Tradição de campanhas bem-sucedidas de vacinação no Brasil depende de educação e formação cidadã

Gonzalo Vecina Neto acredita que a adesão brasileira para a vacina continuará alta, mas espera que essa adesão alta encontre disponibilidade de vacinas

 26/10/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 01/08/2024 às 16:22
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Ter uma população que resiste ao negacionismo e acredita na importância da vacinação para salvar vidas já mostrou seu potencial até aqui – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Vacinar a população é como uma balança. De um lado, o povo engajado em tomar a vacina. De outro, um governo que compra imunizantes e informa seus governados sobre as campanhas. No combate à pandemia do coronavírus, a balança parece ter chegado a um equilíbrio que colocou o Brasil entre os países que mais vacinam no mundo. Pelo menos em termos absolutos. Mas a compra tardia de doses de vacina pelo governo federal e momentos de boicote aos imunizantes mostram que os pratos não estavam na mesma sintonia.

“Nós temos uma tradição de vacinação e a população é informada sobre a importância dela com frequência”, afirma o professor Gonzalo Vecina Neto, da Faculdade de Saúde Pública da USP. O marco para que essa frequência fosse iniciada foi 1973, ano de criação do Plano Nacional de Imunizações (PNI). O resultado dessa agenda sanitária foi a erradicação de doenças como a varíola e a paralisia infantil, além do combate a epidemias como a febre amarela.

Passadas algumas décadas, agora em um contexto de pandemia, todo esse histórico certamente contribuiu para conter o avanço da covid-19 e de novas variantes do coronavírus, potencialmente mais contagiosas e letais. Para Vecina, com a necessidade de uma terceira dose de reforço para o futuro, a expectativa é de que tanto a estrutura quanto a adesão da população permaneçam em altos níveis: “Eu acho que a adesão brasileira para a vacina continuará alta. O que eu espero é que essa adesão alta encontre a vacina na outra corda”.

Falta de imunizantes

Se o governo federal tivesse comprado os imunizantes em número suficiente assim que foram disponibilizados, as 38 mil salas de vacinação que existem no Brasil poderiam ter vacinado toda a população em cinco meses – Foto: pb.gov.br

 

Ter uma população que resiste ao negacionismo e acredita na importância da vacinação para salvar vidas já mostrou seu potencial até aqui. Em julho de 2021, 94% da população brasileira já tinha tomado o imunizante ou pretendia se imunizar, segundo o DataFolha. Porém, esse engajamento precisa encontrar correspondência no âmbito governamental.

“O que nós poderíamos ter feito melhor nesta crise? Só uma coisa: comprado vacina”, analisa Vecina. O professor da USP, que também pesquisa sobre gestão em sistemas de saúde, calculou que, caso o governo federal tivesse comprado os imunizantes em número suficiente assim que foram disponibilizados (a partir de dezembro de 2020), as 38 mil salas de vacinação que existem no Brasil poderiam fazer com que toda a população fosse vacinada em cinco meses.

Campanhas de vacinação

Durante a pandemia, o Brasil sofreu, e ainda sofre, com movimentos de boicote à vacinação e ao isolamento social, medidas mais efetivas para conter a disseminação da covid-19 – Foto: gov.br

 

Além da disponibilidade de imunizantes, a existência e a frequência de campanhas de vacinação também são importantes para que a população se engaje na proteção. “Campanha de vacinação não chama campanha por acaso. É preciso haver informação para que as pessoas venham se vacinar”, aponta Vecina.

Nesse sentido, especialistas ressaltam a importância das campanhas de vacinação continuadas. A professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma: “Se não houver, a memória vai se apagando. A adesão das pessoas a qualquer coisa de ordem pública não é necessariamente espontânea. A noção de público tem que ser cultivada”.

Durante a pandemia, o Brasil sofreu, e ainda sofre, com movimentos de boicote à vacinação e ao isolamento social, medidas mais efetivas para conter a disseminação da covid-19. Na visão de Ana Lúcia, esses atores afetam o processo de construção da coletividade: “Figuras públicas que desestimulam a vacinação, até são frontalmente contrárias liberando fake news e coisas do gênero, fazem um desserviço à cidadania”.

O Brasil enfrenta mais um obstáculo no longo prazo para salvar vidas em sua população: desde 2017, o País sofre com um processo definido por especialistas como o “desfinanciamento do SUS”. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema de saúde do mundo. São mais de 200 milhões de pessoas que têm acesso gratuito à saúde. Apesar de ter a importância ressaltada na crise sanitária do coronavírus, o SUS não escapa de diversas dificuldades.

Desde 2017, a União vem participando cada vez menos do financiamento desse sistema. Os efeitos aparecem também na eficiência de campanhas de vacinação. “O governo federal e os governos estaduais e municipais pararam de investir em comunicação. Infelizmente é isso que nós estamos vivendo”, revela Vecina.

Ressurgimento de doenças

Se, por um lado, durante a pandemia, a situação de emergência e o estímulo da imprensa impulsionaram a adesão dos brasileiros à vacinação, por outro, o combate a outras doenças não contou com tanta eficiência. No caso da poliomielite, ou paralisia infantil, o Ministério da Saúde apontou que em 2020 a imunização atingiu cerca de 76% da população-alvo da campanha, enquanto o ideal seria uma cobertura de 95%. Vacinas contra gripe também enfrentaram esse problema.

A poliomielite foi erradicada no Brasil em 1994, mas, sem a continuidade da vacinação, o cenário pode ser de piora. “É desesperador ter a possibilidade do retorno da paralisia infantil por incompetência desse governo, que nós não vamos conseguir punir, ao que tudo indica. As condições estão dadas, por conta da baixa cobertura vacinal e de o vírus estar circulando”, afirma Vecina. 

Na área da Antropologia, Ana Lúcia explica: “Não adianta o Brasil ter uma tradição de campanhas bem-sucedidas de vacinação se isso não for continuado. Basta que se interrompa esse processo de educação e de formação cidadã que tudo cai por terra”.

Nessa balança, não é somente a tradição de um sistema público de saúde eficiente em vacinar e uma população consciente em se imunizar que podem garantir o combate a doenças, das mais leves às mais graves. Esse cenário depende também do financiamento de doses e de campanhas. “Temos que retomar, temos que comprar vacina, comunicar que estamos vacinando e aí nós vamos conseguir recompor o Plano Nacional de Imunizações”, aponta Vecina.


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