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Exposição na USP propõe reflexões sobre o atual cenário político global
Desenhos da artista irlandesa Rita Duffy no Centro MariAntonia revelam seus desconfortos frente ao constante estado de crise no mundo
A exposição faz parte do XIX Simpósio de Estudos Irlandeses na América do Sul – Foto: Divulgação/Centro Universitário MariAntonia – USP
A arte leva experiências individuais ao encontro de vivências históricas e políticas coletivas. Ao menos, é o que acontece nos desenhos da artista plástica irlandesa Rita Duffy na exposição Entanglement/Emaranhado, no Centro MariaAntonia. Até 5 de janeiro de 2025, está disponível aos visitantes uma coleção de trabalhos em papel que propõe a interação entre discussões do cenário político global – como mudanças climáticas e disputa de poder – e traumas vivenciados por Rita durante anos de conflitos violentos na Irlanda do Norte.
Ao apresentar caricaturas, representações grotescas de corpos e imagens perturbadoras, a artista direciona seu traço ao incômodo do espectador – ao mesmo tempo em que revela o seu próprio. “Por meio do desenho, Rita retrata a instabilidade social e o constante estado de crise a partir de seus próprios desconfortos”, comenta Laura Izarra, curadora da exposição e coordenadora da Cátedra de Estudos Irlandeses W. B. Yeats da USP.
A visão crítica presente nas obras de Rita é intensamente atravessada pelas vivências da artista em meio às disputas armadas no território norte-irlandês – período conhecido como The Troubles. A Irlanda do Norte, formada em 1921, é uma região britânica que faz parte do Reino Unido, enquanto o resto da ilha se tornou um país independente, a República da Irlanda, que integra a União Europeia. De 1966 a 1998, a população se dividiu entre aqueles que desejavam a Irlanda do Norte dentro do Reino Unido, os unionistas, e aqueles que queriam ela junto à República da Irlanda, os nacionalistas.
Rita Duffy nasceu em 1959 na cidade de Belfast, capital da Irlanda do Norte, onde presenciou parte dos conflitos entre os grupos. “Ela traz traumas como os de cruzar com soldados britânicos atacando manifestantes e ouvir bombardeios de dentro da sala de aula”, conta a curadora da exposição.
A partir da crise política entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda vivida durante sua juventude, a artista utiliza o choque e a sátira para trabalhar temas latentes no século 21 – como democracia em risco, depredação do meio ambiente, estereotipação dos corpos das mulheres e impactos da pandemia de covid-19 nas relações sociais.
Laura Izarra também é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP - Foto: Fernanda Rezende/IEA-USP
Nas paredes da sala principal estão expostas as três séries de trabalhos de Rita Duffy - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Os traços de Rita Duffy
Na primeira sala da exposição, o visitante encontra três séries de desenhos: Bouffant (Cabeleira Bufante), The Emperor Has No Clothes (O Imperador Não Tem Roupas) e At Sixes and Sevens.
A primeira é formada por uma seleção de seis trabalhos que apresentam imagens de mulheres com cabelos extravagantes, de forma a remeter aos penteados excêntricos da rainha Maria Antonieta e da corte francesa antes da Revolução. O olhar atento aos desenhos permite a observação não só dos fios de cabelo, mas principalmente da variedade de figuras humanas e animais envoltas neles.
Laura aponta que as feições assustadoras e provocantes desses personagens sugerem as perturbações frequentes que perpassam o subconsciente feminino, como a violência contra seus corpos, a crescente crise climática e a desestabilização dos sistemas políticos. “Rita retrata grandes preocupações das mulheres hoje em dia”, afirma.
Em meio aos cabelos das mulheres representadas, surgem personagens inesperados - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Rita Duffy utiliza humor e sátira para criticar Donald Trump - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Já em The Emperor Has No Clothes, o destaque da série de dez desenhos é a crítica satírica e humorística que a artista direciona ao comportamento autoritário do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Nos desenhos, feitos durante a pandemia de covid-19, o político aparece sem roupas e sua imagem é distorcida.
