Cinema educativo e internet: novas formas de ensinar e aprender

Por Diana Vidal, professora titular de História da Educação da FE/USP e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP)

 11/06/2020 - Publicado há 4 anos
Diana Gonçalvez Vidal – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
A pandemia da covid-19 tem feito com que busquemos novas maneiras de contato social e de manutenção das atividades escolares. A internet não é algo novo, por certo. Mas a incidência com que tem invadido os lares é sem precedentes. De shows ao vivo, lives, a aulas de canto, o mundo on-line tem criado uma realidade paralela e estimulado novas formas de ensino e de extravasamento do espaço circunscrito da sala de aula. Esse movimento, entretanto, não chega a ser novidade. Na década de 1920, a introdução do cinema educativo nas escolas tinha objetivos similares. Canuto Mendes de Almeida, escrevendo em 1931, proclamava:

“[O cinema] domina o tempo e o espaço, o movimento e a extensão. Sabe concentrar 12 horas num minuto com a mesma perícia que um século num dia. Na mesma área da tela, projeta micro-organismos e cadeias de montanhas. Acelera, retrai e até imobiliza o movimento. E essas imagens mágicas, coordena-as à vontade, sem restrições de espécie alguma. Porque o cinema está sucessivamente em qualquer parte, possui o dom da ubiquidade, acha-se, ao mesmo tempo, em lugares diferentes, tudo pode gravar, ligar, separar, ajuntar, intercalar, encadear, no sentido mais útil ao ensino” (Almeida, 1931, p. 187).

A virtualidade das imagens abria um novo campo perceptivo para ser explorado em sala de aula. Coloria o discurso do professor e enriquecia o ensino, pelo “contato com o real”. Na prática de sala de aula, o filme era visto como um aliado. Sylvio Froes Abreu (1929, p VII), na tese que defendeu, concorrendo à cadeira de Geografia Geral, especialmente do Brasil, da Escola Normal do Rio de Janeiro, assim se expressava: “O cinema deve ser um constante auxiliar do professor. Os filmes reproduzem aspectos típicos de regiões e de povos do mundo inteiro. Entre nós já se vai aplicando o cinema à instrução; temos no Museu, na Quinta da Boa Vista, uma sala onde se fazem frequentemente projeções de grande valor educacional”.

Mas tal qual a internet, se, por um lado, as imensas possibilidades da cinematografia acenavam para os professores, indicando-lhes novos caminhos a percorrer, por outro, o cinema se afirmava como a arte do perverso, do maligno, do anti-social. “E uma invenção formidável, de formidabilis, formidabile, terrível, temeroso, temerando, que se deve temer…”, Jonathas Serrano evidenciava o conflito.

A população dirigia-se aos cinemas em busca da ficção, da fuga do cotidiano. As salas de projeção cresciam em número, espalhando-se por toda a cidade. Em 1930, existiam, no Brasil, 1.800 salas de projeção, das quais 74 estavam localizadas na cidade do Rio de Janeiro e 50 na de São Paulo. Somente em 1928 foram exibidos 1.603 filmes, 38 de produção nacional. As sessões iniciavam-se às 14 horas e seguiam por toda a tarde, estendendo-se até meia-noite.

Toda a sorte de pessoas frequentava os cinemas e, nas palavras de Serrano, expunha-se à recepção de informações várias, impressão de sentimentos díspares, muitas vezes perniciosos, deformadores da moral e do caráter, principalmente adolescente. Citando um depoimento de um menino francês, publicado em Comoedia, de Paris, o autor de Cinema para crianças ilustrava a perversidade do drama: “O cinema me dá medo, me atormenta, me faz sismar. Choro e fico doente, o cinema me dá ideias, mas veem-me ali coisas, mas os dramas modificam o caráter, pode a gente se tornar ladrão, assassino degenerado”.

O discurso moralizador endereçado ao cinema dramático – como era chamada na época a arte cinematográfica que lidava com as paixões humanas – denotava uma crítica à magia da imagem. No entanto, os mesmos educadores que denunciavam a tensão entre arte e real, quando instados a falar sobre o cinema educativo, assumiam a imagem como signo de verdade. O cinema educativo, porque pautado em princípios científicos, orientado por técnicos em educação e dirigido à reprodução de fenômenos da natureza ou do homem (caso dos noticiários), não passava pelo crivo da crítica. O filme era percebido como simples recurso de visibilidade, uma ampliação da capacidade humana de ver o mundo a sua volta. O cinema educativo era apontado como um instrumento.

A perversidade, atribuída ao dramático, amplamente discutida na década de 20, alertava para o fato de que o desenvolvimento do cinema falado e, portanto, o crescimento da indústria cinematográfica, trazia à tona a necessidade de disciplinamento dessa arte, fixando-lhe limites e formas consideradas adequadas de criação, divulgação e socialização. Os educadores brasileiros, em parte reproduzindo uma discussão de âmbito internacional, procuravam se apropriar da prática discursiva fílmica, fixando-lhe o campo dentro do qual seria validada pelo discurso educativo. Ou seja, havia a tentativa de enquadramento do cinema ao que concebiam como princípios de uma educação sadia e nacionalizante.

Exemplar foi a fala de Afranio Peixoto: “Escolher um bom professor, melhor uma bela jovem, interessante, interessada professora, dotada do dom de ensinar. Fazê-la, por um método pedagógico experimentado, dar instrutivas e agradáveis lições, diante do registro que será vidente e falante […] para impregnação na alma de milhares de adultos e crianças, que veriam, por todos os recantos do Brasil, passarem e repassarem estas fitas-lições, instrutoras e educadoras de um povo. […] Ou muito me engano ou isto será a realização do símbolo evangélico, a multiplicação dos pães, do pão espiritual”.

