Bactérias do intestino podem ajudar no tratamento do câncer

José Belizário é professor associado do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP

 12/01/2018 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 22/11/2018 às 7:45
José Belizário – Foto: ICB-USP

 

Os micróbios (vírus e bactérias) são reconhecidamente agentes causadores (diretos ou indiretos) de aproximadamente 18% dos tumores malignos humanos que são diagnosticados por métodos de biologia molecular. Existem 7 famílias de oncovírus que induzem câncer, entre os mais conhecidos podemos citar o papiloma vírus (HPV), que está presente em 99% das biópsias de câncer cervical em mulheres.  A descoberta que uma bactéria chamada Helicobacter pylori, presente em mais de 50% das lesões de estômago (gastrites e úlceras), era o microrganismo causador do câncer do estômago e deu aos patologistas Barry Marshall e Robin Warren o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2005. Mais recente, os estudos mostraram que o câncer de colón retal pode ser causado pelas bactérias Fusobacterium nucleatum e Porphyromonas gingivalis, espécies que habitam a cavidade bucal, e que estão associadas às periodontites. Mas começamos a aprender que as bactérias também podem nos ajudar a curar o câncer.

No nosso intestino existem aproximadamente 300 trilhões de bactérias, grande parte delas são bactérias do bem (ou comensais) e uma pequena parte são bactérias do mal (patogênicas) (4). O tratamento de tumores com bactérias que residem no corpo humano começou a ser investigado em 1891, pelo cirurgião oncologista Willian Coley no New York Cancer Hospital que hoje é parte do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. Ele ficou mais interessado no tema quando um de seus primeiros pacientes, Elizabeth Dashiell, morreu por câncer de osso. Ao revisar os registros hospitalares (prontuários), Coley encontrou um estudo de um caso de sarcoma de um paciente chamado Fred Stein, cujo tumor desapareceu após uma febre alta (hipertermia) de infecção por erisipela, que é causada pela bactéria Streptococcus pyogenes. Esta bactéria está associada a várias infecções da pele, inclusive a celulite. Isso despertou o interesse de Coley e levou-o a encontrar outros registros de tratamento semelhante em pacientes com câncer. Ele descobriu que outros médicos famosos, incluindo Robert Koch, Louis Pasteur e Emil von Behring, registraram observações de que infecção por erisipela coincidiu com a regressão do câncer. Um dos componentes presentes na Toxina Bacteriana desenvolvida por Coley que se pensa ser biologicamente ativo é um lipopolissacarídeo (LPS) que causa a febre.

A febre é o resultado de ativação das células do sistema imune, em particular macrófagos e linfócitos que aumentam a produção do fator de necrose tumoral (TNF) e de outros fatores como a interleucina-12. Recentemente, os imunologistas começaram a entender em mais detalhes os mecanismos que disparam e os que controlam a resposta imunológica, o que levou à descoberta de uma nova geração de imunoterápicos conhecidos por inibidores de checkpoints do sistema imunológico. Em geral, os inibidores são anticorpos monoclonais que bloqueiam a capacidade de certas proteínas, chamadas proteínas do checkpoint imune que atuam para manter a atividade e a duração das reações imunológicas coordenadas pelos linfócitos T sob controle.
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Existem 7 famílias de oncovírus que induzem câncer, entre os mais conhecidos podemos citar o papiloma vírus (HPV), que está presente em 99% das biópsias de câncer cervical em mulheres

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Os linfócitos T nativos (CD4+ virgens) que nunca viram um antígeno (proteína estranha) não possuem função efetora (resposta imune produtiva) e devem adquirir essas funções através de um processo de diferenciação. Linfócitos T virgens precisam de no mínimo dois sinais para sua proliferação e diferenciação em células efetoras: o sinal 1 é sempre o antígeno e o sinal 2 é promovido por co-estimuladores expressos nas APCs (Células Apresentadoras de Antígenos). A ativação inicial depende do reconhecimento pelo receptor de linfócitos T (TCR) do antígeno apresentado pelo complexo MHC tipo II (complexo de histocompatibilidade) nas APCs, bem como das interações com co-receptores e seus ligantes. As associações reguladoras positivas incluem a interação da proteína CD28 (ativador da célula T) e B7 (co-estimulador) e as associações regulatórias negativas incluem a ligação da proteína CTLA4 (Antígeno 4 Associado com Linfócito T Citotóxico ou CD152) pela mesma B7, ou ainda por indução de um estado não responsivo denominado anergia (ausência de co-estimuladores). Além deste nível quantitativo de controle, a duração de ativação das células T também é influenciada qualitativamente por citocinas que promovem a diferenciação por linhagens distintas de células efetoras com funções especializadas, como exemplos linfócitos T citotóxicos (CD8+) e linfócitos T reguladores (Tregs).

