LIVROS DA FUVEST

Série do Jornal da USP aborda as obras exigidas no exame de ingresso para a USP

Livro Os Ratos traz relato psicológico que revela perplexidades do nosso tempo

Romance publicado em 1935 pelo escritor Dyonélio Machado, Os Ratos é uma das obras de leitura obrigatória do vestibular da Fuvest 2025; confira a análise do livro

 05/08/2024 - Publicado há 5 meses

Texto: Claudia Costa

Praça da Alfândega, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na década de 1930: cenário para o livro Os Ratos - Foto: Fotógrafo desconhecido/IPHAE

Médico psiquiatra de formação, o gaúcho Dyonélio Machado (1895-1985) levou nove anos para amadurecer uma ideia e transformar o que seria um conto em um livro: escreveu o romance Os Ratos em 20 dias para participar de um concurso, e acabou dividindo o prêmio com outros quatro autores. Em 28 capítulos curtos, o leitor acompanha a história de Naziazeno Barbosa, um funcionário público que precisa arranjar dinheiro para liquidar uma dívida com o leiteiro. A história se passa em apenas 24 horas, num thriller psicológico que leva o personagem a perambular pelas ruas, praças e prédios da Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, de 1930, como a Praça da Alfândega, Prédio da Prefeitura, Mercado Público, Restaurante dos Operários, Café Nacional, e até bancos, como o New York Bank e o Banco Nacional do Comércio. 

Segundo Augusto Massi, professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, ensaísta e poeta, a preocupação política do autor “sempre esteve ligada a uma posição mais à esquerda, tanto que mais tarde ele ingressou no Partido Comunista”; e suas habilidades artísticas, como violino e fotografia, o levaram, de certa forma, a escrever seu primeiro grande livro. “Os Ratos traz essa combinação entre viés psicológico, com questões próximas da psiquiatria como fobias e angústias, e, ao mesmo tempo, uma abordagem sociológica política da Porto Alegre na época de 30”, comenta.

Os Ratos ocupa um espaço único, singular, pessoal, como destaca Massi. Penso que é uma obra difícil de classificar segundo as categorias correntes. O livro transita entre o que há de melhor na composição de corte psicológico, no estudo de matriz realista e social, na prosa urbana e de vanguarda”, afirma. E continua: “sua configuração estilística é complexa, tensionada, fronteiriça, podendo sondar tanto os conflitos da subjetividade individual quanto revelar estruturas opressivas das relações coletivas”. 

O professor cita uma frase em que Antonio Candido menciona a “maestria com que o autor elabora um relato no qual se combinam a minúcia realista com certas áreas de indeterminação, com retrospectos e impressões escorregadias que nos fazem sentir as vacilações e as confusões do protagonista”. 

Augusto Massi, professor de literatura brasileira na FFLCH USP - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Augusto Massi, professor de literatura brasileira na FFLCH USP - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Contudo, segundo o professor, o reconhecimento literário foi demorado, acidentado e lento. “Mas, como todo clássico, desde a década de 1980, ocupa um espaço singular, e sua importância vem crescendo a cada ano, principalmente quando grandes críticos brasileiros, como Antonio Candido (1918-2017) e Alfredo Bosi (1936-2021) se debruçaram sobre a obra do autor”.

Para o escritor e crítico literário Davi Arrigucci Jr., que assina o Posfácio do livro, “os anos escoaram, e o livro continua forte, entre o que há de fundamental na prosa da ficção brasileira, sendo exemplo bom até hoje de como se pode tratar de problemas humanos básicos da vida em sociedade sem cair no naturalismo rasteiro, nos modismos fáceis de linguagem e na mera reprodução das formas de brutalismo e violência que infestam nossas cidades, degradando nossa existência”. E continua: “É pelas pegadas esquivas de seu anti-herói moderno que entramos a fundo em perplexidades reveladoras de nosso tempo, demonstrando a força do conhecimento, sugestão imaginativa e sopro de poesia que podem alcançar a literatura quando bem feita”.

Os Ratos, de Dyonélio Machado, é um dos nove livros exigidos no Vestibular da Fuvest de 2025. Para ajudar os estudantes a perceber detalhes importantes da história, o Jornal da USP traz, neste vídeo, as explicações do professor Augusto Massi, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Clique no player para conferir.

O romance de 30

Os Ratos se insere na categoria do romance de 30, que segundo Massi tem sido cada vez mais estudado e está passando por um processo de reformulação de ampliação da sua compreensão como fenômeno literário cultural. “Antigamente se falava de um romance regionalista. O termo romance de 30 não era usado e sim romance regionalista”, enfatiza. “As pessoas se identificavam exatamente com os romancistas do Norte e do Nordeste que se opunham a um tipo de ficção que nos anos 20 tinha sido feito pelos modernistas de São Paulo. Nesse sentido, Mário de Andrade e Oswald de Andrade reinam e lideram todo um processo cultural durante os anos 20”, explica. 

