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LIVROS FUVEST
Série do Jornal da USP aborda as obras exigidas no exame de ingresso para a USP
Fotomontagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Arquivo Nacional, Editora Global e Deposit Photos
A Inconfidência Mineira através da poesia de Cecília Meireles
A coletânea de poemas Romanceiro da Inconfidência, da escritora carioca, está na lista de leitura obrigatória da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest)
Por Claudia Costa
14/05/2020
Para aqueles que acreditam que poesia é só ficção, aqui está um caso de pesquisa criteriosa sobre um fato histórico em forma poética: Romanceiro da Inconfidência, da escritora carioca Cecília Meireles (1901-1964). O livro integra a lista de leituras exigidas para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona os candidatos a ingressar nos cursos da USP.
Segundo a professora Norma Seltzer Goldstein, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em Cecília Meireles, “a poetisa, como gostava de ser chamada, dedicou dez anos da sua vida para consultar fontes históricas e recuperar todo o conjunto de acontecimentos que envolveu a Inconfidência Mineira”.
Além disso, a escritora estudou as formas poéticas medievais, escolhendo o formato romanceiro, poema narrativo, com um assunto histórico e de caráter popular. Outra extensa pesquisa, diz a professora, envolveu os poetas do Arcadismo, um movimento literário contemporâneo aos eventos da Inconfidência Mineira, que tem entre suas características o bucolismo, a idealização da natureza e o interesse por problemas sociais. “E, dentre os árcades, ela se deteve sobretudo em Tomás Antonio Gonzaga, do qual ela retoma o estilo, alguns versos e alguns termos”, relata Norma, autora de vários trabalhos sobre Cecília Meireles, entre eles Roteiro de Leitura do Romanceiro da Inconfidência, publicado em 1998 pela Editora Ática e atualmente esgotado.
Capa de uma das edições do livro de Cecília Meireles – Foto: Editora Global
“Quando lemos Romanceiro da Inconfidência, percebemos um diálogo com três épocas: a época da autora, que escreve em meados do século 20, a época dos fatos relatados, em meados do século 18, e a era medieval, que é o berço do gênero romanceiro, um relato popular em versos”, destaca a professora, acrescentando que há ainda uma quarta época: a do leitor de hoje, no século 21.
Mas por que Cecília Meireles não escolheu o poema épico? A professora explica que nesse gênero é exigida a presença de um herói e Tiradentes foi um mártir. Para Norma, a imagem do inconfidente alimentou os movimentos posteriores em razão do mito que se tornou ao assumir sozinho a culpa pela revolta contra a Coroa, inocentando todos os outros envolvidos nela. “Ele foi preso, enforcado em praça pública, e seu corpo foi esquartejado e esparramado por várias partes da cidade. Essa não era a figura de um herói. Mas, por outro lado, tornou-se um mito da liberdade, e acabou sendo um mártir heroico. Mas o relato de fatos populares caberia muito melhor no gênero romanceiro do que no gênero poema épico”, ressalta a professora.
A poetisa Cecília Meireles – Foto: Arquivo pessoal
Em relação à composição dos poemas, Norma Goldstein destaca que, no romanceiro em geral, os poemas são curtos e as rimas podem ser regulares ou irregulares. Na obra de Cecília Meireles, destaca a professora, há uma grande quantidade de composições em versos curtos, com ou sem rimas, com rimas regulares e irregulares, colocadas em posições que não seguem uma métrica nem simetria. A obra se organiza em várias partes: romances, cenários e falas. Como explica a professora, é um conjunto de romances basicamente narrativos, entremeados de falas, uma espécie de manifestação do narrador que se dirige a personagens por vezes, e cenários descritivos, que levam o leitor à Vila Rica – hoje Ouro Preto, em Minas Gerais – do século 18. “Em Ouro Preto, temos a impressão de estar vendo alguns dos cenários da Cecília Meireles”, complementa.
Livro traz Tiradentes como uma "figura de sonho"
Antônio Parreiras – Estudo para Prisão de Tiradentes – Foto: Wikimedia Commons/Domínio Público
Encabeçando o movimento de libertação da colônia brasileira contra a metrópole portuguesa, o dentista e alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, procurava atrair mais pessoas para a conspiração, mas os planos foram abortados antes de colocados em prática por causa do delator Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou a conspiração dos inconfidentes, em 1789.
