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O risco de desenvolvimento de doenças crônicas é um reflexo de fenômenos que acontecem durante toda a vida de uma pessoa. Obviamente, o risco aumenta com a idade. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, no momento do nascimento, esse risco não é igual a zero. Isso porque o organismo do recém-nascido pode carregar uma programação metabólica que já o predispõe, quando adulto, a desenvolver determinados tipos de enfermidades. Quem explica é Thomas Ong, do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center), professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP.
“O que acontece na barriga da mãe durante aqueles nove meses tem repercussões profundas na forma como o feto se desenvolve, e isso pode ficar registrado no organismo. Na vida adulta, pode modificar o metabolismo dos filhos e das filhas, e também influenciar os riscos prováveis de doenças crônicas”, descreve Ong.
Ele lembra que, apesar de estar falando de doenças cardiovasculares, também há influências em outras enfermidades, como diabete, obesidade e alguns tipos de câncer, como o de mama, que é foco do grupo de pesquisa.
Segundo Ong, a relação entre o desenvolvimento do feto e a predisposição a determinados tipos de doenças foi chamada por algum tempo de ‘programação fetal’, mas hoje há outro termo para designá-la: Origens Desenvolvimentistas da Saúde e Doença. “O termo deixa claro que o desenvolvimento do indivíduo tem conexão com as doenças crônicas. E desenvolvimento, nos seres humanos, pressupõe janelas importantes: a vida fetal é uma delas.”
Ele acrescenta também que a vida neonatal, a infância, a puberdade e as experiências da mãe durante a lactação são etapas importantes. “Eu considero, ainda, a pré-concepção como uma janela de desenvolvimento relevante: ou seja, a saúde da mãe e do pai antes da concepção.”
O preço da adaptação
O professor explica que, na década de 1980, o epidemiologista David Barker aventou a possibilidade de que a ausência de nutrientes, durante a gestação, pudesse estar conectada a doenças cardiovasculares. Mais tarde, na década de 1990, junto com o colega Nick Hales, ele sustentou que a adaptação do feto a condições adversas tinha um preço que seria cobrado mais tarde, quando a pessoa chegasse à vida adulta. A hipótese ficou conhecida como “hipótese do fenótipo econômico”.
“Nosso organismo é uma máquina fabulosa, pois, mesmo que falte energia, a gente dá um jeito, e os bebês nascem. Mas esse ‘jeito’ tem um custo, porque o cobertor de calorias, de energia e de nutrientes é curto. Então, prioriza-se o desenvolvimento do sistema nervoso central: do cérebro, que é o órgão mais nobre. Às custas do desenvolvimento de órgãos periféricos: fígado, coração, tecido adiposo, dentre outros.”
Existe também outro nível de adaptação, que ajuda a explicar enfermidades como a obesidade, por exemplo. “Na barriga da mãe, o feto que passa por algum tipo de condição adversa está recebendo a seguinte mensagem: ‘você vai enfrentar um mundo hostil lá fora, com falta de nutrientes.’ Então, o feto se adapta no sentido de maximizar a sobrevida num ambiente em que ele prevê que vai faltar comida, e se torna mais econômico com o pouco de energia que encontra.
E, de acordo com o professor Thomas Ong, quando a vida pós-natal é diferente do que foi previsto, acontece um descompasso metabólico. “O indivíduo se tornou mais eficiente metabolicamente e está mais propenso a armazenar gordura, o que permite que ele sobreviva. Só que ao nascer, ele encontra uma quantidade adequada de comida, às vezes até excesso. Então se infere que parte do risco de obesidade tenha a ver com esse tipo de situação.”
Pai e ambiente
O peso do ambiente no desenvolvimento de doenças crônicas foi algo reconhecido muito recentemente pela comunidade científica. Até a década de 1980 acreditava-se que elas tinham origem estritamente genética. Assim, também, o peso do pai no desenvolvimento do feto foi algo tardiamente endereçado. A maioria dos estudos a esse respeito começou a ser publicada em 2010.
Ong, que vem estudando o impacto da herança paterna na incidência de câncer de mama em mulheres adultas, lembra que, no pai, a importância do ambiente se evidencia, pois o homem produz espermatozoides durante toda a sua vida fértil, que dura décadas.
