Nós, professores, estudantes e funcionários do Diversitas (Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e dos Conflitos da Universidade de São Paulo), reunidos neste dia 26 de agosto de 2021, construímos, publicamos e disseminamos este manifesto em defesa dos povos tradicionais habitantes e ocupantes por origem e natureza das terras hoje tidas como brasileiras.
Atualmente – devido a uma continuada opressão de um Estado majoritariamente contra o povo, que atua deliberadamente contra aqueles e aquelas desprovidos de emprego, educação, recursos, de proteção legal, médica ou financeira – todo o país encontra-se ameaçado e em processo de ser aniquilado em suas instituições, democracia e normalidade constitucional.
Os indígenas, povos autóctones do território brasileiro – com direitos reconhecidos pela comunidade planetária – encontram-se também ameaçados de terem suas terras redefinidas, tomadas, invadidas e sequestradas pelos invasores brancos.
Ressaltamos que, neste momento, ocorre a maior mobilização indígena da história do Brasil, com seis mil membros de 170 etnias diferentes, acampados há uma semana, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em manifesto pelo direito à própria vida! Entidades reunidas no grupo Prerrogativas, com cerca de 400 juristas e entidades representativas do Direito, divulgaram uma nota de repúdio à tese do “marco temporal”, apontando diversas inconstitucionalidades e reflexos negativos para o Brasil à nível mundial.
É de fundamental importância relembrarmos que os direitos sobre as terras indígenas foram declarados como “originários”, um termo jurídico que implica precedência e que limita o papel do Estado a reconhecer estes direitos, mas não a outorgá-los, uma vez que esta formulação conecta os direitos territoriais às suas raízes históricas.
Os direitos territoriais indígenas são naturais, e, portanto, precedem a Constituição Federal de 1988, tal como demonstra o Instituto do Indigenato. O direito ao território está relacionado à própria humanidade dos indígenas, podendo-se afirmar que é congênito e, portanto, preexistente a qualquer codificação ou previsão constitucional.
Neste diapasão, reproduzimos os artigos que elencam de forma expressa os direitos e garantias constitucionais dos povos indígenas no território nacional:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§ 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”
A população indígena tem, portanto, o direito de se manter intacta em sua cultura, aldeada, com dignidade, como prevê nossa lei maior, além dos tratados internacionais das quais o Brasil é signatário e seus direitos originários e permanentes.
Ressalte-se que o Brasil reconhece amplamente os direitos humanos de indígenas sendo signatário dos seguintes tratados: Convenção Internacional sobre os Congressos Indigenistas Interamericanos; Instituto Indigenista Interamericano, Carta das Nações Unidas; Carta da Organização dos Estados Americanos; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Convenção da Diversidade.
É imprescindível também, observar que a tese do Marco temporal poderá ensejar, implicar ou explicitamente resultar na responsabilidade do Estado brasileiro, diante da esfera internacional de proteção aos direitos humanos. Importa salientar que o direito à autodeterminação dos povos é uníssono na Carta das Nações Unidas em seu art. 12, bem como nos demais pactos Internacionais citados.
Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, relata em suas próprias palavras o perigo iminente ameaçando neste momento os indígenas brasileiros:
“… este dia de hoje [8 de junho de 2021] pode ficar marcado na história do país como o dia em que o Congresso Nacional decretou a morte dos povos indígenas do Brasil. Este Projeto de Lei 490, para nós, é considerado um projeto de lei da morte porque vai negar toda e qualquer demarcação de terras indígenas além de rever processos já concluídos. Ou seja, qualquer um que tenha sua terra já demarcada, pode ser que, a qualquer momento, sua terra seja revisada e reduzida. Este PL 490 é o pior de todos. É trágico, para nós, povos indígenas; é trágico para o meio ambiente. E se é trágico para o meio ambiente, também é para a humanidade. Todo mundo tem de entrar junto para pressionar pela retirada desta pauta, porque, pois mais que ela esteja somente na CCJ [Comissão de Constituição e Justica da Câmara dos Deputados], sendo aprovada, o projeto pode ser rapidamente aprovado no Plenário da Câmara. Eles têm maioria lá e estão muito empenhados em aprovar este PL, porque é o que vai beneficiar os seus parceiros das grandes corporações multinacionais. É exatamente por meio dele que vai se aprovar a exploração dos territórios, o desmatamento e a grilagem.” (Periódico Continente Multicultural, agosto de 2021)
Reivindicamos, portanto – como intelectuais, acadêmicos, professores, estudantes, cientistas, atuantes e conscientes -, que o direito inalienável dos indígenas sobre suas terras no Brasil seja integralmente respeitado, uma vez que aqui estavam muito antes das invasões europeias que iniciaram uma guerra sistemática contra os que aqui moravam!
