Passagem – racionalidade e política na quarentena

Por Cristiano Barreira, psicólogo e diretor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto/USP

 19/05/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 21/05/2020 as 20:42
Cristiano Barreira – Foto: Gabriel Soares/Divisão de Comunicação da SCS – Polo Ribeirão Preto
A celebração da Ascensão, no próximo dia 21 de maio, marca um período que originalmente se iniciou com a ressurreição de Cristo, a Páscoa. De fato, a palavra Páscoa, proveniente do hebraico, significa “passagem”. Para o cristianismo, não é como metáfora, mas como a lembrança da verdadeira ressurreição do Cristo, a vitória sobre a morte, que a data começou a ser celebrada. A rigor a celebração se estende por 50 dias, sendo “quinquagésimo” o significado de Pentecostes. Após a Ressurreição, Cristo tinha prometido aos seus discípulos que compartilharia o seu Espírito, mas eles não sabiam quando e como isso aconteceria. Analogamente, não sabemos quando e como será o fim da quarentena.

Em todo o mundo, a quarentena e o distanciamento social estão entre as mais decisivas ações de política pública adotadas, gradativamente, no combate pela mitigação dos efeitos fatais da pandemia de covid-19. Sem ela – como hoje sabem todos aqueles que, tendo acesso à informação, não se fiam exclusivamente nos próprios desejos, na demissão do juízo crítico e no fanatismo conspiratório da vez, mas confiam nas recomendações embasadas cientificamente – os colapsos dos sistemas de saúde, na esteira da incapacidade para o provimento de tantos atendimentos médicos quantos necessários, deixarão enorme saldo de mortes.

Por um ato de autopreservação, mas principalmente de compaixão e responsabilidade solidária com todos, nos impomos uma repentina mudança em nossos modos de vida e em nossas rotinas. Cada um vive o seu sacrifício e, ao vivê-lo, compelido pela carência daquilo que parecia simples e naturalmente dado, revê a importância e o lugar dos valores que o movem no dia a dia. É, para cada um, uma parte de sua singularidade que é afetada quando não se pode mais concretizar, como de costume, algo que, a partir das próprias opções e inclinações, o move a fim de realizar seu sentido pessoal de vida boa. Mas é por um bem comum inicial, a preservação e o fomento da vida, que ocorre a privação de acesso a espaços públicos no mundo-da-vida. Em grande medida, isso nos retém nos espaços privados, desprovendo-nos de encontros, do face-a-face e do corpo-a-corpo sem os quais não se qualifica, mas se compromete a integridade de nossa natureza política.

Para ecoar Hannah Arendt (1906-1975), a integridade que se compromete é a daquela condição em que estar com os outros, aparecer e ser afetado sem qualquer distância e anonimato, nos posiciona e nos distingue enquanto sujeitos de nossas ações e palavras, expostos à apreciação e depreciação públicas, implicando o tensionamento e a busca por equilíbrio entre coragem e pudor. Só nessa esfera, debates que se possam considerar públicos, porque abertos à contradição e à divergência, se alinham à ideia de democracia como governo pelo debate e pela negociação.

A formação acadêmico-científica é amplamente compatível com esse ideal democrático, visto que não se faz sem a ousadia de expor razões, nem sem a humildade do reposicionamento que impõe a infindável apuração da racionalidade. Assim, apuração da racionalidade e formação científica se fazem como ações políticas especiais. Ainda para Arendt, a ação política sempre envolve e se irradia coletivamente, constituindo-se em poder quando sua persuasão faz consensos, o que não prescinde de disputas. No ambiente acadêmico, o critério de racionalidade sempre será decisivo na formulação de consensos, orientando sua política de verificação e legitimação de saberes a partir de debates racionais, como são, por exemplo, as defesas públicas de tese que credenciam ou não novos doutores. Nesses processos científico-acadêmicos, a busca da verdade, em última instância, sempre almeja ser um bem comum, já que aberta ao trabalho de escrutínio de sua validação objetiva, isto é, ao alcance de todos.

Essa objetividade não se conquista sem uma dinâmica de subjetivação atravessada por relacionamentos pessoais que a acompanham e orientam. No meio universitário, essa formação do espírito científico exige o compromisso com a verdade racional, demandando – desde o modo como se pratica o ensino de graduação – a integridade pessoal de quem, ao emular suas capacidades de refletir, equilibra coragem e prudência na própria pele e se posiciona em ações autenticamente políticas.

O filósofo Edmund Husserl (1859-1938), um dos mestres de Arendt, mostra como uma vasta parte da racionalidade científica se desenvolve perseguindo, no mistério dos fenômenos naturais, o mais metódica e perfeitamente possível, uma intuição bastante banal no mundo-da-vida, a que se dá na constatação de que “se isso, então aquilo”. A busca pela descoberta, verificação e demonstração da relação lógica de consequência “se…, então…” se ramifica no desenvolvimento de áreas e especialidades científicas.

A credibilidade do conhecimento científico, assim como a dos cientistas, acadêmicos e das instituições que produzem conhecimento, como as universidades, vigora onde os passos perseguidos nas relações de consequência, ou na demonstração argumentativa, sejam trazidos a público e possam, assim, ser confirmados ou refutados, debatidos e aprimorados com qualidade e reconhecimento de suas comunidades de especialistas.