Um dos trabalhos lembra a obra Gargantua, de Honoré Daumier, que retrata o Rei Luís Felipe I da França como um homem obeso que expele documentos de suas nádegas enquanto engole ouro. Nas mãos de Rita, o rei é substituído por uma figura semelhante a Trump.
O título da terceira série de desenhos, At Sixes and Sevens, faz referência a uma expressão idiomática que descreve confusão e desordem, com origem em uma antiga disputa entre duas guildas comerciais na cidade de Londres, a Merchant Taylor Guild e a Skinners Company. Com traços mais robustos em relação aos das séries anteriores, os oito projetos da sequência remetem ao caos e ao desconcerto à medida que representam o cenário violento de Londonderry, segunda maior cidade da Irlanda do Norte.
A exposição une temas como história, política e individualidade - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
The Raft
Ao adentrar a segunda sala da exposição, o visitante se depara com uma imponente fotomontagem que ocupa grande espaço nas paredes do local – a obra The Raft. Na imagem, uma balsa em meio ao mar agitado carrega um grupo de homens que aparentam desespero. Enquanto o mastro da embarcação leva a bandeira do Reino Unido, um indivíduo à direita ergue a bandeira da República da Irlanda.
O projeto é uma reinterpretação da pintura A Balsa da Medusa, do francês Théodore Géricault, e se constitui como uma resposta à política britânica do Brexit. Até 2020, tanto a Irlanda do Norte como a República da Irlanda integravam a União Europeia. Após o Brexit, o Reino Unido – e, por consequência, a Irlanda do Norte – deixaram a organização.
Laura explica que a medida britânica reacendeu conflitos históricos entre os dois países. Para representar os embates políticos e identitários existentes entre a fronteira, Rita convidou jovens do Norte e do Sul a posarem como sobreviventes para as fotos da obra. Amarradas em suas cabeças, eles levam bandeiras sectárias recolhidas de bairros rivais em Belfast.
Apesar da aparente situação precária dos homens na embarcação, o visitante que se atém aos detalhes percebe novamente o teor satírico da artista ao observar a fartura de alimentos na imagem. “Rita tece uma crítica muito humorística, já que os homens na balsa não morrerão de fome, já que têm todos os ingredientes necessários para fazer o tradicional guisado irlandês”, comenta Laura.
A curadora ainda destaca a presença de um navio que simboliza o naufragado Titanic prestes a colidir com um iceberg nos fundos da imagem. “O único barco que poderia salvá-los é o Titanic, que está afundando. Então, a conotação crítica é a de que o Brexit também levará o Reino Unido, a Irlanda e toda a Europa a afundar.”
Por meio de composição fotográfica, Rita Duffy critica o Brexit - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
No emaranhado, todos os pontos se conectam
O título Entanglement/Emaranhado é inspirado em Einstein e John Bell, físico de Belfast, que afirmou que “todas as partículas individuais que, em algum momento, estiveram correlacionadas umas com as outras, na verdade permanecem conectadas e parecem manter um vínculo de memória com outras em uma dinâmica e ‘assustadora anomalia’”.
A escolha de relacionar o título da exposição com o apontamento de John Bell é indicado por Laura como uma forma da artista evidenciar a conexão entre os embates políticos vividos pela humanidade na atual crise global e ambiental.
+ Mais informações
Serviço: Exposição Entanglement/Emaranhado de Rita Duffy
De 11 de outubro a 5 de janeiro
Visitação: terça a domingo, e feriados, das 10 às 18 horas
Centro MariAntonia – Edifício Joaquim Nabuco:
Rua Maria Antônia, 294 – Vila Buarque – São Paulo, SP
Entrada gratuita
Informações | (11) 3123-5202
*Estagiária supervisionada por Marcello Rollemberg
**Estagiária supervisionada por Moisés Dorado
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