“Território vivo”: como os Tupinambá vivenciam os conflitos no Baixo Tapajós

Relatos de indígenas ouvidos por antropólogo escancaram impactos do avanço da monocultura da soja no Pará e as consequências devastadoras para as comunidades do Baixo Tapajós

 02/08/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 04/08/2023 às 15:48

Texto: Camilla Almeida (estagiária)*

Arte: Gabriela Varão (estagiária)**

Cacique Braz delimitando o Território Indígena Tupinambá durante a autodemarcação - Imagem: Reprodução da tese/Thomaz Pedro

A região do Baixo Tapajós, localizada no oeste do Estado do Pará, é lar de sete mil indígenas de 13 diferentes povos. Atrativa para garimpeiros e madeireiros, a área hoje sofre constantes ameaças de devastação devido ao avanço das plantações de soja e ao aumento da incidência de conflitos por terra. Em meio a esse cenário, sua população sofre com violências, envenenamentos por substâncias tóxicas e o apagamento histórico de suas identidades e lutas. 

Um trabalho da USP buscou compreender tal panorama sob a perspectiva do povo Tupinambá, que habita a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, localizada a margem esquerda do Rio Tapajós, no município de Santarém (PA). O trabalho explorou os antagonismos que permeiam a região do Baixo Tapajós como um todo, mas principalmente a progressão da fronteira agrícola e a toxicidade de pesticidas, seus malefícios e consequências. Isso foi feito por meio de uma pesquisa etnográfica, que consiste no estudo da cultura e comportamento de um determinado povo a partir do convívio social.

“A tese olha para esses complexos fenômenos ecológicos, sociais e políticos a partir de um olhar integrado e em diálogo com outras disciplinas. Como antropólogo, tive que lidar em paralelo, somando o trabalho de campo a bibliografias sobre agrotóxicos e soja. Existe uma abordagem complexa que eu não diria que seja inovadora, mas é uma contribuição para o campo aqui no Brasil”, explica Fábio Zuker, autor da tese de doutorado, ao Jornal da USP. A pesquisa, desenvolvida no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é dividida em três partes, que partem da mesma premissa: existem guerras visíveis e invisíveis, mas sempre constantes na vivência indígena no Baixo Tapajós. 

Fábio Zuker - Foto: Arquivo Pessoal

Fábio Zuker - Foto: Arquivo Pessoal

“Sempre fomos índios”

O primeiro capítulo se abre com a apresentação de Cacique Braz, presidente do conselho Tupinambá e uma importante figura na construção da tese. Logo no início, quando indagado sobre sua autoidentificação, Cacique Braz logo diz: “Sempre fomos índios”. Ao longo das páginas, Zuker discute as concepções do que é ser indígena e como essa identidade por muitas vezes é negada com a finalidade de silenciar o movimento de resistência desses povos, ou até mesmo, fetichizá-los. 

Nesse sentido, Cacique Braz se mostra avesso ao conceito antropológico de etnogênese – atribuído por cientistas sociais a mobilizações indígenas. O termo foi usado para descrever o aumento da presença de diferentes etnias na região Nordeste, que passou de 10, em 1950, para 23, em 1994. O cacique utiliza sua emblemática frase para rebater a ideia de que existem “indígenas emergentes” e colocar em debate a idealização da identidade indígena.

Cacique Braz – Imagem: Reprodução da tese/Thomaz Pedro

“Para o agronegócio existe uma ideia folclorizada, até racista, do que é ser indígena. Os Tupinambá renegam esse imaginário, reafirmando suas identidades. Eles dizem: ‘nós somos indígenas, falamos português e vamos para a cidade ao mesmo tempo que vamos caçar e falar dos nossos mitos’”, diz o autor. Ele aponta para os encontros culturais que aconteceram no decorrer dos anos, mas com a manutenção de seus laços identitários e religiosos. 

Em 2014, o juiz federal Airton Portela declarou a inexistência da Terra Indígena (TI) Maró, onde viviam indígenas Borari e Arapium, sob a justificativa de que a área era habitada por populações tradicionais ribeirinhas, não indígenas. De acordo com a decisão, o magistrado afirma que movimentos sociais e antropólogos foram responsáveis por induzir os moradores a solicitarem o reconhecimento da área como uma TI. Contudo, no ano seguinte, a sentença foi revogada pelo Ministério Público Federal (MPF), após a comprovação de impropriedades científicas e distorção de métodos antropológicos nos relatórios apresentados.

A área, que também se localiza no município de Santarém (PA), era de grande interesse para determinados grupos da região. Investigações realizadas pelo MPF revelaram que madeireiros ofereceram maquinário e combustível para lideranças comunitárias em busca de apoio no processo de barrar a promulgação da TI Maró. Além disso, funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) já haviam sido ameaçados de morte por grileiros em visita ao território. Atualmente, a TI ainda se encontra em processo de reconhecimento.

“Muita gente diz que somos um povo ressurgido. Na verdade, nós não somos ressurgidos, nós somos um povo resistente. Por isso que temos o espaço de nos manifestar. A partir desta data que paramos de ser um povo adormecido. Passamos a procurar nossos direitos e buscar nossa autonomia. É por isso que temos a forma de nos manifestar pela nossa terra de novo.”