Como reitera a professora Norma Goldstein, o mais importante sobre a figura de Tiradentes é que ele assumiu a culpa de tudo para salvar as outras pessoas. Assim, tem-se a figura positiva de Tiradentes e a figura negativa de Silvério dos Reis. Segundo a professora, apesar de a Coroa portuguesa sair vitoriosa, desbaratando a conspiração e prendendo o responsável, Tiradentes ganhou a simpatia do povo brasileiro, criando um paradoxo na história. “O morto ganhou a simpatia dos brasileiros de todas as épocas, tornou-se mito e bandeira de todo movimento libertário posterior, com o lema Libertas quae sera tamem (‘Liberdade ainda que tardia’), que ecoa por toda a história do Brasil”, conta.
A professora cita um trecho da Fala Inicial do Romanceiro da Inconfidência, que mostra a figura de sonho que seria Tiradentes:
Retrato de Joaquim José da Silva Xavier – Oscar Pereira da Silva (1922) – Acervo do Museu Paulista da USP/Domínio Público
O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!...”
(Esse adeus estremece a minha vida.)Cecília Meireles
Outras duas passagens são destacadas pela professora. Uma delas se refere ao fato de que, em busca de ouro, a Coroa portuguesa tentava lançar no Brasil o imposto chamado Derrama, o que é abordado no Romance II ou do Ouro Incansável. “Naquele momento o ouro era a cobiça”, afirma. O outro trecho selecionado pela professora, o Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência, aborda a conspiração.
A professora cita dois tipos de figuras de linguagem muito presentes na poesia de Cecília Meireles e na poesia do século 18: a metonímia (a exemplo do que ocorre no Romance XXIV) e a metáfora.
Em relação às personagens femininas de Romanceiro da Inconfidência, a professora cita Chica da Silva, que se tornou tema de filme estrelado por Walmor Chagas e Zezé Motta; Bárbara Heliodora, “talvez a mais simpática e mais forte das mulheres, cujo marido também era inconfidente e poeta”; e Marília de Dirceu, a mais famosa, que dá nome ao poema de Tomás Antonio Gonzaga e chorou pela partida do amado. “É muito comovente saber que ela morreu para a vida no momento em que Gonzaga foi preso. Ela passou a ficar curvada, envelhecida, e foi até o fim da vida consumindo-se de tristeza pela perda do seu amor. Se existe morrer de amor, é o caso de Marília.”
A obra de Cecília Meireles ainda rendeu muitos desdobramentos, com vários filmes e peças teatrais. Um filme “muito interessante”, segundo a professora, é uma adaptação da trama, em que um grupo de jovens exige mudanças na universidade onde estudam, em Ouro Preto. Esse filme ganhou uma canção de Chico Buarque de Holanda, que retomou duas partes da obra de Cecília Meireles, o Romance XXXI ou de Mais Tropeiros e o Romance LIX ou da Reflexão dos Justos, para musicar sua homenagem aos inconfidentes. Os Inconfidentes foi gravada em 1970 por Chico Buarque e pelo grupo MPB4, no álbum Chico Buarque de Hollanda – Nº 4, relançado nos anos 1980 pela Polygram.
Para a professora, Romanceiro da Inconfidência pode ser lido de muitas formas. “É possível ler cada romance como autônomo, um conjunto de romances e a obra inteira. O leitor não precisa necessariamente ler direto da primeira à última página. Ele pode escolher cada conjunto de romances pelo assunto. Sua sugestão para os vestibulandos é que leiam os blocos de romance, e não do começo ao final. Porque, lendo os blocos e fazendo pausas, podem fazer leituras e reflexões. “Isso deixa a leitura mais leve, mais suave.”
Confira outras obras de leitura obrigatória da Fuvest 2025
- Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Quincas Borba, de Machado de Assis
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Dois Irmãos, de Milton Hatoum
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Nós Matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Os Ratos, de Dyonélio Machado
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Água Funda – Ruth Guimarães
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