gov.br ou bigbrother.br? Como as informações dos cidadãos são tratadas?

Por Angelo Segrillo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 11/03/2024 - Publicado há 5 meses
Angelo Segrillo, professor da FFLCH – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

 

O governo do Estado de São Paulo deu a nós (da USP e servidores estaduais em geral) uma surpresa desagradável no início de 2024. A partir deste ano, o recenseamento anual de servidores não mais será feito pelo simples e desburocratizado sistema antigo, diretamente no site da Secretaria de Gestão Pública do Estado. Agora será atrelado ao sistema gov.br, do governo federal.

Por que desagradável? Porque agora não ficamos apenas dependentes do sistema estadual mas também de um outro sistema, o federal gov.br, que se revela complicado e problemático em vários sentidos.

O sistema gov.br entrou no ar em 2019, como resultado do Decreto 9.756/2019, e tem como objetivo reunir em um sistema global praticamente todos os serviços ofertados pelo governo. Entretanto sua concepção não é user-friendly e fool-proof, duas qualidades essenciais para serviços eficientes para o público. Frequentemente ocorrem glitches (problemas técnicos), as pessoas não conseguem realizar suas operações, pois nos seus níveis mais altos (prata e ouro) o sistema exige diversos tipos de verificação que nem sempre permitem ao usuário continuar.

São proverbiais os desesperos de pessoas que não conseguem que a máquina faça seu reconhecimento facial (de si mesmas!!) e não conseguem terminar operações que necessitam fazer urgentemente. E o pior é o seguinte: não há nenhum atendimento imediato, pessoal (com agente humano), ao qual o usuário possa recorrer quando tem problemas. O máximo que há são chats nos quais é comum que o atendente, provavelmente assoberbado por demandas de campos tão diversos, acabe recomendando ao usuário que escreva ao “setor técnico” e aguarde resposta por e-mail!

É claro que muitas pessoas (especialmente as que são mais computer savvy) conseguem navegar no sistema, mas vários dos que têm problemas passam grandes apertos e perdem um tempo precioso no sufoco de não conseguirem resolver coisas necessárias e exigidas pelo próprio governo.

No caso dos professores da USP, como não havia ajuda imediata (nossos próprios sistemas de RH não sabiam como resolver vários problemas desse sistema externo, pelo menos no momento inicial), tivemos que nos ajudar a nós mesmos, trocando e-mails em nossos grupos, com os mais computer savvy tentando ajudar os que têm menos familiaridade com essas tecnicalidades.

A ideia de atrelar o recadastramento anual e outras atividades estaduais a um sistema externo (federal) não foi boa. O sistema anterior funcionava bem e de maneira simples, sem necessidade de sair do âmbito estadual. Atrelando a um sistema externo, perdemos a possibilidade de controle e reparo apenas por nós mesmos.

Mas há outra dimensão, esta política, do gov.br que é mais preocupante. O sistema foi concebido para centralizar todas as informações e exigir do usuário que disponibilize todas suas informações em instâncias públicas e privadas para que ele funcione. Ao baixar o app gov.br, para usá-lo, vem logo no início a pergunta: “Autoriza que usemos as informações das seguintes instâncias [e aí são arrolados todas as instâncias estatais, bancos, associações, etc. a que você pertence]?”. Ora, entregar todas as suas informações como cidadão público e privado (incluindo informações bancárias!) não é uma opção pelo sistema como dá a entender a pergunta. O cidadão tem que dizer “sim” a entregar todas suas informações ou o sistema não funciona. E como o governo exige (agora também em São Paulo) que usemos o gov.br, então somos obrigados a entregar nossas informações, quer queiramos ou não.

Governo Big Brother!

A expressão “Big Brother” não é um exagero de um funcionário desesperado que não consegue preencher seu recadastramento anual ou de um ultraliberal que não aceita nenhuma presença do Estado. Vimos recentemente que o Estado brasileiro pode, sim, espionar seus cidadãos secretamente. Há um processo de investigação que aponta que o governo Bolsonaro instalou uma “Abin paralela” (uma estrutura dentro da Agência Brasileira de Inteligência para monitorar congressistas, mesmo líderes e opositores). Se um governo conseguiu fazer isso contra influentes congressistas, por que não aventarmos a possibilidade de uso político inadequado de sistemas todo-poderosos e oniscientes como o gov.br em relação ao cidadão comum?

Além disso, há uma preocupação mais prosaica com essa centralização de informações do cidadão em uma fonte só. Se hackers conseguem invadir tal sistema, ficam de posse de todas as informações do cidadão de uma vez. Tal sistema centralizado constitui o “paraíso dos hackers”.

Não sei se o governo de São Paulo poderá dar um passo atrás nessa desnecessária complicação de um sistema que funcionava sem burocracia (me surpreenderia agradavelmente se o fizesse), mas à direção da USP eu solicitaria pensar em prover um local na Universidade em que pessoal preparado para tal pudesse resolver in loco e por atendimento pessoal esses problemas que estão surgindo com a utilização do gov.br.

Mas o ideal mesmo seria o governo de São Paulo cancelar sua nova exigência de reconhecimento facial (prova de vida) de servidores na ativa. Prova de vida de aposentados vá lá! Mas prova de vida de servidores na ativa não faz sentido e não conheço outro país onde isso é exigido. Não é obrigação do trabalhador, além de trabalhar para seu empregador, ter que provar a ele que está vivo. Imagino que talvez a ideia seja pegar “funcionários fantasmas”. Mas o sistema não faz isso. O malandro que está em um “cabide de emprego” simplesmente fará o reconhecimento facial em casa pelo app e continuará não aparecendo no local de trabalho.

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