O Senado Federal inicia a primeira rodada de votos sobre a PEC Antidrogas. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 34/2023) altera o texto da Carta Magna para proibir o porte e a posse de quaisquer drogas, independentemente da quantidade, com pena de prisão. Para ser aprovada, a PEC precisa do voto favorável de ⅔ dos senadores em dois turnos de votação. Antes do primeiro turno ocorreram cinco sessões deliberativas e entre os turnos devem ocorrer mais duas.
A tramitação da PEC acontece em reação à votação em curso no Supremo Tribunal Federal, em que os juízes decidem se irão ou não regularizar uma quantidade máxima de cannabis que categorize quem porta como usuário e não como traficante. Especialistas da USP explicam melhor como as leis de criminalização de entorpecentes funcionam e como a PEC e a votação do Supremo podem alterar o cenário jurídico que vigora no País.
A Lei de Drogas
Conforme explica Marcelo da Silveira Campos, doutor em Sociologia pela USP e professor adjunto da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), a Lei de Drogas, aprovada ainda em 2006, já traz a distinção entre usuário e traficante e despenaliza o porte e a posse de drogas para uso pessoal: “O artigo 28 da Lei 11.343 fez duas alterações básicas: Ele deu o fim da pena de prisão para o uso e instaurou medidas socioeducativas para o usuário. Então, não foi uma descriminalização, mas foi o fim das duas penas mais tradicionais do sistema penal moderno: a prisão e a multa”.
O professor coloca que, na época, a mudança foi vista como positiva por praticamente todos os parlamentares: “Essa mudança foi vista como interessante, positiva, pois não levaria mais os usuários para a cadeia, para a prisão. Isso foi um grande argumento do Congresso Nacional inteiro”. Contudo, a aplicação desse artigo pelas forças policiais, na prática, não aconteceu. A pesquisa quantitativa de Campos, que foi inclusive citada por um dos ministros do Supremo durante a votação, mostrou que muitas vezes o artigo aplicado nas apreensões não foi o 28. “A metade da saúde pública não entra no sistema jurídico. Se rejeita essa inovação, como observei de maneira quantitativa nas cidades de São Paulo, não aplicando o 28 e aplicando o artigo 33, ou seja, aplicando o artigo outro que é o do tráfico”, completa Marcelo Campos.
Perfil das apreensões
Maria Gorete Marques de Jesus é pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e doutora em Sociologia também pela USP. Em sua pesquisa O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos de crimes de tráfico de drogas, ela analisou autos de prisão em flagrante por tráfico e chegou a conclusões fundamentais para o debate da proibição da cannabis no Brasil. “Além de entrevistar atores jurídicos, a gente também fez uma pesquisa documental em atos de prisão em flagrante no período do final de 2010, início de 2011, com mais de 600 autos de prisão em flagrante.”
Na análise dos autos, a pesquisadora conseguiu traçar um perfil de quem eram as pessoas presas por tráfico de drogas na cidade de São Paulo: “Uma juventude pobre, negra, moradora de regiões periféricas da cidade e com baixa escolaridade. A maior parte das pessoas presas dependia da assistência jurídica da Defensoria Pública, o que também indica um baixo perfil socioeconômico”, expõe Maria Gorete.
A pesquisadora também percebeu inconsistências e fragilidades nas acusações: “74% dos casos só tinham a palavra do policial acusando a pessoa de estar vendendo as drogas. A gente tem também muitas abordagens por denúncia anônima, quando os autos de prisões em flagrante não tinham nenhum registro que pudesse comprovar que essa denúncia realmente aconteceu. E, em muitos casos, a droga não estava com a pessoa e sim estava no local em que a pessoa foi apreendida”.