Os pesquisadores descobriram que os tumores podem comandar essas proteínas e usá-las para suprimir as respostas imunes. O bloqueio da atividade das proteínas do ponto de vista imune libera os “freios” no sistema imunológico, restaurando a sua capacidade de destruir células cancerosas. Vários inibidores de checkpoint imune foram aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration, USA) e já são usados no Brasil. O primeiro desses fármacos a receber aprovação, o ipilimumab (Yervoy®), usado no tratamento de melanoma avançado, bloqueia a atividade da proteína de checkpoint imune CTLA4, que é expressa na superfície de linfócitos T CD8+ ativados. CTLA4 atua como um “interruptor” para inativar essas células T, reduzindo assim a sua capacidade em promover as respostas imunes. Ipilimumab foi o primeiro anticorpo monoclonal desenvolvido pelo imunologista James Allison, em 1996, no “MD Anderson Cancer Center, Texas University”, que alcançou maior sucesso clínico em termos de aumento do tempo de meia-vida em mais de 20% dos pacientes com melanoma avançado.
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Vários inibidores de checkpoint imune foram aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration, USA) e já são usados no Brasil

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O ipilimumab se liga ao CTLA4 e impede que ele envie seu sinal inibitório. Dezenas de outros inibidores aprovados já estão em uso clínico, como exemplo, nivolumab (Opdivo®) e pembrolizumab (Keytruda®), que se ligam a uma proteína de checkpoint imune diferente em linfócitos T ativados conhecida como PD-1 (Proteína-1 de Morte Celular Programada). Os resultados mostraram que os anti-PD-1 são mais eficazes e induzem poucos efeitos colaterais (febre) nos pacientes durante o tratamento. Nivolumab é aprovado para tratar pacientes com melanoma avançado ou câncer de pulmão avançado, e pembrolizumab é aprovado para tratar alguns pacientes com melanoma avançado, mas hoje já estão sendo aplicados no tratamento combinado para vários outros tipos de tumores. O uso combinado de anti-PD1 e anti-CTLA4 mostrou um resposta mais efetiva em aproximadamente 50% dos casos, porém tumores com baixa frequência de mutações (casos de próstata, mama e rim) não responderam à terapia. Até o final de 2017, mais de 20 anticorpos monoclonais desenvolvidos por diversas empresas farmacêuticas entraram em estudos de fase clínica III e IV em pacientes portadores de vários tipos de câncer. Estes estudos vão validar novas estratégias para identificar os biomarcadores que refletem o perfil imunológico dos pacientes que respondem ao tratamento, algo ainda muito pouco conhecido.

Em 2017, os pesquisadores publicaram os resultados de um estudo comparando a progressão dos tumores de melanoma implantados sob a pele de camundongos, em que ficou demonstrado que os tumores induzidos nos camundongos provenientes de um fornecedor de camundongos (Taconic) cresceram de forma mais agressiva do que aqueles fornecidos por outro fornecedor (Jackson). Quando os pesquisadores hospedaram os diferentes tipos de camundongos juntos no mesmo biotério antes de seus tumores serem implantados, no entanto  essas diferenças desapareceram. A transferência de fezes dos camundongos da Jackson para os camundongos da Taconic alterou a progressão tumoral do último. Em vez de promover o câncer, nestes experimentos, o microbioma intestinal pareceu diminuir o crescimento tumoral. Especificamente, o crescimento tumoral reduzido nos camundongos do Jackson correlacionou-se com a presença de uma espécie de bactéria chamada Bifidobacterium, o que levou ao maior acúmulo de células T nos tumores dos camundongos fornecidos pelo Jackson. As bifidobactérias ativam as células dendríticas (DC), que apresentam antígenos de bactérias ou células cancerígenas a células T, treinando-as para rastrear e matar esses invasores. As bactérias Bifidobacteria de camundongos do Taconic melhoraram a resposta às células de melanoma implantadas nos camundongos da Jackson.

