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A medicina tradicional é baseada no princípio dos contrários: uma inflamação é tratada com anti-inflamatório, uma depressão é tratada com antidepressivo, etc. Já na homeopatia, os medicamentos atuam de acordo com o princípio da semelhança: drogas capazes de despertar certos sintomas em pessoas sadias podem ser usadas para despertar uma reação curativa em doentes com os mesmos sintomas.
Condenada por uns e defendida por outros, a homeopatia gera calorosas discussões dentro da medicina tradicional. Mas e o que se pode dizer sobre o uso em animais, dentro da medicina veterinária? Descobrir essa relação foi o objetivo da pesquisadora Clarice Vaz de Oliveira. Em sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP ela pesquisou de que forma a homeopatia veterinária se expressa numa instituição que, na cultura ocidental, tem a primazia da legitimidade acadêmica, que é a universidade. O estudo foi apresentado em setembro de 2016 sob a orientação do professor Nilson Roberti Benites.
Clarice explica que a homeopatia é reconhecida como uma racionalidade médica e sua prática implica necessariamente uma ressignificação completa do que é saúde, do que é medicina, do que é um ser biológico. “Trata-se de uma outra perspectiva, um outro sistema médico, muito diferente daquele encontrado na medicina tradicional”, explica a médica veterinária.
Os experimentos científicos se dão na universidade. Como a pesquisa em homeopatia pode ser realizada e estudada se ela não aceita estudá-los?”
Assim como outras práticas não hegemônicas, como acupuntura e fitoterapia, a homeopatia também tem muita dificuldade de implantação ao não ser reconhecida como científica. Por isso, segundo a pesquisadora, não usufrui do espaço necessário para o exercício das atividades médicas. “Os experimentos científicos se dão na universidade. Como a pesquisa em homeopatia pode ser realizada e estudada se ela não aceita estudá-los?”, questiona. Clarice conta que a crítica mais frequente em relação à homeopatia, sobretudo dos especialistas, é a falta de cientificidade, “pois ela não se encaixa no paradigma de racionalidade baseado na filosofia mecanicista”.
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Banco de dados
Por meio do banco de dados do Ministério da Educação (MEC), Clarice entrou em contato com cerca de 200 instituições de ensino de medicina veterinária das redes pública e privada do Brasil. A ideia era verificar a presença da homeopatia em três áreas: na produção científica (existência de programas de iniciação científica, mestrado, doutorado ou núcleo de estudo); na reprodução de conhecimento (oferecimento de disciplinas obrigatórias ou optativas); e no atendimento ambulatorial ou clínico.
Ela também analisou o número de horas/aula, o ano de implantação, além das ementas das disciplinas sobre homeopatia (o que era estudado, o plano curricular, etc.). As entrevistas foram realizadas com os coordenadores de curso e, em alguns casos, ela pôde conversar diretamente com o professor responsável pela disciplina.
Quando 20% se transformam em 1%
Das 200 instituições contatadas, Clarice obteve a resposta de 99. E 20% delas confirmaram a existência de uma disciplina específica sobre homeopatia. A segunda parte do estudo consistiu em analisar esses dados qualitativamente. E, ao fazer isso, Clarice constatou que esses 20% são absolutamente ínfimos. Das 20 disciplinas, 19 eram optativas. Apenas uma era obrigatória – e exatamente na faculdade onde o professor que lecionava homeopatia era o coordenador do curso. “As disciplinas não surgem de forma espontânea. De acordo com o educador Tomás Tadeu da Silva, o currículo é construído por meio de um processo de valorização diferencial e o que existe é o resultado de uma disputa de poder.”
Ao analisar as ementas, Clarice percebeu que a homeopatia não era tratada como um objeto único de conhecimento pois o conteúdo das aulas era compartilhado com o ensino de outras práticas não convencionais, como acupuntura, fitoterapia e florais de Bach. A carga horária média foi de 20 horas/aula. A única exceção foi na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, onde a disciplina é optativa, mas aborda exclusivamente a homeopatia.
Outra observação de Clarice é que a maioria dessas disciplinas é oferecida nos anos finais da graduação, quando o aluno já está totalmente familiarizado com a medicina tradicional e poderá ter mais resistência ao ser apresentado a um outro sistema tão diferente. “Se fôssemos verificar o real oferecimento de homeopatia, podemos considerar que ele é insignificante. Então esses 20% se transformam em 1%.”
Prática do poder
Muitos professores falaram sobre fitoterapia acreditando que era o mesmo que homeopatia. “Um outro docente passou as informações que eu solicitei, mas ressaltou que considerava a prática homeopática um charlatanismo. Se na instituição há um professor que manifesta isso, a homeopatia dificilmente terá acesso a um espaço de discussão e pesquisa”, questiona.
Em outro caso, a disciplina existia, mas nunca tinha sido ofertada pois não havia docentes aptos. “Se não tenho oferecimento consistente de reprodução de conhecimento, como vou ter pessoal capacitado para produzir esse conhecimento?”
Para a pesquisadora, a prática científica é uma prática do poder. Quem prevalece é quem tem hegemonia. “O poder
institucional de alguma forma vai contribuir para resultar naquilo que nós temos enquanto oferecimento daquilo que é ou não legítimo. A homeopatia claramente é uma área não reconhecida como legítima. E a legitimidade é uma construção que se dá todos os dias, pelas opiniões e pareceres dos especialistas. Isso cai na discussão curricular.”
O mundo não pode ser dividido entre médicos alopatas (que seguem a medicina tradicional) e médicos homeopatas, mas sim em profissionais bons e profissionais ruins – sejam eles alopatas ou não.
Alteridade
Clarice ressalta que o mundo não pode ser dividido entre médicos alopatas (que seguem a medicina tradicional) e médicos homeopatas, mas sim em profissionais bons e profissionais ruins – sejam eles alopatas ou não. E lembra da importância do exercício da alteridade (reconhecimento do diferente) que, segundo ela, é muito mal tratada pela medicina tradicional.
“Reconhecer algo legítimo é um exercício de alteridade. Mas existem duas coisas muito diferentes mas são confundidas: a empatia e a identidade. A tolerância em relação ao diferente, que é esse exercício de alteridade, não pode implicar que eu me identifique com uma determinada coisa. Porque pode ser algo totalmente diferente da minha cultura, do meu modo de ser. Entretanto, eu posso, ainda assim, ter empatia por isso, reconhecer que, apesar de ser diferente de mim, responde a outra forma de ser e a outras expectativas”, finaliza.
Mais informações: e-mail carolicevaz@gmail.com, com a médica veterinária Clarice Vaz