A busca do conhecimento descompromissado, como o que levou à criação das baterias de íon lítio, é realizada em centros de pesquisa de excelência. A USP, a Unicamp e a Unesp, assim como outros institutos de pesquisa paulistas, são excelentes exemplos de locais de construção de conhecimento qualificado. E, sendo instituições públicas, têm suas contas auditadas pelos órgãos competentes. A despeito da fiscalização regular, com a finalidade de investigar supostos desvios na utilização de verbas pelas universidades públicas paulistas, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi criada pelo Ato 32/2019, do presidente da Assembleia Legislativa (Alesp). Pronunciamentos de membros da referida CPI também apontaram outros assuntos que poderiam ser discutidos durante o andamento dos trabalhos, como a investigação sobre aparelhamento ideológico nas instituições, cobrança de mensalidades e relevância das pesquisas. O relatório final da comissão apontou exemplos pontuais de pagamentos não plenamente justificados a servidores, o que demonstra a necessidade de as universidades criarem mecanismos mais eficientes para a liberação de verbas e controle dos gastos.
Uma vez que fração considerável da riqueza do Estado é transferida para as universidades públicas (em torno de 10% do ICMS), é bastante salutar que a sociedade, por meio da Alesp, avalie como os recursos têm sido utilizados, quais têm sido os resultados alcançados e que tipo de projeções são feitas para o futuro. A justificativa formal para a criação da CPI foi a investigação sobre suposto uso indevido de recursos públicos, mas tudo indica que o escopo da ação da CPI era mais abrangente.
Pela condução dos trabalhos, fica a impressão de que a CPI desejava expor as instituições e acuá-las com ameaças veladas e questionamentos mal formulados e abstratos. As perguntas aos dirigentes universitários durante as sessões, em caráter persecutório, demonstraram completa ignorância de alguns parlamentares sobre o funcionamento da estrutura universitária, especialmente no que tange ao modus operandi da pesquisa científica. De maneira similar, a aplicação de recursos em pesquisas definidas como “sem aplicabilidade e retorno econômico imediato” também foi fortemente criticada por membros da CPI.
A pesquisa básica avança sem as amarras dos objetivos concretos e caminha para a direção apontada pela curiosidade dos pesquisadores. Ela busca compreender a natureza, quais são as leis que a governam e, ao operar dessa forma, gera conhecimentos novos e fundamentais que podem alimentar a pesquisa aplicada e o desenvolvimento tecnológico. Se as ciências chamadas “duras” são importantes para o desenvolvimento tecnológico, não é menos verdade que sem as ciências humanas não existiria nem mesmo o Estado, porque foram os embates sociais e as reflexões ideológicas a mola indutora para a criação e o desenvolvimento das nações.
Ao questionar a importância da pesquisa realizada nas universidades públicas, estes deputados simplesmente revelam o desconhecimento sobre a relevância da pesquisa básica para o desenvolvimento de uma nação. O exemplo dos Tigres Asiáticos é bastante emblemático e o investimento na universalização da educação, na qualidade do ensino e na criação de fortes polos de pesquisa resultou na formação de capital humano e um expressivo avanço da ciência e tecnologia nesses países. Mirando esse exemplo, se o País quiser diminuir o nível de desemprego e melhorar a qualidade dos serviços, a criação de empresas inovadoras com base em novos princípios e concepções é a melhor opção. Todavia, para que o fluxo de conhecimento seja contínuo e substancial, as universidades públicas dependem de financiamento estatal, pois o setor privado não consegue sustentar pesquisa de caráter fundamental devido à pressão dos objetivos imediatos e exigências econômicas. O conhecimento gerado pela pesquisa de base pode atrair o interesse de novos empreendedores, empresas e indústrias, ou seja, cria-se um fluxo de ideias para quem for capaz de transformá-las em objetivos concretos.
A CPI também manifestou preocupações com a governança universitária e sugestões para a melhoria da eficiência incluem a adoção de uma “governança mais técnica e menos política” e o uso de práticas gerenciais usadas no mundo corporativo. Não há dúvidas de que os processos poderiam ser mais eficientes e que os professores perdem tempo demasiado com burocracias existentes para satisfazer protocolos cartoriais e a legislação vigente. Entretanto, nada garante que a criação de um ambiente empresarial nas universidades, como ventilado em sessões da CPI, seja a solução dos problemas. A liberdade acadêmica e a convivência com ideias divergentes e multidisciplinares constituem o ambiente perfeito para talentos desabrocharem. Inovações exigem ambientes descontraídos, sem pressões por prazos imediatos e nem busca por lucros, e, especialmente, sem controles rígidos e burocráticos que limitam a expansão de ideias. Não é por outra razão que as modernas empresas de tecnologia organizam suas atividades de trabalho inspiradas no campus universitário.
A formação de pessoal altamente qualificado e o aproveitamento desses recursos humanos para a melhoria das condições de vida da sociedade é a ação mais inteligente do Estado. Portanto, para que a CPI possa ter um entendimento mais claro de que a educação formal em nível superior não é um gasto, mas um investimento para o futuro, seria aconselhável que seus membros aceitassem fazer uma visita às instituições universitárias paulistas. Mas não ao gabinete dos reitores, e sim a uma sala de aula ou laboratório de pesquisa. Caso os nobres deputados não disponham de tempo durante o dia em função de suas atividades rotineiras, a visita a um laboratório de pesquisa poderia ser feita à noite ou num fim de semana. Talvez para surpresa dos deputados, muitas das atividades não são interrompidas nesses horários e elas são executadas por pesquisadores (alunos e professores) responsáveis, que possuem prazos para a entrega de relatórios e que amam o que fazem, a despeito dos contínuos cortes de financiamento. Após a conversa com os pesquisadores em um ambiente científico, com o espírito desarmado e sem preconceitos, os deputados poderiam compreender melhor por que vale a pena investir responsavelmente nas universidades públicas paulistas.
Até a década de 1960, o ensino básico em escolas públicas tinha muita qualidade e os professores eram respeitados e admirados. Situação bastante diversa tem sido observada nas últimas décadas devido à incapacidade do Estado em melhorar o nível da educação básica, razão pela qual famílias preocupadas com a formação de seus filhos têm optado por transferi-los para escolas particulares, com muito sacrifício orçamentário. Em São Paulo, as ilhas de resistência à mediocridade na educação são as universidades públicas, e alguns políticos parecem ter prazer especial em atacá-las com críticas destrutivas. Falta a eles a visão estadista de que uma outra riqueza produzida por essas instituições é o conhecimento social difuso, que pode ser traduzido como o capital cultural de uma população.
Mas, para que as universidades possam desempenhar esse papel protagonista, elas precisam manter a estrutura sobre a qual foram criadas, com financiamento público e autonomia para tomar suas decisões acadêmicas, científicas e administrativas. É nesse ambiente plural, em que circulam diferentes ideias e modelos de pensar o mundo, que a universidade pública se transforma e evolui. Sem a influência de interesses externos, a instituição pode exercitar sua capacidade de reflexão crítica e ter papel cada vez mais relevante na orientação cultural da sociedade. Fica o convite aos nobres deputados: nossas portas estão abertas!