Fotomontagem feita com imagens de divulgação e Freepik

Erotismo em Mário de Andrade ganha livro inédito

Volume reúne textos consagrados e raridades, chamando atenção para faceta pouco estudada do autor modernista

 23/05/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Luiz Prado

Arte: Guilherme Castro

A presença da sexualidade e do erotismo na obra de Mário de Andrade (1893-1945) acaba de ganhar um volume inédito, que reúne excertos de romances, contos, poemas, artigos e correspondências, inclusive materiais raros, produzidos ao longo de toda a carreira do autor modernista. Trata-se do livro Seleta Erótica de Mário de Andrade, organizado por Eliane Robert Moraes, professora de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A obra oferece ao leitor a oportunidade de conhecer o que e como Mário escreveu sobre sexo, sensualidade, homoerotismo e seus correlatos. Além disso, reposiciona o erotismo na trajetória intelectual do autor, realçando sua centralidade e constância ao longo de sua produção.

Nas 320 páginas que compõem o volume, Eliane apresenta trechos dos romances Macunaíma e Amar, Verbo Intransitivo, recortes de correspondências que Mário trocou com nomes como Manuel Bandeira, Fernando Sabino e Sérgio Milliet, poemas de Pauliceia Desvairada, parágrafos de Contos Novos e mais uma série de escritos, alguns raros e inéditos. O resultado é um conjunto que desperta as atenções para uma faceta ainda pouco estudada do autor.

“Considero esse livro como um convite a pesquisadores que gostam do Mário de Andrade para aprofundar essa pesquisa”, declarou Eliane em entrevista ao Jornal da USP. “É um começo de trabalho. Acho que a erótica do Mário ainda pode render muito.”

A obra traz não só o que o autor escreveu, mas também o que deixou de escrever, como é o caso de um trecho de Macunaíma censurado pelo próprio Mário, retirado do livro após sua primeira edição. Texto que abre a seleta, o excerto chama a atenção não só pela sua obscuridade, mas por tematizar uma troca de correspondências com Manuel Bandeira.

Eliane Robert Moraes - Foto: Renato Parada

A professora Eliane Robert Moraes: “Mário de Andrade afirmou o domínio de Eros o tempo todo, pela música, pelo apreço que tinha pela dança, pelo popular” — Foto: Renato Parada

Já os escritos perpetuados por sucessivas edições ao longo dos séculos 20 e 21 ganham novas miradas a partir da apresentação que Eliane faz ao volume. Dentre eles estão Frederico Paciência, retirado de Contos Novos e reproduzido na íntegra, e o poema Girassol da Madrugada, também motivo de conversas do autor com Bandeira.

Seleta Erótica de Mário de Andrade é resultado de um projeto que Eliane desenvolveu no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, durante sua participação no Programa Ano Sabático, em 2021. Durante os trabalhos, a docente contou com a colaboração das pesquisadoras Aline Novaes de Almeida, que assina o posfácio do livro, e Marina Damasceno de Sá, ambas também empenhadas em produções acadêmicas sobre Mário de Andrade.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista da professora Eliane Robert Moraes ao Jornal da USP.

Por que o tema da sexualidade e do erotismo em Mário de Andrade merece a atenção que a senhora dispensou na elaboração dessa seleta?

Eu trabalho com a erótica literária há muito tempo e já trabalhei com muitos autores, não só brasileiros como também estrangeiros, notadamente europeus, muitos franceses. Então, antes de tresponder eu digo o seguinte: o erotismo é um tema que aparece em quase toda a literatura. É difícil encontrar uma obra que não tenha nada de erótica.

Agora, há autores que dão muita atenção ao erotismo em suas obras e autores que só dão atenção ao erotismo, como Pietro Aretino, no Renascimento, o Marquês de Sade, no século 18, e Georges Bataille, no século 20. Esses são os grandes pornógrafos da literatura ocidental, que só olham para aquilo”, como se diz em português, aqui na nossa fala brasileira, para nos aproximarmos de Mário de Andrade.

rio está nessa categoria de autor que dá muita atenção ao erotismo. E eu diria que, dentro desse espectro grande que é o Modernismo brasileiro, não há nenhum autor que tenha explorado tanto a questão erótica quanto ele. Então, o Mário efetivamente ocupa um lugar particular quando pensamos nessa questão. Ela aparece de uma forma significativa na obra de Oswald de Andrade, em Manuel Bandeira e em outros autores, mas no rio a questão erótica atravessa a obra inteira. Você passa por ela e encontra sempre essa tensão. Foi isso que me chamou a atenção.

