Desbravando águas profundas: pesquisa discute desafios e avanços do mergulho científico no Brasil

Publicado no periódico Ocean and Coastal Research, artigo reúne décadas de estudos sobre o mergulho como uma prática científica essencial

 01/02/2024 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 05/02/2024 as 14:03

Texto: Denis Pacheco
Arte: Carolina Borin*

Mergulho IEAPM para levantamento de bentos, que são organismos do substrato de ambientes aquáticos - Foto: Disponível no livro Biodiversidade Marinha dos Costões Rochosos de Arraial do Cabo: Histórico, Ecologia e Conservação/Marinha do Brasil via Flickr

Embora geralmente relacionado ao ato de submergir na água, o verbo “mergulhar” também pode significar explorar profundamente o desconhecido, possivelmente trazendo algo novo à tona. Em uma colaboração entre diversos institutos científicos de diferentes Estados brasileiros, o artigo Scientific diving in Brazil: history, present and perspectives, recém-publicado no periódico Ocean and Coastal Research, reúne décadas de estudos sobre o mergulho como uma prática científica essencial.

Divulgado em dezembro de 2023, o texto traz uma série de reflexões sobre a atividade e descreve o primeiro relato de estudo científico subaquático no Brasil, que data do século 19 nos recifes de Abrolhos. Atualmente, o mergulho científico é realizado em diversas áreas, desde regiões costeiras rasas até locais remotos e de difícil acesso, como ilhas oceânicas, cavernas inundadas e áreas geladas como a Antártida.

“O mergulho científico (MC) é qualquer atividade que realizamos necessitando da submersão com a finalidade de obtenção de dados ou material científico”, explica o professor Tito Monteiro da Cruz Lotufo, do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, um dos autores do artigo, parte de um grupo de trabalho sobre o assunto. Segundo ele, essa prática é crucial em várias áreas, incluindo oceanografia, biologia marinha e arqueologia.

No entanto, conforme os autores, a regulamentação da modalidade no Brasil ainda carece de ações mais concretas para uma autorregulação eficaz e eficiente, que ofereça segurança física aos praticantes e salvaguardas institucionais para as organizações que o utilizam em seus projetos de pesquisa.

Tito Monteiro Lotufo - Foto: Arquivo pessoal

Tito Lotufo - Foto: Arquivo Pessoal

Quem são os mergulhadores?

“O mergulho é uma atividade muito antiga, desde a captura de organismos no fundo do mar até a busca por tesouros. Ao longo da história, [a atividade] teve vários pontos de desenvolvimento, muitas vezes envolvendo a ciência, mesmo que não fosse exatamente voltado para responder perguntas científicas”, esclarece Lotufo ao enfatizar a invenção do SCUBA – sigla em inglês para Self-Contained Underwater Breathing Apparatus –, por Jacques Cousteau e Philippe Tailliez, como um marco no desenvolvimento do mergulho científico, expandindo significativamente o alcance das pesquisas subaquáticas desde meados do século 20.

“A partir [da invenção do SCUBA] as coisas se aceleraram, com a criação de associações e o desenvolvimento de protocolos e normas”, reflete o especialista.

No Brasil, uma revisão bibliográfica em bases de dados mostrou um aumento significativo na produção científica relacionada ao mergulho científico desde os anos 2000. A maioria dos documentos analisados pertence à biologia marinha, seguida por geologia, estruturas artificiais e etnociência. As áreas mais comuns de estudo foram aspectos ecológicos, comportamento animal, taxonomia, registros de espécies invasivas e mapeamento de habitats. Este aumento na produção científica está diretamente relacionado ao crescimento de recursos humanos no campo desde os anos 2000.

Desde os anos 2000, houve um aumento significativo na produção científica relacionada ao mergulho científico, que está diretamente relacionado ao crescimento de recursos humanos no mesmo período - Foto: Ayden Zaki/Pexels

Para mapear esse processo, o estudo buscou entender o perfil dos mergulhadores científicos no Brasil. A maioria dos participantes tinha formação em Ciências Biológicas, seguida por Oceanografia, Arqueologia, Engenharia de Pesca e Ecologia. Os resultados mostram que a maioria dos mergulhadores científicos no Brasil são homens jovens, geralmente com doutorado, que conduzem pesquisas relacionadas às ciências biológicas em águas costeiras até 30 metros de profundidade.

Neste contexto, o professor destaca a importância do grupo de trabalho dentro do Comitê Executivo para a Formação de Recursos Humanos em Ciências do Mar (PPG-Mar), vinculado ao Ministério da Educação. O grupo, criado em meados de 2004, busca desenvolver cursos de formação na área marinha e estabelecer normas para o mergulho científico. “Esse grupo de trabalho foi criado dentro do PPG-Mar, vinculado ao MEC, com a função principal de desenvolver cursos de formação na área marinha. Surgiu da necessidade de algum tipo de respaldo governamental para tentar regulamentar a atividade do mergulho científico”, conta.

“Uma grande limitação que temos hoje é a formação do mergulhador científico. Não temos uma norma ou protocolo padronizado no Brasil”, revela o professor. De acordo com ele, a formação do cientista mergulhador é um desafio, pois depende de uma formação em mergulho e também uma formação científica acadêmica formal. “O treinamento de mergulho é caro, e os equipamentos são meio caros, algo inacessível para a maioria da população brasileira”, enumera.

Sobre o papel das universidades no avanço da prática, o professor demonstra preocupação com a infraestrutura e recursos para o mergulho científico no Brasil. Nos últimos anos, Lotufo reforça a importância da manutenção dos navios do IO, por exemplo, que recentemente enfrentou dificuldades burocráticas como falta de pessoal para manutenção e operação. “Sabemos que a estrutura para a manutenção dos navios é onerosa e pesa no orçamento da Universidade, mas eles são essenciais no estudo da Oceanografia”, pontua.

Navios do IO possibilitam práticas que vão desde análises biológicas até o teste de equipamentos - Foto: Francisco Vicentin/IO-USP

Preservação de ecossistemas

Além disso, Lotufo destaca o papel dos mergulhadores científicos no monitoramento de ecossistemas marinhos, particularmente diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas.

“Temos esse enorme desafio que é a exploração da Amazônia Azul, uma área gigantesca sob responsabilidade do Brasil. Como isso pode ser feito de forma sustentável e racional sem conhecer?”, questiona o especialista, ao lembrar que, em pleno século 21, “ainda há muito a ser descoberto e isso demanda recursos”. Para ele, é necessária uma abordagem mais estruturada e institucionalizada para o mergulho científico no Brasil, citando exemplos de programas bem estabelecidos em outros países, como nos Estados Unidos.

“Esperamos que a ferramenta de mergulho seja cada vez mais disseminada, principalmente no processo de formação dos pesquisadores e profissionais. Isso vai permitir que utilizemos essa ferramenta de uma forma mais ampla e conheçamos de forma muito mais abrangente o que acontece debaixo d’água”, elucida.

Por fim, o artigo prega sobre a importância do investimento nas especificidades das unidades que lidam com o estudo do mar, abordando desafios logísticos e financeiros enfrentados especialmente em um país com uma vasta costa como o Brasil. Com isso em vista, em uma provocação final, o professor questiona: “Como avançar para um futuro sustentável sem um bom conhecimento desse sistema, que é o grande regulador climático do planeta?”.

Mais informações: e-mail mlotufo@usp.br, com Tito Lotufo, professor do Instituto Oceanográfico (IO) da USP

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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