Pela primeira vez, cientistas registram interações sexuais completas entre macacos-prego machos

Gravação em vídeo mostrou o comportamento de dois macacos-prego-de-peito-amarelo, que incluiu cópula, carícias, abraços, manipulação da genitália e montas alternadas entre eles

 30/06/2023 - Publicado há 10 meses     Atualizado: 04/07/2023 as 17:11

Texto: Ivanir Ferreira
Arte: Carolina Borin Garcia

Os quatro novos comportamentos apresentados pelos macacos durante o acasalamento. Da esquerda para a direita, "abraço", "cheiro no peito", "esfregar o peito" e "caudas entrelaçadas" - Ilustrações: Cedidas pelas pesquisadoras/John Uribe

Os quatro novos comportamentos apresentados pelos macacos durante o acasalamento. Da esquerda para a direita, "abraço", "cheiro no peito", "esfregar o peito" e "caudas entrelaçadas" - Ilustrações: Cedidas pelas pesquisadoras/John Uribe

Artigo de pesquisadores da USP publicado no jornal Archives of Sexual Behavior descreve, pela primeira vez, o namoro completo de dois jovens macacos-prego-de-peito-amarelo selvagens machos, da espécie Sapajus xanthosternos, em uma unidade de conservação brasileira, a Reserva Biológica de Una, no Sul da Bahia. “O comportamento pode demonstrar um provável fortalecimento de vínculos afetivos entre amigos, o que reforça a ideia de que outras espécies de animais interagem sexualmente não somente para procriar mas também para estabelecer conexões sociais”, explica ao Jornal da USP a psicóloga Irene Delval, a primeira autora do artigo Homosexual Courtship in Young Wild Capuchin Monkeys: A Case Study.

Pesquisadores em trabalho de campo - Foto: Noemi Spagnoletti

O registro em vídeo aconteceu ocasionalmente durante a coleta de dados de pesquisadores do Instituto de Psicologia (IP) da USP em um final de tarde, quando os macacos costumam se reunir no final do dia para relaxar e se preparar para dormir.

Os sujeitos dessa história são o Pimenta, um macaquinho de um ano e meio (19 meses), idade considerada o fim da infância e o início da juventude, e o Dumbo, que, embora não se saiba ao certo sua idade, pela avaliação de seu porte corporal e tufos de pelos, teria por volta de seis anos, um jovem adulto. Eles foram gravados por 15 minutos ininterruptos pelos pesquisadores, que conseguiram registrar o ritual de acasalamento completo, que incluiu cópula, carícias, abraços, manipulação da genitália e montas alternadas entre os dois macacos. O episódio foi considerado “um feito inédito, porque os registros realizados até o momento se limitavam apenas a montas”, diferentemente do que foi visto na gravação com Pimenta e Dumbo, que foram muito mais além em suas interações, diz a psicóloga.

Irene Delval, autora da pesquisa - Foto: Arquivo Pessoal

Irene Delval, autora da pesquisa - Foto: Arquivo Pessoal

O que comprova a tese de fortalecimento de vínculos é que, na época da filmagem, os dois macacos, principalmente o Pimenta, ainda não estavam sexualmente maduros, o que acontece nos machos desta espécie por volta dos seis anos, quando eles deixam o grupo em que nasceram e vão para outros núcleos familiares, na tentativa de acasalar. “Uma das hipóteses para explicar a função das interações sexuais entre indivíduos sexualmente imaturos é que elas possam servir de treinamento para acasalamentos futuros”, diz a pesquisadora.

Macaco Dumbo - Foto: Gabriel Bonfa

Macaco Pimenta - Foto: Gabriel Bonfa

Segundo o estudo, o comportamento sexual entre indivíduos adultos do mesmo sexo é comum no reino animal, sendo relatado em mais de 1.500 espécies, e os macacos-prego adultos são conhecidos por seu repertório comportamental sexual rico e flexível e pelos cortejos elaborados.

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O artigo relata que o  comportamento homossexual como o observado entre os macacos deve ser diferenciado da homossexualidade, pois este conceito predispõe preferências, que no caso somente os humanos têm condições de verbalizar.