Até a publicação dessa seleta erótica, o que de mais relevante havia sido produzido sobre o tema do erotismo na obra de Mário de Andrade?

Acho que esse é o primeiro livro que aborda o erotismo em sua obra. Quero dizer, estou pensando aí o conjunto. Como conjunto, acredito que o livro tenha esse ineditismo. O que não quer dizer que não haja trabalhos pontuais abordando a questão erótica neste poema ou naquele romance, nesta ou naquela obra em particular.

Há algum tempo essa questão erótica se tornou um problema para a crítica, porque a homossexualidade do Mário tornou-se um problema. Levou muito tempo não para ele sair do armário, mas para a crítica sair.

O Mário foi um autor que formulou muitas questões ligadas à identidade brasileira, ele foi muito feliz nisso, fez com muito vigor e tem uma obra muito robusta. Portanto, a faceta mais conservadora da nossa sociedade me parece que não admitia que um autor emblemático da identidade brasileira pudesse ser abordado na via erótica. Havia uma coisa um pouco difícil aí.

É o que eu digo na apresentação do livro: juntar a “coisa em si” com a coisa brasileira não era muito fácil. Por conta de um conservadorismo que não é do Mário. O grande livro em que ele discute a questão da identidade brasileira é também um dos mais eróticos, o Macunaíma. Ali tem sexo do começo ao fim. Mas parece que se passou muito por cima disso e não se quis ver. Macunaíma foi muitas vezes “limpo” para representar a identidade brasileira.

Assim, há várias questões em jogo quando falamos do Mário. Há essa dificuldade em juntar a coisa brasileira ao sexo e a dificuldade de juntar isso ao fato de o Mário ser homossexual. Isso, digamos assim, atravancou um pouco as pesquisas.

Mas a questão do erotismo é tão forte nele que apareceu em vários estudiosos, alguns, por exemplo, ligados à psicanálise. Mais recentemente, o número de estudos vem aumentando e tocam mais fortemente na queso do homoerotismo. Eu gosto muito de tudo que o sar Braga Pinto escreveu. Ele tem feito um trabalho genial, muito voltado para a questão homoerótica, com muito vigor e atenção.

No texto de apresentação do livro a senhora escreve o seguinte: “Pulsante e permanente, essa inquietação – a inquietação do Mário em torno do sexo – se traduz tanto na exploração do domínio erótico, de notável amplitude, quanto na incessante busca formal que o tema lhe impõe sem descanso”. Como essa relação entre tema e forma aparece ao longo da produção do autor?

No caso do rio, a questão sexual não pode ser dita pelas palavras técnicas: os palavrões, as palavras feias ou porcarias, como ele gostava de dizer. Assim, o Mário faz um trabalho extraordinário de buscar outras formas de dizer.

É próprio da literatura buscar essas outras formas de dizer, sobretudo a literatura erótica. Dizer tudo, mas dizer de outro jeito. Então, no caso do Mário, ele nunca está dizendo com todas as letras, ele trabalha sempre nessas inflexões que permitem a busca de outras palavras. E ele faz isso com um talento incrível, na obra toda. A questão formal do como dizer é de uma riqueza incrível.

Agora, ele tem uma particularidade. O Mário não foi só um escritor, mas também um pesquisador. E ele pesquisou muita coisa na literatura erudita, mas ainda mais na literatura popular, desde rapsódias até as quadras, canções religiosas… A pesquisa que ele fez da cultura popular brasileira é impressionante. E nessa cultura popular ele ouve muita gente dizendo com todas as letras. Porque a cultura popular é, como ele mesmo dizia, mais liberada.

