Em meio à pandemia do novo coronavírus, que espalhou a covid-19 por todo o planeta e já matou cerca de 400 mil pessoas, alguns países encontraram soluções para combater o mal. E não está se falando aqui da Nova Zelândia, que conseguiu debelar a doença, ou de Portugal, visto como um dos países europeus que melhor souberam lidar com o vírus. Não. Fala-se aqui de soluções, digamos, “criativas”. Na Coreia do Norte, o líder supremo Kim Jong-Un decidiu, por decreto, que a covid-19 passou ao largo das fronteiras do país asiático e que nenhum norte-coreano ficou doente. Já o ditador do Turcomenistão de nome quase impronunciável, Gurbanguly Berdimuhammedow, proibiu que fossem usadas as palavras “pandemia”, “covid-19” e “coronavírus”. Pronto, problema resolvido. O Brasil não chegou a tanto, mas parece que também está querendo fazer parte dessa companhia incômoda e relativizar o mal, sendo criativo à sua maneira. O governo federal olha para os números da covid-19 no País, com cerca de 700 mil infectados e 36 mil mortos, e parece dizer: “hora de mudar isso aí, tá ok?”.
E, desde a semana passada, os números relativos ao coronavírus passaram a ser divulgados tarde da noite – “para não dar matéria no Jornal Nacional” –, de forma confusa e sem totalizar os casos. “É só fazer a soma”, afirmou o vice-presidente Hamilton Mourão. Mas a questão vai muito além de se ter ou não uma calculadora nas mãos. É uma questão de transparência na informação, item que parece estar em falta no Planalto Central – é só lembrar, por exemplo, a reação do governo federal, em 2019, diante dos números de desmatamento na Amazônia, divulgados pelo Inpe (ver box abaixo). Até o número de mortos pela covid-19 passou a ser questionado e reestudado pelo Ministério da Saúde – que tem um general como interino “oficial” –, o que levou o jornalista Octavio Guedes, da Globonews, a citar ironicamente um improvável “ministério da ressurreição”. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a mudança na divulgação ocorreu depois que Jair Bolsonaro exigiu que números de mortes pela covid-19 fossem abaixo de mil por dia.
O próprio site do ministério chegou a ficar fora do ar. Com isso, a universidade americana Johns Hopkins – referência no ranking da doença no mundo – chegou a tirar o Brasil da contagem oficial do mal pelo planeta. No último domingo, por exemplo, o Ministério da Saúde conseguiu divulgar dois boletins distintos no final da noite. No primeiro, dava conta que havia 1.382 mortes e 37.312 novos casos. No segundo, pouco depois, as mortes despencaram para 525 e os novos casos passaram a ser de 36.455. “Erros na tabulação”, foi a explicação oficial. Mas lidar com a covid-19 é muito mais complexo do que varrer o vírus para debaixo do tapete ou manipular os números – as tais “malditas estatísticas”, como disse certa vez o primeiro-ministro da rainha Vitória, Benjamin Disraeli.
Porque estamos falando de uma democracia, com instituições solidificadas e atuantes, uma imprensa livre, uma população mais questionadora do que muitos gostariam e cientistas atentos. Não à toa, o colegiado dos professores titulares da Faculdade de Medicina da USP divulgou um manifesto nesta segunda-feira, dia 8, contra a alteração de acesso a dados da covid-19. O manifesto é curto e se posiciona flagrantemente contrário “às mudanças do site do Ministério da Saúde ao dificultar a disponibilização de todas as informações sobre a pandemia” e “às declarações que colocam em dúvida as informações relativas aos óbitos ocorridos no País, fato que ofende profundamente todos os profissionais da saúde que se dedicam diuturnamente ao atendimento de nossos pacientes e que desrespeita a dor das famílias das vítimas da covid-19”. E finaliza: “Ações como as citadas trazem enorme prejuízo ao controle da pandemia no País.”
O Brasil não está mais em 1974, quando o governo militar determinou que uma epidemia de meningite não fosse divulgada à população – o que, obviamente, não impediu que as pessoas ficassem doentes, mas atrapalhou muito o combate ao mal. A medida de agora – considerada “burra e tacanha” pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e uma “pedalada sanitária” por Marina Silva – coloca o Brasil ainda mais à margem da comunidade internacional. Mas há soluções, independentemente do que o Planalto queira ou não. O Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), que reúne os gestores dos 26 Estados e do Distrito Federal, inaugurou no último dia 7 um portal “paralelo” para divulgar os dados da pandemia no País. Os dados serão atualizados diariamente, às 17h. “Essas informações são propriedade do povo brasileiro, não dos Estados nem do ministério, que tem o direito inalienável de ter conhecimento dessa informação”, afirmou à Rádio Gaúcha o presidente do Conass, Alberto Beltrame. O Congresso também estuda ter seu próprio portal para informar sobre a pandemia.
Justamente para dar vazão a esse “direito inalienável”, veículos de comunicação como os portais G1 e UOL e os jornais O Globo, Extra, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo decidiram formar uma parceria inédita e divulgar, em conjunto, números sobre mortes e contaminados pela covid-19. Os jornalistas vão coletar os números diretamente junto às secretarias estaduais de saúde e divulgá-los diariamente às 20h, já que o Ministério da Saúde, que deveria ser a fonte natural, não tem ajudado em nada nesta tarefa. Pelo contrário. A “manobra ilusionista” – como caracterizou o jornalista Helio Gurovitz – e negacionista do governo está longe de encontrar terreno fértil no Brasil atual para prosperar. Há muitos olhos perscrutando o que está sendo (mal) feito. E como toda ilusão, esta também acaba caindo por terra. E os truques mal ajambrados do ilusionista são facilmente descobertos. E vão parar nas primeiras páginas dos jornais.
Esconder números não muda a realidadePor Herton Escobar A tentativa do governo federal de sufocar dados sobre a covid-19 no Brasil guarda muitas semelhanças com a crise envolvendo dados do desmatamento na Amazônia, em 2019. A situação era, essencialmente, a mesma: incomodado com a divulgação de dados oficiais que contradiziam seu discurso político e expunham falhas graves na gestão de uma emergência nacional, o governo preferiu questionar os números a enfrentar o problema. Culpar o termômetro em vez de resolver a febre, como se diz por aí. A ameaça, naquele caso, era o aumento desenfreado das queimadas e do desmatamento na Amazônia, revelado pelos dados de monitoramento por satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — um órgão do próprio governo, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), com 30 anos de experiência no assunto e altamente respeitado mundo afora como referência internacional no monitoramento de florestas tropicais. Questionado sobre o tema, Bolsonaro disse em um encontro com jornalistas, em 19 de julho, que os dados do Inpe eram “mentirosos” e que o diretor do instituto estaria agindo no interesse de organizações não governamentais (ONGs). Foi o estopim de uma crise internacional sobre o desmatamento na Amazônia, com consequências políticas, diplomáticas e econômicas duradouras para a imagem do País. O diretor do Inpe, na ocasião, era o físico Ricardo Galvão, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), ex-diretor da Sociedade Brasileira de Física (SBF) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF); figura altamente respeitada na comunidade científica nacional e internacional. Ele foi exonerado duas semanas depois, em 2 de agosto. A demissão não mudou o fato de que os dados do Inpe estavam corretos, e a negação deles só serviu para manchar a reputação do governo, e não do Inpe. A transparência e o rigor científico são marcas registradas do instituto, reconhecidos internacionalmente. Todos os dados de monitoramento por satélite do Inpe são públicos, assim como as metodologias de coleta e processamento que dão origem a eles, o que permite que a sociedade e a imprensa tenham acesso direto às informações. |