Para chegar à conclusão de que o comportamento dos dois macacos foi mesmo um ritual de acasalamento, os pesquisadores analisaram atentamente em laboratório todos os comportamentos registrados na gravação e os compararam ao repertório comportamental típico de adultos do mesmo gênero, listado em um catálogo chamado Etograma (ferramenta utilizada na Etologia para estudar comportamento animal), que inclui exibições de corte, estimulação manual-genital, oral-genital e genital-genital e interações crescentes (com ou sem movimentos pélvicos, intromissão e ejaculação). Dos 20 comportamentos que constavam no Etograma, Pimenta e Dumbo praticaram 16 deles, relata o estudo.

Olhares mútuos

O olhar mútuo foi o comportamento mais frequentemente realizado pelos macacos, seguido por esfregar o peito (quase sempre mútuo), erguer sobrancelha, e erguer sobrancelha com sorriso e exibição genital. A psicóloga lembra ainda que, além das 16 interações comuns a heterossexuais, os pesquisadores também detectaram quatro comportamentos novos, ou variações comportamentais, que não faziam parte do Etograma: o abraço, o cheiro no peito, o esfregar o peito mútuo e caudas entrelaçadas.

Papéis sexuais

Segundo o estudo, na sequência filmada pelos pesquisadores, foi difícil distinguir os papéis sexuais dos primatas porque ambos apresentaram comportamentos semelhantes. No entanto, a análise detalhada sugere que Pimenta teve comportamentos que são exclusivamente executados pelas fêmeas, como levantamento de sobrancelhas, com e sem sorriso. Durante o ritual de namoro heterossexual, esse comportamento é realizado exclusivamente pela fêmea para solicitar a atenção do macho. No vídeo, o levantamento de sobrancelhas foi realizado 14 vezes por Pimenta e apenas uma vez por Dumbo. Além disso, apenas Pimenta andou de costas para o colo (backing into lap ou recuo no colo) e exibiu sua genitália. Segundo a pesquisadora, recuar no colo é um convite aberto para ser montado.

Funções sociossexuais

A psicóloga esclarece que, para além da reprodução, o sexo pode ter outras múltiplas funções, mas, em sua opinião, é difícil determinar qual delas é a melhor explicação para um evento único, como o registrado no vídeo. As interações sexuais com indivíduos do mesmo sexo podem ser úteis na reafirmação da dominância, na prática para o sexo adulto, no fortalecimento de laços, na regulação de tensão e reconciliação ou para a formação de alianças, diz a pesquisadora.

Irene explica que já é conhecido que os relacionamentos sociossexuais – que incluem montas, apresentações, abraços mútuos e inspeção ou manipulação genital – começam a se desenvolver durante a infância em muitos macacos e nos grandes símios (chimpanzés, orangotangos). “No caso de Pimenta e Dumbo, é possível interpretar tanto que os dois machos estavam treinando, como também cabe a possibilidade de que fosse uma intensa amostra de afeto para estreitar o vínculo de dois velhos amigos”, diz a pesquisadora.

Para Jaroslava Varella Valentova, coordenadora da pesquisa e especialista em antropologia e psicologia evolutiva e etologia humana, o estudo, mesmo sendo a descrição de um caso específico, é realmente importante por mostrar algo que várias pessoas acham que é alguma invenção recente de humanos modernos ocidentais. "Nós mostramos que contatos íntimos, eróticos e sexuais entre pessoas do mesmo sexo acontecem em outras espécies e também entre indivíduos bastante jovens. Ou seja, atração sexual por indivíduos do mesmo sexo não é alguma moda ou invenção cultural, mas tem raízes profundas no nosso passado evolutivo."

Limitações do estudo

A psicóloga afirma que as gravações são um estudo preliminar que faz parte de uma pesquisa maior sobre o desenvolvimento do comportamento sexual, tema que a pesquisadora investigou no seu pós-doutorado no Instituto de Psicologia, sob a supervisão da professora Jaroslava Varella Valentova, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes). “Por se tratar de um único estudo de caso, não foi  possível chegar a conclusões gerais de que o cortejo homossexual seja um padrão entre jovens macacos-prego-do-peito-amarelo. Contudo, as observações feitas são muito importantes, pois podem guiar as investigações para novos lugares e originar tópicos de interesse inéditos”, conclui.

Jaroslava Varella Valentova - Foto:  Cecília Bastos/USP Imagens

Jaroslava Varella Valentova - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O artigo está disponível em https://link.springer.com/article/10.1007/s10508-023-02632-4

Mais informações: e-mails irenedelval@gmail.com e irenedelval@alumni.usp.br, com Irene Delval


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