Desde esse passado belicoso, de mais de 500 anos, os povos tradicionais de nosso país, têm sido violados em seus direitos ancestrais, ainda que demonstrem sua resiliência, consciência e resistência como evidenciam as manifestações que ocorrem atualmente em Brasília.
Sabemos hoje perfeitamente que esta tentativa de destituição dos povos indígenas, de suas culturas, línguas e formas de viver constitui-se em uma inominável injustiça, uma brutal violação de direitos humanos, uma apropriação indevida e mesmo criminosa dos direitos das populações indígenas, e uma iminente destruição irreversível dos biomas brasileiros, especialmente os amazônicos.
Reafirmamos, portanto, com veemência nossa reivindicação de que a perspectiva histórica dos povos indígenas brasileiros e seus direitos à terra, ao território, à sobrevivência, à dignidade sejam integralmente respeitados e que assim permaneçam indefinidamente.
Reivindicamos que não seja permitida, em hipótese alguma, a expulsão dos povos indígenas de suas terras, que a invasão dos não-indígenas de territórios seja impedida de forma rigorosa. Reivindicamos ainda que os brancos, detentores deste poder destruidor, não tenham o direito de opinar, influir ou determinar acerca do uso e cultivo destas terras, que definitivamente não possam impor formas de controle com seus objetivos mercantis em nada respeitosos as formas de vida que usufruem os remanescentes das populações ancestrais que ainda sobrevivem às invasões europeias.
Em razão dessas violações, atuais e prementes, nós nos manifestamos com rigor contra a tentativa dos brancos colonizadores de impor a essas populações tradicionais um modus vivendi que altere ou constipe hábitos, culturas e manejo cultural contra o já estabelecido pelos imemoriais habitantes dessas terras!
Ressaltamos que, neste momento, ocorre a maior mobilização indígena da história do Brasil, com milhares de membros de 170 etnias diferentes acampados há uma semana, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em manifesto pelo direito à própria vida! Entidades do Direito e juristas brasileiros se posicionam, por meio de uma Nota de Repúdio ao Projeto de Lei em discussão e a favor dos indígenas, apontando todas as inconstitucionalidades e reflexos negativos para o Brasil à nível mundial.
Necessário se faz nesse momento garantir total apoio aos grupos das diferentes nações indígenas para que lhes seja assegurado o direito inalienável de ocupar e ter acesso legal a suas terras, além do direito de fazer sua gestão e uso dos territórios ocupados adequados a seu próprio modo de vida. Torna-se, portanto, também urgente impedir que estes senhores brancos – sejam empresários, políticos, legisladores, funcionários públicos, juristas ou militares – imponham autoridade, domínio, ou opressão aos vários povos e culturas desses territórios que são indígenas de direito!
Posicionamo-nos pelo respeito aos povos das Florestas e das Águas em defesa da vida e do Patrimônio Histórico e Cultural de todos os povos cujas ancestralidades estão documentadas no uso das línguas, das várias religiosidades e culturas preservadas por essas populações que respeitam e guardam valores ecológicos, simbólicos e espirituais.
Este Manifesto implica, portanto, uma reivindicação natural pelo respeito ao Planeta Terra como um organismo vivo que deve ser reconhecido em seus direitos em perpetuidade.
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* Sérgio Bairon, Artur Matuck, Adriana Bobilho, Daniela Ernst, Elizabete Montesanto, pesquisadores do Diversas