Não é o espaço para se apontar os limites dessa racionalidade ou as enormes diferenças que subsistem entre ciência e política, em particular fora do âmbito acadêmico. Mas, mencionada a ressurreição de Cristo, vale apontar um limite aí onde se vê, em uma narrativa que escapa à lógica verificável em relações regulares “se…, então…”, o milagre como um terreno de mistério a que responde não a ciência, mas a fé religiosa. Onde a busca perseguida pela racionalidade científica se cala por não ter nada a dizer, apenas supor, como na passagem da linha que separa o mundo-da-vida do mundo-da-morte, ouve-se a força das vozes dos sentidos religiosos. Onde, porém, uma voz usurpa a outra, passa-se de um lado ao determinismo niilista, de outro ao obscurantismo supersticioso, ambos mutilados e mutiladores, pois extraviam a perplexidade buscadora que nos caracteriza. Assim, a não ser quando o recurso humano ao conhecimento racional seja mutilado – o que às vezes é uma ilusão tanto do obscurantismo como do cientificismo –, não há incompatibilidade entre racionalidade científica (onde do mistério advém evidência) e sentido religioso (onde do mistério advém fé). Vale lembrar que, sem nenhuma dissonância cognitiva, para os muitos cientistas religiosos, há bem mais sobreposição e compenetração do que incompatibilidade e disputa entre ambos.

Vivendo em um mundo em que o fato e o conhecimento científicos tornaram-se parte ineludível da cultura, é espantoso testemunharmos a rejeição à racionalidade que vem se acentuando durante a pandemia. A conta dessa rejeição pode ser atribuída aos caprichos psicológicos dos desejos, a que tão bem respondem as convicções das teorias conspiratórias, os engodos fariseus de lideranças religiosas inescrupulosas e a ideologia, como descrita por Arendt, a reafirmação insistente e maquinal da lógica de uma ideia, varrendo tudo o que se lhe opõe, inclusive a sensatez da verdade e os sensatos comprometidos com ela.

Não é preciso mais para lamentarmos a falta de uma esfera pública robusta, enfraquecida por nichos que propalam mensagens impermeáveis ao debate, aderentes à tibiez psicológica travestida no vigor surdo dos gritos de palavras de ordem irrazoáveis. Fechados ao dissenso racional, sem diálogo com o contraditório, esses nichos, numericamente insuflados pelos sentimentos de simpatia e antipatia no moto-contínuo das aprovações e reprovações nas redes sociais, são arrastados psiquicamente por motivações que não se deixam examinar, nem querem se verificar, já que se bastam e satisfazem na coação das forças grupais.

Para dizer com outra aluna de Husserl, a filósofa Edith Stein (1891-1942), trata-se de um fenômeno social de massa, em que as personalidades individuais cedem sua vontade e capacidade decisória à onda emocional, que as enleva combalindo sua capacidade crítica. Nas lacunas à integridade política de cada um, cujo aparecer e ser afetado, sem distância e anonimato, pedem a coragem e a prudência de posicionamentos consequentes, as sombras destes usos de massa das redes sociais não constroem consensos. Seus meios irradiam reatividade e excitabilidade em que, se a prudência se degrada em medo e intimidação, paralelamente, a coragem se distorce em temeridade e covardia. Ao excederem as redes elas se traduzem não somente em condutas que elegeram governantes, mas em comportamentos que hoje ameaçam a saúde pública e a vida de todos.

As privações impostas pela pandemia no combate pela vida parecem atingir em cheio dois termos legados pela filosofia de Aristóteles e que, no decorrer de milênios, se tornaram centrais na continuidade das reflexões praticadas, desenvolvidas e instituídas no mundo ocidental. São eles a vida boa e o zoon politikon, ou seja, sua concepção de vida ética e a vida comum, com e para os outros, a condição civil que o filósofo peripatético atribui à natureza do animal humano. No entanto, qual vacina, o que se atinge é o que se pretende defender, possibilitando seu fortalecimento. Neste caso, a restrição de acesso a alguns dos nossos mais caros valores pode, quem sabe, ser a evidenciação de que, a começar pela vida que nos une e nos aproxima em sua vulnerabilidade, tais valores se constituem na livre adesão a uma luta – incessantemente retroativa – por uma base de igualdade política que nos possibilite a liberdade da vida boa.

Cristãos ou não, a celebração da ressurreição nos remete a como, na equalização da quarentena e do distanciamento social, estamos vivendo o compartilhamento laico de um verdadeiro tempo pascal, estendido até quando necessário. Esse compartilhamento equivale ao desafio de abraçarmos sacrifícios que significarão, para um incontável e jamais sabido número de pessoas, dentre eles talvez nós mesmos e os nossos, uma vitória sobre a morte.

Com a expectativa de voltar ao convívio público em segurança, nos congraçamos junto a todos os sensatos que, sem subjugarem as evidências e a racionalidade aos caprichos dos desejos e das sombras ideológico-conspiratórias, estejam unidos para tornar este período para o máximo de nós, de fato, não um fim de caminho, mas dias, semanas e meses de uma passagem. Esperamos que, mais do que simbólica, esta seja uma oportunidade de resgate de valores fundamentais, com meditação e renovação destinada ao tempo que nos aguarda, seja ele qual e como for. Que façamos dele o melhor que pudermos, sabendo que as mais vitais das ações políticas hoje são as medidas sociais para mitigação da disseminação do vírus que, junto à cegueira ideológica contra a racionalidade, seja nas condutas de massa estimuladas em redes sociais, seja nas decisões de quem ocupa cargos eletivos, nos ameaça de morte.

 


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