusuário de Ciência do Patrimônio do museu – em fase de desenvolvimento -, onde serão feitas análises técnicas com Raio X, infravermelho e ultravioleta, entre outras. É uma colaboração com a professora Márcia Rizzutto, do Instituto de Física da USP, que já pesquisou sobre a materialidade de obras no Masp e no Museu Paulista.

O objetivo de Fernanda Pitta é que o público descubra e seja tocado pela obra de Eleonore Koch. “Algumas pessoas se identificam com certos objetos ou paisagens e conseguem estabelecer uma relação. Ela conta com isso – o fato de as coisas falarem com as pessoas. Mas ela tem ciência que não é uma experiência universal”, ressalta. “Somos um museu universitário, queremos que a exposição gere pesquisas, atividades de extensão e produção de conhecimento dentro do espaço acadêmico.”

Eleonore Koch: Em Cena fica em cartaz até 17 de julho de 2024, de terça-feira a domingo, das 10 às 21 horas, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis no site do MAC.

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
**Estagiária sob supervisão de Simone Gomes de Sá


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