O posfácio que a Aline escreve para o livro menciona justamente isso. Ela diz que, se em sua obra o Mário está sempre em busca de dizer de outro jeito, na pesquisa das obras populares ele se encanta com essas pessoas que dizem tudo na letra. Então, quando o Mário fala obscenidades, ele sempre cita esse outro meio, da cultura popular, onde as coisas podem aparecer. Essas são as duas tópicas que estruturam sua erótica.

A seleta abre com um trecho de "Macunaíma" suprimido pelo próprio Mário, que merece atenção especial na própria apresentação que a senhora faz ao livro. Em uma obra na qual o sexo se faz tão presente, quais os parâmetros adotados pelo próprio Mário para a exclusão do trecho?

Quando eu descobri isso… Eu conhecia tão bem o livro, é uma obra pela qual todos passamos, sobretudo quem trabalha com arte, com literatura, com história da literatura brasileira. No dia em que descobri que havia um trecho suprimido por questões morais, achei incrível. E que presente isso foi para mim!

Essa Seleta Erótica surge um pouco disso. Fiz essa descoberta e vi que havia algo aí que precisava investigar. Isso foi há muitos anos e eu inclusive escrevi um artigo sobre isso. Foi o que me atinou para o erotismo como algo importante na obra do Mário.

Na verdade, ele não resolveu pura e simplesmente retirar esse trecho. Quando Macunaíma saiu, essa sexualidade se mostrou reverberante no livro todo. Esse personagem está o tempo todo pensando em brincar, sendo brincar aí um verbo com forte conotação erótica. Então, o que aconteceu foi que o livro foi acusado de imoral. Houve todo um movimento, numa primeira leitura da primeira edição, de chamar o livro de imoral, ataque à moral e aos bons costumes, atentado à moral… Estávamos nos anos 1920. Isso acontecia em vários países europeus, inclusive na França, o grande berço da erótica ocidental. Imagine no Brasil. O Mário ficou muito magoado com isso.

E, na verdade, a história é a seguinte. O Manuel Bandeira, que era muito danadinho, foi quem incitou o Mário a botar mais sexo em Macunaíma. Então o Mário coloca essas cenas de posições sexuais dos amantes macunaímicos, do próprio herói e da Ci, na rede. Esse é um procedimento muito comum na tradição da literatura erótica, a criação de diversas posições sexuais e suas descrições. E o Mário faz exatamente isso, o relato extenso de três posições sexuais totalmente estrambólicas entre o herói e Ci. E essa é uma passagem em que o sexo só justifica a si mesmo, entende? É uma passagem que efetivamente está falando de sexo, ele não é metáfora de nada. Aquilo só está descrevendo a atividade sexual, a fantasia sexual. Normalmente, na literatura erótica, quando uma posição sexual é muito estranha, aquilo não é um manual para ninguém fazer. É só até onde a fantasia chega.

Foi uma questão delicada para o Mário e ele resolve cortar. Ele chama de “as 3 f… na rede”. E existe toda a correspondência dele com o Bandeira dizendo que ficou muito chateado com as acusações e resolveu cortar. E é muito interessante porque segue cortado até hoje. É uma coisa incrível, já passado tanto tempo. E foi cortado também de todas as traduções. Ele diz que ficou arrependido de ter colocado aquelas cenas tão eróticas, mas ele ficou mesmo magoado com essas acusações.

Essa é uma história do que ficou escondido, o que acontece muito com o sexo. É uma história subterrânea do livro que diz muito do próprio Macunaíma, da própria literatura do Mário e também da questão sexual em sua obra.

Sua apresentação deixa claro que a questão da homossexualidade de Mário surge em vários de seus escritos, como é o caso do conto "Frederico Paciência" ou no poema "Girassol da Madrugada". De maneira geral, qual é o tratamento que Mário dá a essa questão?

O Mário tem um interesse imenso no erotismo, sabe, como esse domínio fundante da existência humana. Ele está sempre muito atento ao que é do domínio de Eros. Agora, ele também não quer perder de vista que cada um tem suas orientações, suas fantasias particulares. E, no caso do Mário, acho que essa orientação é efetivamente homossexual. E aparece muito na obra. Se isso foi escondido, a obra não esconde, sabe?

