Como uma viagem acadêmica foi parar no centro da Guerra Fria?

Em 1961, a tensão geopolítica teve reflexos durante uma excursão de estudantes da Esalq aos EUA

 05/06/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 06/06/2023 as 10:43

Texto: *Caio Albuquerque
Arte: Carolina Borin Garcia

Grupo de estudantes da Esalq no Comando Aéreo Estratégico dos Estados Unidos - Fotos: Reprodução/Livro A Grande Excursão, agronomandos da Esalq de 1961

Hoje é possível embarcar em um voo em São Paulo e, menos de dez horas após, desembarcar em Nova York. Há seis décadas atrás a realidade era bem diferente. Em 1961, por exemplo, o mesmo trajeto durava cerca de 25 horas, exigindo quatro escalas para abastecimento. Naquele ano, um grupo de 20 estudantes do curso de Engenharia Agronômica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) cumpriu essa jornada, embarcando em Congonhas no voo 850 da Varig. Saíram de São Paulo no dia 15 de julho e, antes do desembarque em Nova York, pararam no Rio de Janeiro, Belém, além de outras escalas em Trinidad e Tobago e na República Dominicana.

Essa saga foi o ponto de partida da Grande Excursão de 1961, tradicional viagem acadêmica que propiciava aos esalqueanos aprimorar sua formação prestes a receber o diploma universitário. “Todo esalqueno passava por essa experiência, era algo marcante na trajetória de cada um”, conta o professor Epaminondas Sansígolo de Barros Ferraz, formado em 1958 na Esalq. Em 1961, já contratado como professor do então Departamento de Física da Esalq, ele foi o chefe da comitiva. Na prática, depois de aterrissarem em solo norte-americano, durante um mês o grupo visitou propriedades agrícolas, sistemas agroindustriais, além de estabelecerem contato com representações universitárias e de outras entidades pelo caminho.

Epaminondas Sansígolo - Foto: YouTube/CENA USP

Epaminondas Sansígolo - Foto: YouTube/Cena USP

Telegrama do presidente Jânio Quadros

Mapa do trajeto da excursão feita pelo grupo de estudantes da Esalq - Imagem: Reprodução

O início da década de 1960 ficou marcado pelo início da Guerra Fria. As potências EUA e União Soviética começavam ali a medir forças nas esferas militar e geopolítica, disputando aliados e coordenando ações que colocaram a paz mundial em risco. “O Brasil entrou nesse contexto a partir de janeiro de 1961, com a eleição de Jânio Quadros e seu consequente posicionamento ao lado de Cuba, que estava ameaçada de ser invadida pelos EUA”, rememora o professor Epaminondas Sansígolo. E, segundo ele, a viagem dos estudantes ganhou uma importância inesperada a partir de um telegrama.

“Não sei como o presidente Jânio Quadros ficou sabendo da nossa viagem. Ele me enviou um telegrama colocando à minha disposição todas as embaixadas brasileiras instaladas por onde quer que passássemos. Era algo inacreditável, mas ali percebi uma tensão em uma viagem de cunho meramente acadêmico.” Durante a permanência dos brasileiros nos EUA, um segundo ato presidencial subiu o tom geopolítico que aquela excursão acabou ganhando. “Estávamos em Fort Collins, Colorado, quando o presidente brasileiro enviou um memorando à Embaixada brasileira em Washington e a todos os consulados do Brasil nos EUA, salientando a “importância de nossa visita” e recomendando “total assistência” à nossa delegação.” O documento acabou sendo reproduzido em vários veículos da mídia brasileira.

Recortes de jornais da época brasileiros e internacionais sobre a expedição e assistência prestada - Fotos: Reproduções jornais da época

Amigo espião

Dois dias após aterrissarem nos EUA, o grupo da Esalq se apresentou ao Departamento de Estado americano para tomarem conhecimento da programação e detalhes burocráticos. “Ali tive contato com o Arden Du Bois, ou mr. Du Bois, como passamos a identificá-lo. Ele falava muito bem o português, me disse que havia trabalhado na Embaixada americana no Rio de Janeiro como adido cultural e que acompanharia o nosso grupo. Eu estranhei no início, mas ele se mostrou sempre educado, disse que sentia saudades do Brasil e como estava de folga iria nos acompanhar”, avaliou o professor. Mr. Du Bois foi figura presente e, à medida que avançávamos pelos Estados do Texas, Colorado, Nebraska, foi se enturmando para além das conversas com o professor. “Não demorou muito e ele foi se identificando com a turma. Dialogava com os estudantes e fazia-se presente nos compromissos de viagem e nas diversões ao longo do caminho. Até em guerra de bola de neve ele se envolveu”, comenta o professor em tom irônico. Apesar do entrosamento com mr. Du Bois, para o professor Epaminondas Sansígolo, a posição do convidado americano estava escancarada. “Certa vez passei numa loja e preenchi um cartão-postal a ser enviado para minha mãe aqui no Brasil. Então ele interpelava e se colocava à disposição para despachar o postal. E assim aconteceu com outros postais, de maneira que ficou claro que aquilo ali não passava de um trabalho de espionagem. Até que um dia, após uma cansativa sequência de visitas ao campo, estavam próximos à cidade de Washington D.C., quando o professor da Esalq aceitou o convite do “amigo espião” para conhecer seu escritório. “Ele me buscou no hotel com um carro imponente e seguimos para Langley, onde fica a sede da CIA – Central Intelligence Agency.  Um prédio enorme, e fui acompanhando meu amigo conforme as portas se abriam e as pessoas batiam continência para ele.”