Como parte de sua comparação entre os camundongos do Jackson e Taconic, Thomas Gajewski e seus colegas da Universidade de Chicago decidiram testar o inibidor de checkpoint imune PD-L1,  proteína encontrada em grandes quantidades na superfície de múltiplos tipos de células cancerosas. Os anticorpos monoclonais que se ligam ao PD-L1 bloqueiam sua ligação aos receptores PD-1 em células T, permitindo que a resposta imune contra as células tumorais continue ativa. Embora o tratamento de camundongos Taconic com anticorpos direcionados para PD-L1 melhorasse suas respostas tumorais, eles melhoraram ainda mais quando esse tratamento foi combinado com transferências de fezes de camundongos do Jackson, indicando que o microbioma e a imunoterapia podem trabalhar juntos para combater o câncer. E quando os pesquisadores combinaram a terapia anti-PD-L1 com uma dieta enriquecida com bifidobacteria (que é integrante dos iogurtes), os tumores dos camundongos virtualmente desapareceram.

Enquanto isso, o grupo da Doutora Laurence Zitvogel (Gustave Roussy Cancer Campus, Villejuif, França), estudava as interações entre o microbioma e os inibidores de CTLA-4, conhecido por ipilimumab (Yervoy®). Os pesquisadores descobriram que os melanomas em camundongos sem germe (conhecido por germe-free) tratados com antibióticos apresentavam respostas mais precárias ao inibidor anti-CTLA-4 em comparação com camundongos que hospedavam microbiomas normais inalterados. Em particular, as espécies de Bacteroides foram associadas à infiltração de células T e a redução do tamanho dos tumores. A alimentação de camundongos com Bacteroides fragilis tratados com antibióticos ou sem germe (germ-free) melhorou as respostas dos animais à imunoterapia. Como um bônus adicional, o tratamento com essas espécies de “Bacteroides” imunogênicas diminuiu a colite dos animais, uma resposta inflamatória intestinal que é um efeito colateral muito comum em pacientes que utilizam inibidores de checkpoint imune. Além disso, Zitvogel e seus colegas mostraram que pacientes com melanoma metastáticos tratados com ipilimumab tendem a ter níveis elevados de B. fragilis em seus microbiomas. Os camundongos transplantados com fezes de pacientes que apresentaram B. fragilis, em particular, foram os que melhor responderam ao tratamento com anti-CTLA-4 do que os camundongos transplantados com fezes de pacientes com níveis normais de B. fragilis. Embora os mecanismos pelos quais o microbioma influencie a eficácia de tais terapias permaneçam incompletamente compreendidos, os pesquisadores novamente especulam que o sistema imunológico é a conexão principal. A ciclofosfamida, por exemplo, estimula nosso corpo a gerar dois tipos de linfócitos T, células auxiliadoras T CD4+ Th1 e outro subtipo de linfócitos T denominado CD4+ Th17 referidas como “patogênicas”, que destroem as células tumorais. Zitvogel e seus colegas descobriram também que, em camundongos com microbiota inalterados, o tratamento com ciclofosfamida funciona interrompendo a mucosa intestinal, permitindo que as bactérias entre nos tecidos linfoides associados ao intestino (GALT) presente logo abaixo do intestino. Lá, as bactérias estimulam o corpo a gerar linfócitos T CD4+ Th1 e Th17, que são direcionadas para o tecido tumoral. Quando os pesquisadores transferiram as células Th17 “patológicas” em camundongos tratados com antibióticos, a resposta dos camundongos à quimioterapia foi parcialmente restaurada.