A partir dos anos 30, há uma grande politização e entram em cena esses escritores que vêm do Norte e Nordeste, e que estão falando dos retirantes, das secas e também das classes altas decadentes, como em Menino de Engenho, de José Lins do Rego”, conta Massi, citando outros autores como Jorge Amado e Graciliano Ramos, para ele “o escritor crítico mais agudo desse processo porque ele não é simplesmente um escritor que trabalha as questões no Nordeste, mas também uma militância política”. 

Massi comenta que Dyonélio entra ao lado desses livros que montam um painel de grande ênfase na vida política, social e econômica, formando um retrato das várias regiões do Brasil. “Então o romance de 30 tem essa novidade. É como se ele tivesse um impacto de trazer uma realidade”, afirma. Para o professor, o Brasil se revela a partir dos anos 30: “Eu diria que não só como uma oposição, mas como uma visão complementar porque essas vozes de 30 vem enriquecer a visão que as pessoas têm da cultura brasileira, da identidade do País”.

Foto: Memória Cultural Delfos/PUCRS

O escritor Dyonélio Machado - Foto: Memória Cultural Delfos/PUCRS

A linguagem

Do ponto de vista da linguagem, o escritor explora diversas camadas e vertentes, declara Massi. “Embora herdeiro da imensa liberdade que a incorporação do coloquial representou para os modernistas de 22, Dyonélio em Os Ratos demonstra certas reservas com relação ao uso do coloquial, acenando com aspas ou itálico para expressões, palavras e termos estranhos”, afirma. Como relata o professor, quem pegar o livro, logo na primeira página vai encontrar expressões coloquiais, “quase uma gíria”, mas sempre entre aspas. Isso é um sinal de que apesar de insistir na linguagem falada, ele não tem a mesma posição dos modernistas, como aponta o professor. 

Segundo Massi, o autor tem uma escrita clássica, limpa e clara, e é possível perceber que o estilo de Dyonélio ainda está em trânsito. “Assim como Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos, todos esses escritores de 30 sofreram o impacto do Modernismo, e ainda que fossem às vezes contrários a certas ideias do movimento, mostram como o Modernismo saiu vitorioso e que aquilo é incorporado como uma conquista. Passa-se então a ter uma literatura, eu diria, retórica, com uma agilidade da fala cotidiana, e Dyonélio se beneficiou disso”, afirma.

Simbologia circular

Dentre as possíveis interpretações do romance, Massi revela que a mais importante é sua estrutura circular, construída em torno de círculos de tempo (de uma manhã a outra), espaço (da periferia ao centro da cidade) e movimento (de partida e retorno à casa), que se articula fechando o cerco em torno de Naziazeno, oprimindo o personagem: “O relógio da prefeitura parece uma cara redonda e impassível”, “o Sol é uma moeda em brasa”, “a bolinha girando na roleta no capítulo 13” .

Os bem vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem ao “pega” com o leiteiro. Por detrás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filho espantado já de pé àquela hora, ouvem. Todos aqueles quintais conhecidos têm o mesmo silêncio. Essa é a primeira cena do romance, explicada por Davi Arrigucci Jr. no Posfácio do livro, “Naziazeno Barbosa precisa de cinquenta e três mil réis para pagar a conta do leiteiro e sai pela cidade – uma Porto Alegre do começo do século 20 – para cavar o dinheiro”. A sequência traz o protagonista, desesperado, às voltas para conseguir o dinheiro.

Esse é um livro esférico, circular. São 24 horas na vida do protagonista, em que o relógio da prefeitura é uma marcação do tempo, a roleta é uma marcação dos infortúnios da vida e o Sol é usado como um metáfora. E todos esses círculos oprimem o Naziazeno Barbosa. O périplo pela cidade é uma roda de infortúnios”

Augusto Massi, professor da FFLCH USP

Como conta o professor, é um livro muito estruturado e está dividido em quatro tempos. A primeira parte, que vai até o Capítulo 12, toma toda a manhã: ele sai de casa, pega o bonde – o autor, como psiquiatra, introduz alguns traumas de infância – e vai até o centro da cidade, onde tenta conseguir o dinheiro adiantado ou emprestado com o chefe da repartição, sem sucesso. Nos Capítulos 13 e 14, metade do livro, depois de perambular pelas ruas, sem almoçar, acaba entrando numa tabacaria, onde tenta a sorte em uma roleta, mais uma vez sem sucesso. Do Capítulo 15 ao 20, já no final da tarde, o comércio começa a baixar suas portas, e à medida que o círculo da necessidade se impõe, ele recorre a agiotas. Do Capítulo 20 ao 28, que fecha o romance, o protagonista está de volta à sua casa, já com o dinheiro… Mas quando dorme, vem o pesadelo, com os ratos. 