Grupo de estudantes da Esalq no Aeroporto Trujillo, na Ciudad Trujilo, atualmente Santo Domingo - Fotos: Reprodução/Livro A Grande Excursão, agronomandos da Esalq de 1961

Lá dentro, pararam diante de uma porta instalada no meio de um longo corredor e, mr. Du Bois disse que diante daquela porta estava um supercomputador que continha informações sobre todas as pessoas importantes do mundo. Diante da surpresa do professor brasileiro, o norte-americano pediu a ele que citasse o nome de um profissional conhecido para que pudessem checar a existência de alguns dados. “Pensei um pouco e, sem colocar muita certeza no que estava fazendo, falei o nome de um amigo da Esalq, Sergio Vergueiro, que havia se formado um ano antes, um boêmio, gostava de música e que, após se formar, saiu em viagem pelo mundo e nem mesmo a família tinha muitas notícias dele.”

Fomos tomar um café e, pouco minutos depois, ao retornarem àquela mesma porta, onde havia um pequeno balcão que barrava o acesso das pessoas, receberam uma ficha impressa. Du Bois foi narrando o percurso do amigo do professor Epaminondas Sansígolo. Dizia que havia passado pela Europa, pela Índia, que seguia para o Japão e que dali estaria embarcando no voo para os EUA. “Para meu espanto, ele finalizou dizendo que meu amigo brasileiro desembarcaria no dia seguinte em Washington, dando o nome até do hotel em que estaria hospedado. E na manhã seguinte, encontrei esse colega, que estava no hotel indicado, trazendo na bagagem seu inseparável violão. Tudo isso em 1961!

Noticiário e o livro

Além da vigilância da CIA, as paradas do grupo de estudantes eram noticiadas pelos jornais locais. A presença de brasileiros universitários chamava a atenção e o jogo geopolítico sempre aparecia como pano de fundo. “Vinham nos entrevistar, fotografar, perguntavam sobre de que lado estávamos daquela guerra. Kennedy, Jânio Quadros, Nikita Khrushchov, Fidel Castro, entre outros líderes, estavam todos os dias no noticiário e isso repercutia na presença do nosso grupo perambulando pelos Estados Unidos. Ainda que nosso propósito fosse acadêmico, a repercussão extrapolava o caráter técnico.” Em Omaha, Nebraska, foram interpelados por um grupo de jornalistas que queriam saber de que lado o Brasil estava e a opinião dos brasileiros sobre Cuba e Fidel Castro. Após intensa programação técnica, científica e cultural realizada durante 30 dias, em dezenas de cidades em sete Estados, o grupo chefiado pelo professor Epaminondas Sansígolo embarcou no dia 14 de agosto em um Super Constellation da Varig de volta ao Brasil.

Livro

O relato completo dessa jornada pode agora ser conferido na obra A Grande Excursão, agronomandos da Esalq de 1961. Lançado no último dia 20 de maio na Biblioteca Municipal de Piracicaba, o livro é uma iniciativa promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), com apoio da Prefeitura Municipal e Secretaria de Cultura de Piracicaba. Informações para acessar a obra pelo e-mail ihgp@ihgp.org.br.

Livro “A Grande Excursão, agronomandos da Esalq de 1961” - Foto: Divulgação

Epaminondas Sansígolo de Barros Ferraz

É engenheiro agrônomo formado pela Universidade de São Paulo (1958), tem Doutorado em Física de Solos (1968). Construiu sua trajetória acadêmica no então denominado Departamento de Física da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), chegando a Professor Livre-Docente (1975), Professor Adjunto (1978) e Professor Titular em Física e Meteorologia (1986). Foi um dos fundadores do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP) e aposentou-se em 1991. Tem experiência em aplicações de técnicas nucleares em pesquisas ambientais, tem trabalhos científicos nas áreas de física de solos, física da madeira, agrometeorologia, geociências, análise por ativação neutrônica, radioatividade natural, contaminação radioativa e uso de isótopos estáveis em ecologia.

  • Texto – Caio Albuquerque – Assessoria de Comunicação Esalq USP

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