É muito recorrente. Tem coisas melancólicas. O Frederico Paciência, por exemplo, é um conto extremamente melancólico, mas tem momentos também na obra do Mário em que o homoerotismo aparece lindamente como vivência de um eu lírico em alguns poemas, vivência de um personagem em um conto.

Existe também algo na obra dele que eu acho muito interessante e está sobretudo em livros como Café, que é esse negócio da cidade, dos redutos onde os rapazes se encontram, esse mapeamento dos lugares do universo gay. Além de um lado sombrio, tem esse lado alegre. No final, eu vejo que na obra do Mário não surge o homossexual perseguido, vitima. Existe também uma vivência solar da própria sexualidade.

O Mário é esse momento muito interessante na literatura do Brasil em que o olho para o erotismo se encontra com o olho para o homoerotismo, talvez a vivência maior da sexualidade do escritore esse encontro me parece particularmente candente naquilo que ele está escrevendo.

Outro ponto que a senhora destaca é a mobilização, por Mário de Andrade, dos conceitos freudianos de recalque e sublimação na ideia de sequestro, cujo desenvolvimento maior parece estar no "Sequestro da Dona Ausente". No que consiste essa noção de sequestro para Mário de Andrade?

Isso foi uma sacada incrível dele. Está aí ainda para estudarmos mais. O Mário ficou muito impressionado com a leitura de Freud. A ideia de recalque obviamente lhe interessou muito, a ideia de sublimação também. Mas eu acho que, se elas bastassem, ele estaria usando essas palavras.

Quando comecei a ler um sequestro aqui, um sequestro acolá, pensei nos motivos para ele ter ido atrás de outra palavra. Havia alguma coisa que não cabia nas palavras do Freud. Eu fico pensando também que há algo no pensamento científico que para um ficcionista pode aprisionar. A psicanálise é um saber incrível, mas a ficção é mais livre, pode voar mais alto. Então, talvez para um escritor como ele, aquilo não fosse suficiente.

Eu acho que o sequestro para o Mário é um encontro do recalque com a sublimação. Quando ele traz essa ideia são os dois mecanismos juntos. Aquilo que tira mas imediatamente põe. É um operador que atravessa a obra inteira dele, essa ideia de sequestro. O sequestro imediatamente passa para a outra mão, mas coloca alguma coisa aqui, transforma. É um movimento de transformação e é eminentemente literário, porque é uma transfiguração também. Acho que é a palavra que cabe para a literatura.

Seleta Erótica de Mário de Andrade, de Eliane Robert Moraes (organizadora), Ubu Editora, 320 páginas, R$ 99,00.

Seminário discute erotismo na obra de Mário de Andrade

Acompanhando o lançamento de Seleta Erótica de Mário de Andradeacontece nesta semana, de 24 a 26 de maio, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, o seminário Mário Eros de Andrade. Com curadoria da professora Eliane Robert Moraes, o evento terá a presença de escritores, pesquisadores, professores e músicos.

Sempre das 19 às 21 horas, o evento abre na terça-feira, dia 24, com a participação de Eliane, do diretor da biblioteca Jurandy Valença e das ensaístas e estudiosas do Modernismo brasileiro Verônica Stigger e Beatriz Azevedo. A mediação é de Gênese Andrade, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Na quarta-feira, dia 25, o professor Roberto Zular, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, media o encontro entre os professores Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, e André Botelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ambos autores de livros sobre Mário de Andrade.

Já na quinta-feira, fechando a programação, Eliane conversa com o compositor Zeca Baleiro sobre erotismo, música e literatura, com leitura de poesias eróticas.

O seminário é organizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e pela Biblioteca Mário de Andrade, com apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da USP e da Ubu Editora.

Biblioteca Mário de Andrade está localizada na Rua da Consolação 94, Centro, em São PauloO seminário é aberto ao público e gratuito. Não é necessário inscrição, mas a apresentação do comprovante de vacinação da covid-19 é obrigatória.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.