Mas de acordo com os novos estudos publicados na revista Science em janeiro de 2018 (1, 2 e 3), pode não ser o sistema imunológico que precisa de um empurrãozinho para reagir mais rápido e eficientemente – mas sim o intestino. Algumas bactérias do microbioma intestinal parecem educar e treinar as células imunes para combater as células cancerosas – antes de qualquer estimulação de imunoterapias contra o câncer. Sem tal aprendizado via microbiota, as drogas não parecem oferecer nenhum efeito útil. Nos três estudos, os pesquisadores descobriram que os pacientes com câncer que não se beneficiaram dos medicamentos (não respondedores) eram aqueles que não possuíam certas bactérias intestinais do bem, particularmente depois de tomar antibióticos. Enquanto isso, os pacientes com câncer que responderam aos medicamentos tinham bactérias que poderiam induzir o sistema imunológico a liberar substâncias químicas que provocam células T citotóxicas a eliminar os tumores.

O grupo de Laurence Zitvogel mostrou que a abundância relativa de Akkermansia muciniphila, uma espécie que promove a degradação de mucina da barreira intestinal era essencial para resposta antitumoral dos pacientes com câncer de pulmão e rim. A suplementação oral com A. muciniphila ou a transferência de fezes dos camundongos respondedores restaurou a eficácia do bloqueio de PD-1 de forma dependente de IL-12 que aumentou o recrutamento de linfócitos T CD4 + aos centros do tecido tumoral. Já o grupo da Doutora Jennifer Wargo, oncologista e geneticista (MD Anderson Cancer Center, Universidade do Texas) identificou que a abundância relativa de bactérias da família Ruminococcaceae e Faecalibaterium nos pacientes respondedores era essencial para a resposta positiva, enquanto os não-respondedores apresentavam taxas aumentadas de bactérias da família bacteroidales. Nos estudos realizados pelo grupo do Doutor Thomas Gajewski, as espécies bacterianas mais abundantes em pacientes respondedores incluíram Bifidobacterium longumCollinsella aerofaciens e Enterococcus faecium. A reconstituição de camundongos sem germe (germe-free) com material fecal dos pacientes respondedores proporcionou um melhor controle no crescimento dos tumores, respostas aumentadas de linfócitos T citotóxicos e maior eficácia da terapia anti-PD-L1 nos camundongos.

A doutora Wargo está realizando ensaios clínicos para ver se o transplante de microbiota fecal (conhecido pela sigla FMT) em pacientes com câncer pode melhorar as taxas de sucesso das imunoterapias contra o câncer. A FMT (4) é uma modalidade terapêutica aprovada em alguns países para tratar infecções colorretais recorrentes causadas por clostridium difficile (ICD) que acontece com o uso prologado de antibióticos. A FMT esta sendo testada para outras enfermidades. Desde 2012 foram criados bancos de microbiomas (análogos a bancos de sangue) que são abastecidos por doadores voluntuários sadios em muitos centros clínicos nos Estados Unidos (Openbiome) e Europa (Stoll Bank East). Já existe uma pílula fecal contendo misturas de microbiomas sendo usada em ensaios pré-clínicos que potencialmente poderá restaurar o microbioma intestinal e melhorar a imunidade sistêmica e resposta antitumoral. Os bancos de microbiomas de pacientes com câncer que responderam positivamente às imunoterapias estão sendo abastecidos. A nova pílula do câncer está pronta e vem com várias opções de odores. O desafio agora é achar o doador compatível para cada tipo tumor e paciente.

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Referências  

1.Routy B, Le Chatelier E, Derosa L et al. (2017). “Gut microbiome influences efficacy of PD-1-based immunotherapy against epithelial tumors”. Science 05 Jan 2018: 359(6371): 91-97.

2.Gopalakrishnan V, Spencer NC, Nezi L, Reuben A, Andrews MC et al. (2017). “Gut microbiome modulates response to anti-PD-1 immunotherapy in melanoma patients”. Science 05 Jan 2018: 359(6371): 97-103.

3.Matson V, Fessler J,  Bao R, Chongsuwat T et al. “The commensal microbiome is associated with anti–PD-1 efficacy in metastatic melanoma patients”. Science 05 Jan, 2018 359(6371): 104-108.

4.Belizario JE. In “Microbioma, disbiose, probióticos e bacterioterapia”. Ed Joel Faintuch. Barueri, SP, Editoria Manole Ltda, 2017.


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