Arte de Lívia Magalhães com imagens de Flaticon

Covid-19: gêmeos idênticos podem mostrar diferentes respostas imunológicas à infecção

Estudo descreve par de gêmeas geneticamente iguais que apresentou respostas celulares diferentes para a infecção pelo coronavírus

27/04/2021

Por Guilherme Gama
Arte: Lívia Magalhães/Jornal da USP

Gêmeos monozigóticos são aqueles considerados geneticamente idênticos. Tradicionalmente eles ajudam os cientistas a identificar quais características são determinadas de maneira mais intensa pela genética e quais sofrem uma maior influência das experiências vividas por cada um. No meio da pandemia, uma questão quase natural seria: o quanto a genética influencia na maneira como o sistema de defesa do organismo se comporta frente ao coronavírus? Um grupo de cientistas brasileiros já fez esta pergunta e também já começou a procurar a resposta: eles estudaram dois pares de gêmeos idênticos que testaram positivo para a covid-19, mas apresentaram quadros diferentes para a doença.

Um dos pares de gêmeos, que são do sexo masculino, teve resultados similares e quadro assintomático. Já o par do sexo feminino relatou sintomas. Uma das irmãs, profissional de saúde, foi reinfectada meses após a primeira infecção, desta vez com sintomas mais intensos. Os resultados do estudo descrevem como deficiente a resposta celular da gêmea reinfectada – a resposta celular é uma das frentes de atuação do nosso sistema imunológico, envolvendo principalmente células denominadas linfócitos T.

“Nós esperávamos que essas pessoas tivessem sintomas similares e até o mesmo desfecho, com uma evolução e progressão semelhantes da doença. Diferente disso, também não encontramos, a princípio, na genética, uma resposta para esses diferentes comportamentos imunes”, conta Mateus Vidigal

Mas por que houve respostas celulares diferentes entre indivíduos geneticamente iguais? Os pesquisadores sugerem que a explicação pode estar na construção da memória imunológica, distanciada dos fatores genéticos. De acordo com Mateus Vidigal, um dos autores do estudo, a hipótese é que, ao longo da vida e nas variadas experiências envolvendo patógenos e diferentes exposições a antígenos, cada uma das irmãs desenvolveu diferentes respostas imunes, mesmo estando sob o mesmo contexto social. “É como se nossa resposta imune fosse única”, explica o biólogo, que é pós-doutorando no Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP (Genoma USP).

O pesquisador Mateus Vidigal - Foto: Arquivo pessoal
Professor Edecio Cunha-Neto - Foto: Arquivo Pessoal

Além do Genoma USP, o estudo foi realizado por pesquisadores do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O artigo em preprint (versão prévia, ainda sem revisão externa), intitulado Monozygotic twins discordant for severe clinical recurrence of COVID-19 show drastically distinct T cell responses to SARS-Cov-2, foi publicado em março, na plataforma medRxiv, e e contou com 31 cientistas, entre eles os professores Jorge Kalil (diretor do Incor), Mayana Zatz (coordenadora do Genoma USP) e teve a coordenação do professor Edecio Cunha-Neto (do Laboratório de Imunologia Clínica e Alergia da FMUSP).

O estudo detalha, pela primeira vez, um caso de reinfecção em um grupo com a variabilidade controlada (pela genética e pelo contexto social), destaca a importância da resposta imunológica para a defesa contra o vírus e evidencia que gêmeos idênticos, apesar das semelhanças genotípicas, podem apresentar respostas completamente diferentes à covid-19. “Esses dados contribuem como luzes nesse caminho tão intrincado e obscuro que é a compreensão da covid-19”, diz Mateus Vidigal ao Jornal da USP.

“Nós esperávamos que essas pessoas tivessem sintomas similares e até o mesmo desfecho, com uma evolução e progressão semelhantes da doença. Diferente disso, também não encontramos, a princípio, na genética, uma resposta para esses diferentes comportamentos imunes”, destaca o biólogo

Infecção, reinfecção e genética

Desde o começo da pandemia, há relatos de pessoas que compartilham a mesma residência, mas apenas uma foi acometida pela covid-19. Em contrapartida, foram vistos muitos casos de famílias que enfrentaram juntas quadros graves da doença. Esse cenário motivou o grupo de pesquisadores a buscar entender o comportamento dos mecanismos de defesa nos casos de infecção e reinfecção e se havia um componente genético para as respostas. 

