Marcello Rollemberg -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
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Eles eram cabeludos e desgrenhados, estavam com os hormônios em seu ponto de ebulição, amavam os Beatles, os Rolling Stones, Janis, Jimi e quantos outros que empunhassem uma guitarra elétrica e acreditavam piamente na Era de Aquário, que chegaria aspergindo paz e amor pelos quatro cantos do mundo. E esses jovens — hippies, como eram chamados em tom muitas vezes depreciativo — tinham sonhos. E achavam que o espaço para celebrar e mimetizar esses sonhos, o ápice do movimento do flower power e do make love, not war seria no festival de música que aconteceria no terreno enlameado de uma fazenda de gado leiteiro nos arredores da cidade americana de Bethel, no estado de Nova York. Bethel fica a cerca de 70 quilômetros da cidadezinha que, apesar de não ter sediado coisa alguma, acabou se tornando o nome-ícone do tal festival, que ganhou o nome um tanto pomposo de Woodstock Music and Art Fair — An Aquarian Exposition, 3 days of Peace and Music. Ou, simplesmente, o Festival de Woodstock.
Há exatos 50 anos, no dia 15 de agosto de 1969, o festival da paz e do amor começou. O local era a fazenda de Max Yasgur, que aceitou receber o evento depois que moradores de cidades próximas, horrorizados, disseram taxativamente que não queriam aqueles cabeludos por lá. Quando o cantor folk Ritchie Havens abriu o festival — a banda escalada para fazê-lo, a Sweetwater, havia sido parada na estrada pela polícia –, o sonho parecia ganhar ares de concretude.
Foram quase quatro dias de sexo, drogas e rock’n’roll. A programação previa que os artistas se apresentariam entre os dias 15 e 17, mas um temporal no domingo, dia 17, alagou tudo e empurrou a apresentação de Jimi Hendrix (e sua versão psicodélica para o hino americano) para a manhã da segunda, 18. Os números de Woodstock são bem representativos: mais de 400 mil espectadores (esperava-se, no máximo, 200 mil), 32 apresentações musicais, entre bandas e artistas-solo, dois partos, quatro abortos e duas mortes: uma por overdose de heroína e outra por atropelamento de trator. Estavam em uma fazenda, é bom lembrar.
Mais do que um grande e anárquico festival de rock, Woodstock representou — representa até hoje — o marco definitivo da contracultura, dos movimentos jovens que brotaram por todas as latitudes, mas que ganharam ressonância principalmente nos Estados Unidos. Woodstock não foi o primeiro festival a unir hippies e roqueiros — antes dele já havia acontecido o Monterey Pop –, nem foi o último — haveria ainda pelo menos mais um, na ilha britânica de Wight. Mas ele foi o definitivo, o paradigmático, aquele que definiu as ações, os anseios, os sonhos daqueles jovens que queriam pôr um ponto final na Guerra do Vietnã e em todas as guerras. Que queriam ver a Era de Aquário determinar caminhos, que queriam ver a flor vencendo o canhão. E acabaram não vendo nada disso. Porque Woodstock acabou sendo emblemático com os sinais trocados, uma espécie de últimos acordes de uma era que não estava necessariamente começando, mas sim acabando.
Só que ninguém sabia disso quando o festival foi pensado. Quando Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld se reuniram em Nova York para pensar como materializar a vontade dos quatro em criar um novo negócio, a ideia inicial era abrir um estúdio de gravação em Woodstock, mas a história acabou evoluindo para um festival de música ao ar livre. Os ingressos foram colocados à venda em lojas de discos ao preço de 18 dólares (coisa de 75 dólares em valores atuais) e os músicos foram convidados, sem que necessariamente houvesse algum cachê envolvido. O barato de Woodstock falava mais alto. Pelo menos para aqueles 32 músicos que aceitaram o convite, entre eles Crosby, Stills, Nash & Young, Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, The Who, Joan Baez (grávida de seis meses e que atualmente realiza turnê de encerramento da carreira) e um ainda pouco conhecido Joe Cocker, que arrebatou a plateia com sua versão visceral de “With a little help from my friends”, dos Beatles.
E por falar nos rapazes de Liverpool, onde eles estavam nessa história? Na mesma posição dos Stones, do Led Zeppelin, do The Doors, do Byrds e de Simon e Garfunkel, entre tantos outros convidados: dizendo um sonoro não à empreitada. Os motivos eram os mais diversos, mas envolviam a falta de um punhado de dólares na mesa e de vaga na agenda. Mas algumas negativas foram por motivos, digamos, mais prosaicos. O cantor Tommy James negou o convite porque seu secretário disse que “um criador de porcos no norte do estado de Nova York quer que vocês se apresentem na sua propriedade”. Digamos que, dito assim, não parecia mesmo nada tentador. O intérprete de “Crinson and Clover” se arrependeu pelo resto da vida.
Já a negativa de Ian Anderson, vocalista e líder do Jethro Tull é, por assim dizer, mais surpreendente. Anderson sabia que seria um grande evento, mas não queria participar pois “não gostava de hippies, de nudez inapropriada, excesso de bebida alcoólica e uso de drogas”. Quer dizer que ele saltitava como um elfo e tocava sua flauta com os olhos esbugalhados nas apresentações da banda a seco? Então ficamos assim…
O resto é história, o lugar merecido para Woodstock. E qualquer tentativa de emular o festival estaria, definitivamente, fadada ao fracasso. Como a recente empreitada de Michael Lang — um dos criadores originais — de reviver Woodstock em homenagem ao seu meio século. Nada feito. As razões são várias, e óbvias. Para começar, não existe mais a aura de romantismo contracultural que envolveu o encontro. Hoje, a questão é business. Sem dinheiro, não há acordo. E os artistas e seus empresários levam isso muito a sério. Outro fator é que a geração é outra, e seus gostos e vontades também. Dá para imaginar jovens plugados dessa contemporaneidade eletrônica em um lugar isolado de tudo, no meio da lama, sem ter onde dormir direito e sem a mais remota possibilidade de higiene? Pois Woodstock foi isso. E não se repete. Qualquer evento hoje tem que ter, no mínimo, wi-fi e um banheiro químico decente, fora outras facilidades. Os tempos são outros e a história, já disse um filósofo atualmente demonizado, só se repete como farsa.
O sonho, afinal, acabou: em 1970 Jimi e Janis estavam mortos e a Era de Aquário não chegou. No final das contas, talvez a vitória nessa disputa tenha sido daqueles hillbillies conservadores e reacionários que, no final de Sem Destino (Easy Rider), outro ícone da contracultura de 1969, matam a tiros de rifle os motoqueiros “hipongos” vividos por Peter Fonda e Dennis Hopper. Suprema ironia. Mas explicável e simbólica para os tempos que viriam, como os que vivemos atualmente, onde muitos fazem questão de estrangular sonhos. Coisa bem sabida da beira do rio Potomac às margens do lago Paranoá.
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O caldo de cultura que inspirou WoodstockPara se entender o Festival de Woodstock, em agosto de 1969, é importante compreender os eventos que o precederam em 1968:
Enquanto isso, no Brasil
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Ouça também o professor Adrian Pablo Fanjul a respeito de Woodstock:
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