Para a pesquisadora, esse perfil específico, unido ao fato de que o tráfico de drogas não diminuiu no Brasil, mesmo com numerosas prisões e apreensões, indica um desvio de foco no investimento policial. É preciso investir na inteligência da polícia, para que o tráfico possa ser combatido em sua estrutura. “O foco da política de drogas está muito na ostensividade e na repressão e muito menos na prevenção e no trabalho investigativo. Se investe muito mais na Polícia Militar do que na Polícia Civil. Tem-se uma polícia que está na linha de frente, prendendo quem está na ponta da economia criminal da droga e não quem está fazendo a gestão desse mercado” completa.
Questões jurídicas
Para combater a aplicação desigual da Lei de Drogas, o Supremo Tribunal Federal vota, por meio do Recurso Extraordinário nº 635659, se deve ou não decidir uma quantidade fixa de maconha que categorize a pessoa que porta como usuário ou traficante. Durante a votação, o ministro Alexandre de Moraes chegou a sugerir que uma quantidade de 25 a 60 gramas da erva, ou seis plantas fêmeas, indicaria a posse para uso pessoal. Essa quantidade foi estipulada com base em um levantamento sobre o volume médio das apreensões no Estado de São Paulo entre 2006 e 2017.
Em reação à votação do STF, vista como um importante passo para a descriminalização e a regularização das drogas no Brasil, o Senado Federal, de maioria conservadora, adiantou a tramitação da PEC antidrogas. A proposta altera os artigos 3º e 5º da Constituição Federal para estabelecer o combate às drogas ilícitas como princípio fundamental e vetando a descriminalização do tráfico e a legalização de novas drogas recreativas. O texto é do senador Sargento Gonçalves, do PL.
Mas, como explica o professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Marcos Augusto Perez, a proposta não traz clareza em seu texto, tampouco embarga o trabalho do Supremo: “A PEC introduz uma norma no artigo 5º da Constituição, que fala o seguinte: ‘A lei considera crime a posse e o porte independentemente da quantidade de entorpecentes.’ Parece que matou o Supremo Tribunal Federal, mas quando você continua a leitura, aí você vê que não é bem assim”.
Conforme evidencia o professor Perez, o resto da PEC expõe a redundância do texto: “Aí continua: ‘Sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra a dependência’. Essa segunda parte é exatamente o que já está na lei desde 2006, não muda nada”.
O professor explica melhor o significado dessa segunda parte do texto: “Regulamento é norma editada pela administração pública, então a Anvisa poderia regulamentar o assunto. E, quanto às circunstâncias do caso concreto, é o que já está na lei. O Supremo está dando um parâmetro para análise das circunstâncias do caso concreto”.
A real finalidade da PEC
Como a PEC não traz novidades significativas no campo jurídico, nem consegue inibir o Poder Judiciário de definir parâmetros para a análise das circunstâncias do caso concreto, é seguro afirmar que a tramitação do texto na casa legislativa cumpre outro propósito. “Esses julgamentos são cobertos pela imprensa, têm repercussão política. As bancadas religiosas hoje no Congresso Nacional são maioria e tendo o Congresso Nacional essa textura é claro que os políticos de lá têm que reagir, para mostrar para sua base que eles estão fazendo alguma coisa. A reação se deu por meio dessa PEC”, expõe Perez.
Contudo, a Emenda Constitucional altera o artigo 5º da Constituição, tido como um dos mais importantes e simbólicos da Magna Carta. O artigo define os direitos e as garantias fundamentais dos brasileiros e brasileiras e protege as pessoas contra ações arbitrárias do Estado. Mexer num trecho tão essencial para o ordenamento jurídico do País de maneira descuidada, utilizando do artigo que protege as garantias fundamentais para um movimento político de condenação de condutas individuais, pode trazer um precedente perigoso, além de confundir a jurisprudência.
“Os senadores fazem um movimento de colocar dentro do artigo 5º uma norma penal atrapalhada, confusa, mal redigida. A Constituição não é Código Penal e a PEC não acrescenta em nada, mas bagunça o sistema jurídico. Cabe mexer no artigo 5º apenas para ampliar a liberdade, o direito à intimidade e à privacidade, e não para restringir”, completa o professor Perez.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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