Muito violeiro se especializou exatamente nisso: fazer a viola falar por si só. Como Renato Andrade, que fez o instrumento correr mundo, ou Almir Sater, que apesar de muita música cantada tem dois discos instrumentais celebrados e fez de sua composição Luzeiro a trilha sonora que marcou uma geração como abertura do programa Globo Rural. E Helena Meirelles, que só depois de muitas décadas dedilhando as dez cordas foi reconhecida para além das paragens do Pantanal. São só alguns nomes, porque a lista é grande: Roberto Correa, Paulo Freire, Tavinho Moura…
Na USP, que possui um curso de Viola Brasileira na Escola de Comunicações e Artes (ECA) e outro de Viola Caipira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) – apesar dos sobrenomes diferentes, os dois tratam do mesmo instrumento –, é possível encontrar na capital o professor Ivan Vilela – que está com livro novo na praça – e o professor Gustavo Costa, no interior. É lá em Ribeirão Preto que achamos também o maestro e violeiro José Gustavo Julião de Camargo, que comanda o Revoredo, programa da Rádio USP dedicado inteiramente à viola instrumental.
Esses dias me caiu nos ouvidos o primeiro álbum de Marcelo Favoreto, violeiro jovem do interior do Espírito Santo, estado que costuma ser injustamente esquecido quando o assunto é música caipira. Nascido, criado e morando em Muniz Freire, cidade localizada na região do Caparaó capixaba, entre serras, curvas de estrada e plantações de café, Marcelo é figura conhecida e premiada nos festivais de viola de lá. Inclusive, é o organizador do FestViola Muniz, em sua própria cidade. Mas só agora resolveu gravar suas composições e registrar suas habilidades com o pinho.
Ao escutar as nove faixas de Tempera viola, produção independente caprichada, com pouco mais de 23 minutos de duração, fisgou-me exatamente essa alquimia entre sons, memória, imaginação, tempo e espaço. As faixas nem precisavam ter nomes como Pica-Pau Fora do Oco, Bicho do Pau Podre, Tiê ou Caparaó para que a viagem ao mundo rural tivesse início. E o trabalho de Marcelo é só um exemplo.
“Acredito que a associação direta de uma música instrumental de viola ao mundo rural e coisas da natureza seja uma herança das canções caipiras que dominaram as rádios em sua época de ouro, com letras que abordavam com maestria temas da vida na roça, tradições e culturas”, conta Marcelo, matutando sobre o assunto. “A música caipira se eternizou, sua essência foi tão bem assimilada pelo povo brasileiro que nem precisa de letra para transmitir este sentimento.”
Segundo Ivan Vilela, um dos segredos para o vigor, aqui na nossa terra, da viola – um instrumento com séculos de vida e que chegou de Portugal nas caravelas – é seu enraizamento na cultura popular. Foi nos braços do povo analfabeto, pobre, escravizado e marginalizado que ela se tornou veículo para suas histórias, dores, amores e tudo que lhe era importante. Um povo que muitas vezes habitou justamente o mundo rural e, com o auxílio da viola, transformou seu dia a dia em poesia.
Não é que precise ser uma regra essa dobradinha viola-campo. Na verdade, hoje já tem muita gente de talento levando a viola para outras paisagens além do universo rural, mostrando que lugar de viola e violeiro é onde eles quiserem estar. E isso é ótimo. É na diversidade que se faz a força. Mas acredito que por muito tempo o pinho ainda vai ter esse sabor inigualável e sinestésico de fazer o som das cordas de aço ter cheiro de mato.
________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)