Capas de edições do livro Os Ratos - Foto: Reprodução/Editoras

"Os ratos"

“Nós poderíamos dizer que os ratos são uma alegoria. É uma imagem de que os ratos não são os ratos que vão comer o dinheiro no final; os ratos comem dinheiro das pessoas ao longo do dia; os ratos saem de pequenos cantos da cidade e são personagens minúsculos, por isso que é importante o plural ‘os ratos’”, analisa o professor. 

Também explica que eles não são personagens concretos: “Enquanto o psiquiatra diz que os ratos podem estar dentro de uma ideia fixa, de uma neurose, de alguém que está muito pressionado com uma situação econômica desesperadora, o sociólogo romancista de esquerda diz que aquele funcionário público, esse pobre coitado, é explorado por várias coisas que vão roendo, corroendo a utopia da vida dele”. 

Na cena final, que traz enfim o som do leite sendo derramado num recipiente e a luz de um novo dia, que surgem como sinal de esperança. Como pergunta a datilógrafa lá atrás quando preparavam o romance para o concurso: o Naziazeno vai ser feliz? Quem responde é o professor: “Naquele dia ele foi feliz”. 

A ideia inicial

Foi de forma inesperada que surgiu a ideia do livro. “Num domingo, ao visitar o filho que cursava os últimos anos de Medicina, a mãe lhe trouxe uma notícia preocupante: ‘Quase não dormi essa noite’. Como ela já apresentava os primeiros sinais da doença de Parkinson, Dyonélio voltou toda sua atenção para esse detalhe. O futuro psiquiatra munido dos conhecimentos da novíssima profissão ficou alarmado e perguntou qual o motivo da insônia. A mãe, então, disse que ficou com medo que os ratos roessem durante a noite o dinheiro que o seu outro filho havia deixado na mesa para pagar o leiteiro: ‘Se os ratos roem papel, até livros, porque não roeriam dinheiro, não é mesmo?’”. Massi lembra que em várias entrevistas, Dyonélio contou que foi desse angustiado relato materno, mescla de ideia fixa e obsessão miúda que nasceu o romance. “Numa bela síntese, afirmou que se viu diante de algo extraordinário: O dramático no trivial”.

Foram nove anos para escrever um conto, mas Dyonélio ainda achava que faltavam detalhes, e foi aí que soube através do seu amigo e conterrâneo Érico Veríssimo, já romancista, de um grande concurso: o prêmio Machado de Assis, da Editora Nacional de São Paulo. Isso apressou a ideia do romance e em “20 dias ele escreveu esse livro”, relata Massi. Segundo as próprias palavras do autor: “Eu trabalhava como médico durante o dia e durante à noite eu escrevia e entregava para uma moça que fazia o serviço de datilografia, mas eu fiquei 9 anos pensando nesse livro, e percebi que ele tinha que ser um pouco maior que um conto, que ele tinha que ter a estrutura de um romance para revelar a angústia do personagem”. Um fato curioso é que na 15ª noite, a datilógrafa pergunta para o autor: o Naziazeno vai ser feliz? E isso para Dyonélio era o mais importante, ele tinha captado o interesse do leitor, e é isso que um romance deve ter. 

O concurso

O livro concorre e teria vencido o concurso não fosse por um detalhe, como conta Massi: o segredo sobre o ganhador teria sido violado por um dos jurados em uma mesa de bar no Rio de Janeiro, momento em que muitos escritores da época acreditaram que o autor de Os Ratos seria Érico Veríssimo. “Nessa mesa de bar estava um dos concorrentes também chamado Marcos Rebelo, escritor carioca, e quando ele sabe daquilo, ameaça denunciar a todos caso não receba o prêmio, e por isso Dyonélio acaba tendo que dividir o prêmio com mais quatro autores”. Para piorar, acrescenta o professor, “quando o livro é publicado, Dyonélio é um preso político e não consegue nem ir ao lançamento”. Ele foi duplamente prejudicado, porque não ganhou o valor total da premiação e ainda, como estava preso, ninguém podia falar muito do seu livro”, revela Massi. 

O cronista Rubem Braga vai a Porto Alegre e faz uma entrevista com Dyonélio na prisão, mesmo correndo todos os riscos de censura ideológica, na época da chamada Lei Monstro, que tirava a liberdade do ponto de vista democrático. “Dyonélio foi preso por ter participado de uma greve que defendia os gráficos”, conta Massi; e fica em uma prisão do Rio de Janeiro, onde conhece outro grande autor, Graciliano Ramos. Isso marca a violência contra Dyonélio Machado e de seus contemporâneos no que ficou conhecido como “o romance de 30”.

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