Como auscultar os sussurros de nosso universo: o projeto BINGO

Elcio Abdalla é professor titular do Departamento de Física Matemática do Instituto de Física da USP

 05/03/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 22/11/2018 as 7:43

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Elcio Abdalla – Cecília Bastos / USP Imagens

 

Desde os tempos imemoriais, o Ser Humano olha para os Céus e se maravilha. Os Céus foram fonte de inspiração religiosa e mística , levando-nos, hoje, à ciência da Cosmologia. Houve também motivações práticas, como a medida do tempo. Hoje, o estudo do Cosmo é parte integrante da compreensão de Teorias Físicas, construção de GPS e técnicas relacionadas, assim como porta de saída da Terra para futuras gerações. Na verdade, todos os dias, a Ciência mostra seu vigor, trazendo novidades incessantes ao Ser Humano.

As mais recentes novidades vêm de fato do Cosmos. Referimo-nos ao surpreendente fato de que cerca de 95% do nosso Universo é formado por algo completamente desconhecido! Um terço do Universo é formado por uma matéria pesada, cognominada Matéria Escura, pois não reflete nem absorve luz. De fato, deveríamos chamá-la de Matéria Invisível, ou Matéria Transparente. Mais ainda, dois terços do conteúdo do Universo são algo ainda mais estranho, algum tipo de objeto que faz o Universo expandir-se aceleradamente, a Energia Escura. Outra informação também estranha que tem sido (raramente) observada são jatos de ondas de rádio cuja procedência e caracterização ainda não é conhecida. São jatos intensos e muito curtos, e não se sabe sua origem ou distância de procedência.

Com a finalidade de se estudar mais a fundo o Setor Escuro, ou Setor Transparente, é necessário sabermos suas propriedades intrínsecas. São várias as questões. A primeira, é se o que constitui o Setor Escuro é, de algum modo, uma extensão do chamado modelo padrão das Partículas Elementares. Afinal, há uma Teoria Padrão, que explica muito bem a evolução do Universo, e é baseada no modelo existente das Partículas Elementares,  com predições detalhadas e corretas para as variadas condições a que as partículas foram submetidas do ponto de vista observacional.

O estudo dos Céus envolve dificuldades. Até  há 100 anos atrás, mal sabíamos da existência de Galáxias. Há 50 anos pensávamos que o Universo fosse constituído apenas daquilo que pudéssemos ver, ou seja, prótons e elétrons

Sabemos que há muito mais, e gostaríamos de ter formas de estudar este  (novo) estado da Matéria, que mal vemos, ou que não vemos de modo algum.

Desde que foi descoberta a Radiação Cósmica de Fundo de Microondas compreendemos melhor nosso Universo. Estes resquícios do Big Bang, energia que se espargiu pelo Universo, tem pequenas oscilações que podem ser comparadas em diferentes regiões, após sofisticadas manipulações, fixando os parâmetros que definem o Cosmos, e sua geometria intrínseca. Isto levou a uma grande revolução nos estudos cosmológicos, pois foi possível ter-se um retrato do início do Universo, fixando a geometria do Cosmos.

As informações provindas da radiação de Fundo, do movimento de fuga de um tipo de Supernova (estrelas que explodem repentinamente) e outras informações complementares levaram a um Universo com uma grande quantidade de matéria no Setor Escuro, conforme descrito acima. O problema agora que se nos coloca é saber a estrutura interna do Setor Escuro. Poderia ser uma constante quase trivial, a constante cosmológica, tal como proposto por Einstein, ou um novo tipo de matéria, até mesmo com alguma estrutura interna, como já propusemos.

Há, portanto, uma possibilidade muito concreta do Setor Escuro mostrar uma estrutura interna não trivial, caso em que novas indicações e observações são necessárias

Ondas formadas no início do Universo advindas da interação entre matéria carregada eletricamente (os bárions, prótons) foram “congeladas” em vista da menor força de interação que decorre do resfriamento do Universo. O tamanho das Ondas formadas nos dá informação muito precisa da geometria do Universo, e eventualmente sobre a interação interna do Setor Escuro.

Por outro lado, o elemento visível mais comum do Universo é o Hidrogênio em forma de gás espalhado pelo Cosmos. Hidrogênio livre emite um sinal único, uma radiação correspondente à queda do elétron entre dois níveis atômicos extremamente próximos, correspondendo à linha hiperfina, cujo  comprimento de onda  da radiação emitida é 21 cm.