Nesse sentido, por iniciativa da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal, realizou-se na Escola José de Alencar a Primeira Exposição de Cinematografia Educativa, em agosto de 1929. Projetada com o intuito de ser guia para os professores e instrumento de divulgação dos benefícios do cinema para a prática educativa, suas instalações compunham-se da mostra do maior número possível de aparelhos existentes de projeção de imagens fixas ou em movimento.

Para tanto, seus organizadores, Jonathas Serrano (um aficionado pela cinematografia e que já havia sublinhado a importância do cinema para a educação em 1913) e Venâncio Filho, amigos que em 1931 publicaram Cinema e educação, entraram em contato com diversas empresas dedicadas à cinematografia e projeção de imagens, solicitando participação no evento. Como o objetivo era educar alunos, professores e pais para o aproveitamento saudável da arte de contemplação e projeção de imagens, nomearam uma comissão de técnicos no assunto para análise e emissão de pareceres sobre os aparelhos expostos, classificando-os de acordo com suas possibilidades em sala de aula. Também foram exibidos filmes educativos e deu-se início à formação de uma filmoteca educativa, base para o trabalho docente.

À exposição carioca seguiu-se, dois anos mais tarde, a Exposição Preparatória do Cinema Educativo, realizada entre 22 e 28 de junho de 1931, por iniciativa da Diretoria Geral de Ensino de São Paulo.

O cinema, ainda, era percebido como um instrumento de propaganda. Além de ampliar as possibilidades do ensino em sala de aula, poderia servir de veículo de informação à toda comunidade. Fernando de Azevedo, ao discorrer sobre formas de cooptação dos pais para a obra da educação carioca, através das atividades dos Círculos de Pais e Professores, indicava exibições para ilustrar conferências, ou mesmo servir de chamamento para a frequência às reuniões.

Aliás, na cruzada higiênica, o cinema era elemento de primeira ordem, utilizado, inclusive, no combate a epidemias. Sua ação era reforçada por entidades internacionais, principalmente a Cruz Vermelha, que se ocupava da produção e distribuição de filmes “[…] a todos os recantos da terra, por empréstimo a prazo fixo, conforme as distâncias, especialmente para escolas, a fim de percorrer o mundo todo”. Durante a campanha profilática de 1929, projetou-se, em 35 escolas, no Instituto Orsina da Fonseca e no Liceu de Artes e Ofícios, uma fita de combate à febre amarela, de autoria do Dr. Francois Norbert, adquirida pela administração pública carioca.

Como as atividades de propaganda oferecidas pelo cinema ao trabalho educacional não se restringiam à população escolar, estendida às famílias, mas visavam a toda a sociedade, não era suficiente a importação de filmes. Era necessária a sua produção. Um exemplo foi a realização, em 1929, da película Educação e trabalho, preparada sob a orientação de técnicos da Diretoria de Instrução do Rio de Janeiro, por Botelho Film, com o objetivo de difundir o ensino profissionalizante, e exibida, no mesmo ano, para um auditório de 2 mil pessoas, no cinema Odeon.

A utilização do cinema como auxiliar na formação moral e intelectual do homem não se circunscrevia, apenas, ao âmbito da educação oficial. Outras instituições sociais também estavam-se apropriando da imagem fílmica para difundir seus preceitos. Clarice Nunes relata que, pela primeira vez, em outubro de 1926, a Igreja francesa, sob a coordenação do cardeal Dubois, exibiu um filme, em um dos maiores teatros de Paris, divulgando as congregações religiosas: seus trabalhos, esforços e feitos. Aliás, o interesse da Igreja pelo cinema foi tão grande que, em 29 de junho de 1936, Pio XI consagrou ao tema a encíclica Vigilanti cura. Ali afirmava: “O cinema é escola, que pode concorrer para o bem ou para o mal, conforme sua aplicação”.

Pelo cinema conhecia-se o mundo, via-se o que o olho humano não podia captar naturalmente, ou visitavam-se lugares que talvez nunca pudessem ser vistos de perto. Para a educação, trazia a possibilidade de vivenciar fatos até então narrativas do ensino verbalista. Mais ainda, permitia a propaganda de hábitos, normas e ideias, pois o filme disseminava informações mais rápido e prazerosamente que jornais e palestras.

Os dilemas vividos com a incorporação do cinema às praticas escolares não são muito diferentes do que hoje presenciamos com a internet. A insegurança que atualmente temos com respeito às informações que chegam sem controle aos sujeitos e os riscos oferecidos pelas fake news, por certo, potencializam as preocupações dos educadores de outrora. Mas, assim como eles aprenderam a lidar com o cinema, e, depois, com a televisão, saberemos lidar com a internet, principalmente agora que, forçados a mergulhar no universo da rede e a reconstruir as práticas educativas com o uso de novas ferramentas, estamos nos familiarizando mais com os recursos, desmistificando a web e percebendo o quanto estes novos modos de ensinar e aprender podem auxiliar na difusão do conhecimento, como aliados na nova configuração de uma educação pública de qualidade.

(Texto extraído de um dos podcasts publicados no IEB às 14h, disponível no site www.ieb.usp.br, que traz todos os dias, à exceção dos feriados e fins de semana, uma nova emissão. Associado ao Anchor, e com um canal específico no Spotify, o programa registra ouvintes, além do Brasil, na França, Reino Unido, Itália, México, Portugal, Índia, Argentina, Alemanha. Os áudios estão disponíveis ainda nas plataformas Breaker, RadioPublic e Google Podcasts.)


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