Durante a pandemia, muitas famílias enfrentaram o coronavírus juntas na mesma residência - Foto: Pixabay

A pesquisa foi realizada com os dois pares de gêmeos monozigóticos, que haviam se infectado pela covid-19 entre maio e junho de 2020. O par do sexo masculino foi assintomático e o do sexo feminino apresentou sintomas, sendo que uma das irmãs foi reinfectada quatro meses depois da primeira infecção. As duplas residiam nas mesmas casas e compartilhavam de muitos hábitos. Assim que o sequenciamento genético verificou a condição monozigótica dos pares, foram iniciadas as análises imunológicas.

Keity Santos - Foto: Arquivo pessoal

A professora de imunologia da FMUSP Keity Santos explica que, entre as defesas imunitárias avaliadas, foi analisada a resposta inespecífica que, geralmente, é a primeira ativada quando o organismo entra em contato com algum antígeno qualquer, isto é, um agente estranho, como vírus e bactérias. Ela atua como uma primeira barreira à infecção, independente do tipo de invasor. Os dados do estudo, realizado com amostras de sangue dos pacientes, mostraram que não houve falha nessa resposta para nenhum dos casos e os pares apresentaram uma ativação muito semelhante desse mecanismo. 

 

A resposta específica é aquela que envolve a memória do sistema imunológico, adquirida por uma exposição prévia ao invasor, ou seja, é personalizada contra cada agente. Ela inclui a chamada resposta humoral (com produção de anticorpos por células denominadas linfócitos B), que foi a analisada no estudo com o sars-cov-2. Neste caso, se avaliou o poder neutralizante dos anticorpos, ou seja, a capacidade de impedir a entrada de vírus nas células. Mas os cientistas também não encontraram grandes diferenças entre os gêmeos.

O grande achado da pesquisa se deu na análise de outro tipo resposta específica, a resposta celular, que acontece através da atuação dos linfócitos T. Estas células reconhecem os vírus por meio de fragmentos de suas proteínas (chamados de epítopos) e destroem tanto os próprios vírus quanto as células infectadas, usadas por eles para se replicar. Essa é a forma de defesa mais eficiente, sendo ativada quando as anteriores não bastaram. 

Nosso estudo sugere que a resposta imune celular protege contra reinfecções, e outros estudos recentes indicam que a resposta celular é muito menos afetada por variantes do que a resposta humoral”, destaca Edecio Cunha-Neto, coordenador da pesquisa 

Quando foi analisada em laboratório a resposta celular dos linfócitos T aos epítopos de uma gama de vírus (da família do coronavírus), observou-se que os gêmeos assintomáticos apresentaram boa resposta, assim como a irmã não reinfectada. Já a que se infectou novamente apresentou uma reposta celular deficiente. “Enquanto o sistema imune dos gêmeos respondeu para quase todos os 46 epítopos testados do vírus e o de uma das irmãs reconheceu 36, o da gêmea que teve reinfecção reconheceu apenas 7, apresentando uma resposta fraca e deficiente”, afirma Keity ao Jornal da USP. Os cientistas acreditam que o fato dela ter desenvolvido uma resposta de células T voltada a poucos epítopos do vírus pode ser a razão pela qual ela foi reinfectada.

Além de mostrar que gêmeos idênticos, de mesmo contexto social, podem apresentar respostas diferentes à covid-19, a pesquisa demonstra a importância da resposta celular para o combate ao sars-cov-2, ao apresentá-la como um fator determinante para o desfecho da infecção.

“Nosso estudo sugere que a resposta imune celular protege contra reinfecções, e outros estudos recentes indicam que a resposta celular é muito menos afetada por variantes do que a resposta humoral”, destaca ao Jornal da USP o coordenador da pesquisa, o professor Edecio Cunha-Neto, da FMUSP. “Em conjunto, os dados sugerem a possibilidade que, em vacinados ou infectados, a resposta celular vai ser tão eficaz contra as variantes como com a cepa original do coronavírus, mesmo que os anticorpos sejam menos eficazes contra a variante, e é possível que isso confira proteção frente às novas cepas”, conclui Cunha-Neto.

Mais informações: e-mail mateusvidigal@hotmail.com, com Mateus Vidigal


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