Esta é a razão principal para estudarmos emissão de rádio que vem do espaço exterior: a linha de 21 cm, que chega à Terra desviada para o vermelho (portanto com comprimento de onda maior), poderá ser analisada mostrando, de acordo com a intensidade de radiação recebida, a distribuição detalhada de Hidrogênio, portanto a estrutura de distribuição de matéria. Isto equivale ao conhecimento e caracterização das ondas acima mencionadas, as Oscilações Acústicas de Bárions, da sigla inglesa BAO.

Para se efetuar esta medida, são necessários dois espelhos coletores olhando o Céu em direção fixa a partir da Terra (portanto girando com o movimento da Terra) e varrendo o Céu. Estes espelhos refletem a radiação recebida a um conjunto de cornetas, estruturas cônicas de alumínio, em numero de 30 a 50, que coletam a radiação, enviam a uma seqüência de analisadores eletrônicos. Neste ponto passamos a fazer uma análise de separação das informações relevantes da radiação dentre um imenso ruído de rádio, e procedemos finalmente à análise científica. Este é o fulcro do projeto BINGO, sigla para “BAO from Integrated Neutral Gas Observations”.

O projeto tem várias dificuldades técnicas. Os espelhos são de confecção standard. No entanto, as cornetas já apresentam alguns problemas. O fato, é que seu custo é extremamente alto, devido ao tamanho, se as fizermos através do processo de usinagem. Nesse caso, o custo do projeto dobraria. Houve uma proposta de corneta de espuma com revestimento de alumínio, feita por Manchester, mas que não mantinha os padrões de qualidade e de durabilidade, e optamos por um processo alternativo através da dobradura de anéis de alumínio. O processo foi completamente desenvolvido no Brasil, no INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São José dos Campos), portanto uma contribuição genuinamente brasileira. Estamos terminando o primeiro protótipo de corneta para os devidos testes, para posteriormente termos um processo de construção em série delas. A parte eletrônica, apesar de parcialmente ser através de objetos padrão, deve ser testada ao detalhe em vista da extrema dificuldade em se obter os sinais de BAO em vista da quantidade de ruídos presentes provenientes não só de outros sinais do Céu, como também de poluição eletromagnética de origem terrestre (RFI, “radio frequency interference”) o que inclui, principalmente, celulares e suas torres, transmissões de rádio e transponders de aviões. Finalmente, temos que domar os dados através de qualificação de sinais, com sua conversão em informações úteis para o uso científico.

Há mais informações científicas que podem ser obtidas do projeto. Há vinte anos tem-se obtido, muito raramente, jatos de rádio de origem desconhecida em observações feitas em alguns projetos conhecidos. De modo geral, sua origem é desconhecida, e apenas uma subclasse parece se repetir. Argumentos gerais sugerem que o presente projeto possa detectar estes jatos até mesmo quinzenalmente. Esta é uma informação preciosíssima para o conhecimento astrofísico, sendo esse um objeto totalmente novo nos Céus, e de conseqüências imprevisíveis.

Outros tipos de ciência são esperados também, tanto de origem galáctica como extra galáctica e cosmológica.

Em termos de desenvolvimento técnico o projeto trará excelentes resultados para a região e propagação de conhecimento. Há, já neste momento uma interação entre proponentes do projeto e grupos da Escola de Comunicação para a propagação de conhecimento público e divulgação da ciência.

E em termos de técnica e engenharia, temos problemas muito interessantes em instrumentação e análise de ruídos, bastante importantes para a obtenção de resultados científicos, e interessantes em si tanto para a ciência como também como problemática técnica em geral.

O grupo associado ao projeto envolve vários países. No princípio tínhamos o intuito de construir o telescópio no Uruguai, em vista da possibilidade de pouco RFI (poluição eletromagnética), conseqüência da pequena população. Outras dificuldades trouxeram o projeto ao Brasil, onde depois de grande procura nos fixamos na região de São José da Lagoa Tapada, na Serra do Urubu, no sertão da Paraíba. Para isto temos uma colaboração com a Universidade de Campina Grande. Participam também do projeto a Universidade de Manchester, e o University College of London do Reino Unido, Universidade de Paris, Universidade de Kwazulu Natal, África do Sul, Eidgenossiche Technische Hochschule de Zurique e Universidade de YangZhou na China.

 

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