A negação de suas identidades e constantes intimidações violentas fazem parte da rotina dos indígenas do Baixo Tapajós. Com relação aos Tupinambá, existe um projeto de criação de uma terra indígena consolidada na área que abrange a Resex Tapajós-Arapiuns. Porém, a proposta encontra diversos empecilhos que barram seu avanço, como o processo de diálogo com outras comunidades, divergências com projetos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e os interesses do agronegócio na região. Frente a isso, os indígenas iniciaram seu próprio processo de demarcação, em 2017 – o objetivo é reconhecer 350 mil hectares, nomeados por eles de “Nação Tupinambá”.

Quebranto

“Hoje tudo é industrializado. Antes tudo era plantado. No tempo nosso, a comida era mais substanciosa. A comida que vem industrializada, que vem beneficiada na cidade, já não nos dá aquele sustento. Parece que aplicam aquele formol no frango, para durar mais”, conta a Cacica Estevina, da aldeia Cabeceira do Amorim. Na segunda parte de sua tese, Zuker discute o enfraquecimento dos corpos indígenas ao longo dos anos e de que forma os Tupinambá enxergam esse processo de adoecimento. 

Cacica Estevina no porto da aldeia Cabeceira do Amorim - Imagem: Reprodução/Thomaz Pedro

De acordo com o antropólogo, comentários acerca da fraqueza e perda da energia após a implementação de comidas industrializadas na alimentação são ouvidos com frequência entre as comunidades. A inserção desses alimentos na dieta dos Tupinambá se deu de maneira involuntária: com a devastação que acometeu seu território na metade do século 20 pela ação de madeireiras e o aumento populacional, as lideranças se viram limitadas e recorreram aos alimentos processados vendidos no supermercado. 

O autor apresenta o conceito de quebranto, uma concepção de doença pelos Tupinambá. Quando alguém volta da mata com fome ou/e sem alimento e pega uma criança para brincar, o resultado é a prostração, o acometimento da criança por quebranto – uma fraqueza, aparente apatia e cansaço. “Eu fiquei pensando em como o mal-estar do corpo acometido por quebranto é muito próximo da forma como eles falam do corpo enfraquecido pela destruição do território”, explica Zuker. 

As populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas do Baixo Tapajós sofrem também com as toxinas lançadas pelo garimpo e o agronegócio. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revelou altas exposições ao mercúrio na população de Santarém. O metal foi encontrado em todos os 462 participantes da pesquisa sendo que, desse total, 75,6% obtiveram uma exposição acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 10 microgramas por litro (µg/L).

O mercúrio é utilizado pelos garimpeiros para separar os sedimentos do ouro, facilitando sua procura. Muitas vezes o descarte dessa substância é realizado de forma imprópria e acaba poluindo os rios e toda a cadeia aquática, dando início ao processo de bioacumulação – a acumulação do mercúrio nos tecidos dos organismos vivos que vivem nos corpos d’água. Dessa forma, a população indígena e ribeirinha, que depende do rio para se alimentar, passa por uma silenciosa e perigosa contaminação – que pode ocasionar graves problemas no sistema nervoso, fígado e rins.

Além disso, os agrotóxicos utilizados pelos produtores de soja, como o glifosato, também representam sérios riscos à saúde da população, principalmente no Planalto Santareno – e os Tupinambá receiam que essa situação poderá em breve ser o seu futuro. Conhecido como o pesticida mais vendido do mundo, o glifosato é responsável por eliminar outras formas de vida presentes nas plantações, com exceção das sementes transgênicas de soja, modificadas geneticamente para resistir a seu uso.

Seu Antônio Alves, entrevistado pelo antropólogo durante o trabalho realizado em campo e membro do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR), relata que passou a enxergar em seus filhos os sintomas da exposição constante ao agrotóxico. “Irritava os olhos, irritava a garganta. Era febre diária, dor na cabeça.”. Os terrenos vizinhos a Seu Antônio, situados na margem direita do rio Tapajós, passaram a ser comprados e usados para a monocultura da soja. Com a chegada do plantio e o uso intenso de glifosato, o agricultor se viu impelido a também vender seu terreno. “Nós não tivemos mais como ficar no terreno na época que eu morava. Ninguém mais conseguiu sobreviver respirando soja, com aquele veneno. E eu fui obrigado a vender.”

Seu Antônio Alves (conhecido como Seu Macaxeira) colhendo mandioca em seu terreno cercado pela soja, na comunidade Santos da Boa Fé, à beira da Rodovia Curuá-Una, que cruza o Planalto Santareno - Imagem: Reprodução/Bruno Kelly (Le Monde Diplomatique Brasil/Pulitzer Center)]

Nesse sentido, Zuker utiliza o conceito de “agronecropolítica” para se referir ao processo planejado de envenenamento para expulsão por asfixiamento das populações tradicionais da área. “Observei que o pesticida é utilizado como um instrumento político para expulsar as populações tradicionais de seus territórios e assim permitir o avanço das plantations de soja e o esvaziamento da Amazônia”, diz o pesquisador. As práticas empregadas pelo agronegócio, em sua visão, integram um projeto de desocupação, destruição e reocupação do território com fins lucrativos – se assemelhando ao colonialismo.

