Nem delinquentes, nem obedientes: rap revela faces do jovem de periferia

Letras das músicas desconstroem imagem de jovens da periferia e associação à criminalidade

 16/02/2017 - Publicado há 7 anos
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Racionais MCs, liderado pelo MC Mano Brown (dir.), na Virada Cultural Paulista de 2015 - Foto: Marcelo Pretto/SCesp
Os Racionais MCs, grupo liderado por MC Mano Brown (mais à direita) – Foto: Marcelo Pretto/SCesp

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O rap subverte a imagem criada pela sociedade de que jovens moradores de favelas estão sempre associados à violência e à criminalidade. Os que se identificam com a cultura hip hop se reconhecem como sujeito social, contestam e escancaram suas origens, histórias e identidade. Estas são as conclusões de um estudo realizado no Instituto de Psicologia (IP) da USP. Em seu doutorado, a psicanalista Marta Quaglia Cerruti buscou conceitos freudianos para compreender o potencial artístico e contestatório desse estilo musical, analisando produções dos Racionais MCs, um dos primeiros grupos de rap a fazer sucesso em todo o Brasil.

Segundo a pesquisadora o “rap expõe o que a sociedade insiste em recalcar e manter distante – os séculos de opressão e de exclusão”. Na perspectiva de Sigmund Freud, médico criador da psicanálise, a presença do estranho provoca angústia e temor por trazer para perto o que se deseja afastar – conceito que a pesquisadora encontrou para explicar a alienação das pessoas em relação ao mal do outro.

Embora as letras escancarem a dura realidade dos que vivem nas periferias, quem se sente representado pelo rap não se posiciona como vítima. “Apesar de terem poucos anos de estudo formal, em ritmos e rimas produzem uma cultura marcante”, reforça. As letras, em geral, se contrapõem às imagens estereotipadas construídas pela sociedade que os representa como “marginais e figurações do periférico”. “O rap desconstrói visões que predominam no imaginário político e social de que os jovens da periferia estão fadados ao destino dicotômico de serem perigosos e delinquentes, ou na melhor das hipóteses, dóceis e obedientes”, explica.
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O rap traz para perto o que a sociedade quer manter longe, afirma a psicanalista Marta Quaglia Cerruti - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Marta Quaglia Cerruti: o rap traz para perto o que a sociedade quer manter longe – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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Para chegar a tais afirmações, Marta balizou suas pesquisas nas letras das obras dos Racionais MC, grupo liderado pelo MC Mano Brown. As músicas denunciam a destruição da vida de jovens, negros e pobres da periferia de São Paulo. Falam do racismo e do preconceito aos quais são subjugados, da brutalidade da polícia, da miséria e do estereótipo que a sociedade lhes impõe.

Carandiru

Sobrevivendo no inferno/Diário de um detento, sucesso em todo território nacional, teve a letra produzida a partir de relatos cotidianos registrados em cadernos por um detento que presenciou o massacre de 111 presos no Carandiru. Segundo a pesquisadora, logo nos primeiros versos, a intenção era mostrar algo que escapava ao entendimento das pessoas: a vida carcerária. Uma realidade truculenta que não era retratada pelos discursos oficiais dos governantes nem das mídias. Na opinião da psicanalista, “as imagens descritas nas músicas elevaram a experiência caótica da detenção a um patamar mínimo de compreensão”.

Capa do CD Sobrevivendo no inferno - Foto: Divulgação
Capa do CD Sobrevivendo no inferno – Foto: Divulgação

Em um dos trechos da música, a vida dos detentos é assim descrita: “…tem uma cela que se encontrava fechada desde terça-feira e ninguém aparecia por lá, tinha cheiro de morte e cheiro de pinho sol”…

A letra segue com a descrição do maior massacre já ocorrido nas detenções brasileiras. As brigas entre os presos do pavilhão 9, o desprezo do governo em intervir para resolver pacificamente o problema; e por fim, a tragédia em si. “…o sistema não quis…cachorros assassinos… ratatatá! Sangue jorra como água do ouvido, da boca e do nariz. Morreu em cima do salmo 23. O senhor é meu pastor… perdoe o que o seu filho fez. Morreu sem padre, sem repórter e sem socorro…”.

Em primeira pessoa, a letra reproduziu o que certamente aconteceu no massacre do Carandiru, Casa de Detenção de São Paulo, dia 2 de outubro de 1992, onde oficialmente morreram 111 pessoas. “Sobreviventes afirmam que o número foi superior”, finaliza.

A tese de doutorado O jovem e o rap: ética e transmissão nas margens da cidade foi defendida no Departamento de Psicologia Clínica do IP, sob orientação de Miriam Debieux Rosa.

Mais informações: e-mail marta.cerruti@terra.com, com Marta Quaglia Cerruti


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