“Os espermatozoides são muito expostos ao ambiente. Fatores como nutrição, estado metabólico, nível de obesidade, tabagismo, entre outros, podem afetar a qualidade dos espermatozoides, e até a quantidade. Há maior nível de infertilidade em indivíduos obesos, por exemplo, os estudos mostram. Mas a qualidade do espermatozoide também é afetada e isso é muito importante porque, dependendo do seu estado na hora da fecundação, essas informações podem ser transmitidas para o embrião e fixadas ali. E podem programar o desenvolvimento do feto e o risco para doenças crônicas na idade adulta.”
Agora, o professor da FCF se dedica a desenhar estudos para tentar verificar que intervenções podem ser feitas, na dieta do pai, para reverter uma programação fetal que venha a “cobrar” do indivíduo um alto preço mais tarde.
“Outros grupos verificaram que uma intervenção com um mix de compostos bioativos, como por exemplo licopeno, polifenóis do chá verde e zinco, ajuda nesse sentido. Nosso grupo está estudando a suplementação com selênio, porque no primeiro estudo que fizemos, vimos que a deficiência de selênio nos pais aumentou o risco de câncer de mama nas filhas. Chegamos a testar esse caminho, mas a suplementação não teve o impacto positivo que esperávamos. Deduzimos que o contexto metabólico do indivíduo que recebe a suplementação é muito importante e vamos realizar novo experimento, agora com pais estressados metabolicamente”, adianta o professor.
Epigenética
Um dos pontos que Ong chama a atenção é para a importância dos fenômenos epigenéticos. Segundo o pesquisador, em nosso organismo há o “hardware”, que é o nosso genoma (a sequência mesmo), e o “software”, que controla como nosso hardware funciona. E esse software são os fenômenos epigenéticos. “Cada tipo celular tem uma programação epigenética. Lembrando que nosso organismo tem vários tipos de célula, mas todas com o mesmo genoma, que foi determinado quando houve a fusão dos gametas. No entanto, em termos de morfologia e funcionalidade, uma célula do fígado e uma célula adiposa, por exemplo, são completamente diferentes. Parte dessa diferença tem a ver com os programas epigenéticos, que são estabelecidos também no início da vida.”
A epigenética se refere a modificações acessórias à molécula de DNA, transmitidas por divisão celular, que não modificam a sequência de bases, mas podem regular a forma como o gene é expresso. “Um bom exemplo é a metilação do DNA, o mecanismo epigenético mais bem caracterizado: é uma modificação química que, entre outras coisas, pode suprimir a transcrição de determinados genes.”
Nutrientes demais
Hoje o mundo atravessa uma transição nutricional, e mais de 30% da população está obesa.
“A ironia foi que percebemos que o excesso nutricional na origem da vida também resulta nas mesmas doenças: obesidade, diabete, cardiovasculares… O excesso de nutrientes no início da vida também cobra seu preço, mesmo que a pessoa tenha uma dieta normal para o resto da vida.”
Seja como for, lembra Ong, os fenômenos epigenéticos são potencialmente reversíveis e há muitos grupos estudando isso, principalmente via manipulação da dieta. “No início da vida, o epigenoma é mais plástico, mas, quando vamos envelhecendo, ele ‘endurece’ e é mais difícil manipular.”
Enquanto os cientistas tentam responder se, por meio de intervenções alimentares, conseguirão modular os fenômenos epigenéticos e minimizar os riscos de doenças induzidas por eles nos adultos, o conselho de fundo não muda: ter uma dieta equilibrada e saudável, fazer exercícios regularmente, beber pouco e não fumar. Mais do que garantir bem-estar, essas atitudes prometem uma herança mais interessante para os pimpolhos.
Sobre o FoRC
Criado em 2013, o FoRC é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Reúne equipes multidisciplinares de diferentes instituições de pesquisa do Estado de São Paulo: USP, Unicamp, Unesp, Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) e Instituto Mauá de Tecnologia (IMT). Suas linhas de pesquisa estão estruturadas em quatro pilares: Sistemas Biológicos em Alimentos; Alimentos, Nutrição e Saúde; Qualidade e Segurança de Alimentos; e Novas Tecnologias e Inovação. Além de realizar pesquisas e promover a transferência de tecnologias e novos conhecimentos para a sociedade, o FoRC também realiza atividade de difusão do conhecimento científico.
Angela Trabbold / Acadêmica Agência de Comunicação