“Uma visão de desenvolvimento baseada numa espécie de tara pela destruição, em que a renda gerada está intimamente vinculada à derrubada da floresta, grilagem de terras públicas, e um violento processo de expulsão das comunidades tradicionais que estabelecem uma relação íntima e de formação com a terra.”

“Imagina tudo isso aqui virar soja?”

“Imagina tudo isso aqui virar soja?”, disse Cacique Braz a Zuker no início de uma expedição que iniciava a autodemarcação dos Tupinambá, que o antropólogo teve a oportunidade de acompanhar. A ponderação do líder retrata a fragilidade dos territórios indígenas do Baixo Tapajós, constantemente ameaçados pela expansão da fronteira agrícola, que devasta a margem direita do Rio Tapajós. Para além do envenenamento e adoecimento dos corpos indígenas, a preocupação é com seus territórios, devastados pelo desmatamento e pelo uso contínuo de agrotóxicos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Santarém, a área de soja passou de 11.000 hectares (ha) para 18.000 ha entre 2004 e 2022. 

O questionamento emblemático de Cacique Braz dá início ao terceiro e último capítulo da tese, na qual o autor desvela a cadeia por trás do avanço da monocultura da soja em território amazônico. “Tentei mostrar nessa terceira parte que a soja detém uma inteligência para se reproduzir. Os fazendeiros, por meio de estratégias, fazem com que a soja vá colonizando mais territórios e se reproduzindo – esse é seu principal objetivo”, diz Zuker. Para isso, são apresentados relatos de moradores vizinhos às rodovias Cuiabá-Santarém (BR-163) e Curuá-Una (PA-370), criadas durante a Ditadura Militar e hoje utilizadas para o escoamento da produção da sojicultura. 

A BR-163 divide duas realidades discrepantes: do lado esquerdo, a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, e do direito, campinas desmatadas para o plantio da soja. Essa paisagem segue por uma parte considerável da rodovia, assim como as histórias de comunidades tradicionais que tiveram seus territórios alterados, atingidos e cercados pelo desmatamento. Zuker explorou o aumento de casos de hantavirose (doença viral transmitida pela urina, saliva e fezes de roedores contaminados) em municípios abrangidos pelas áreas de influência da BR-163.

À esquerda, a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, separada de um descampado de soja à direita pela BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA) - Imagem: Reprodução/Bruno Kelly

Em 2013, a Secretaria de Estado de Saúde do Pará (Sespa) emitiu um alerta sobre a  proliferação da doença para todo o oeste do Estado. Com sintomas que vão de dores nas articulações a problemas gastrointestinais, a transmissão da hantavirose é facilitada pelo contato humano com os animais infectados, o que, por sua vez, é uma consequência da destruição das florestas. Frente a isso, o antropólogo destaca a cadeia por trás do processo de esvaziamento e toxicidade do Baixo Tapajós. “Existe uma sobreposição de fatores. A financeirização de obras de pavimentação e o uso de agrotóxicos levam a um maior desmatamento e uma maior simplificação ecológica, que aumentam o contato dos roedores com populações humanas.”

Zuker utiliza o conceito de “neoliberalização” para se referir a essa relação entre as ações orquestradas na floresta amazônica. De acordo com o autor, o aumento de casos de zoonoses como a hantavirose se alinha ao uso indiscriminado de pesticidas e ao desmatamento no processo de despossessão territorial das populações indígenas e comunidades tradicionais – que tem como objetivo a implementação de campos de agricultura intensiva e de monocultivos na Amazônia.

Em meio a esse cenário, movimentos de resistência indígena intensificam a luta por seus direitos e se fazem presentes nas discussões sobre a preservação do Baixo Tapajós. “Nosso clima, nossas matas, nossos rios, nossos bichos, os igarapés pras crianças brincarem, isso é o nosso território vivo”, disse Cacica Estevina, ao explicar a fundamentalidade do processo de autodemarcação Tupinambá. 

A batalha pela conservação de seus territórios possui, além do caráter cultural, um comprometimento político e socioambiental de proteção do bioma amazônico. “A própria afirmação desse vínculo com a terra reforça a afirmação de identidade dos indígenas enquanto indígenas, se levantando contra uma violência colonial. Essa reivindicação identitária acompanhada de uma territorial de reconhecimento é uma forma de barrar essa violência”, diz Zuker. 

A tese Fazer mundos, destruir mundos e refazê-los: ensaios de antropologia política no Baixo Tapajós concorre a melhor Tese Destaque USP na área de Ciências Humanas. É possível acessar o trabalho no banco de teses da USP.

Mais informações: e-mail fabiozuker@gmail.com, com Fábio Zuker

*Sob orientação de Luiza Caires e Valéria Dias

**Sob orientação de Moisés Dorado e Simone Gomes


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