Nélida Piñon - Foto: Casa de América/Flickr

Carta (póstuma) a Nélida Piñon

Por Cremilda Medina, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 19/12/2022 - Publicado há 1 ano
Cremilda Medina – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

Não estava preparada para a notícia. Sábado passado, nublado e chuvoso, dia 17 de dezembro de 2022, toca o telefone à tarde e a amiga Liana Milanez me anuncia que você, querida Nélida Piñon, se foi do nosso convívio. Estava desconectada, envolvida nos afazeres domésticos e tudo parou, porque você voltou inteira desde que a conheci no início da década de 1980. Ainda há pouco abracei você quando lançou em São Paulo seu precioso romance Um dia chegarei a Sagres (2020), mas o mais presente na memória ainda será a descoberta de sua outra narrativa de fôlego, A república dos sonhos (1984). Para mim, que reportava as literaturas de língua portuguesa – os escritores de Portugal, 1982-83, os do Brasil, 1984-85, e os da África, 1986-87 –, foi um privilégio encontrar você no momento em que nos oferecia uma saga fundacional das migrações e das miscigenações brasileiras. Privilégio, sim, porque a série que publiquei no jornal O Estado de S. Paulo, sob o selo Escritor brasileiro hoje, seria complementada no título do livro, com um significado mais simbólico, A posse da terra.

A intuição me veio porque você e alguns outros autores agarravam com pulso firme o reflorescimento do romance nessa década da reconquista democrática (o conto teria sido a expressão dominante na década anterior). Presumo que estava explodindo, para além do mapa geográfico, a força das raízes culturais na nova posse da terra. Foi assim, querida Nélida, que reuni, entre outros ficcionistas, poetas, ensaístas, a escrita da brasilidade que ecoava como em você um grito sufocado: na Bahia, João Ubaldo escrevia as últimas páginas de Viva o povo brasileiro, quando o visitei em Itaparica; no Rio Grande do Sul, Moacyr Scliar já havia escrito A estranha nação de Rafael Mendes; outro gaúcho, Josué Guimarães me contou de um projeto de ficção épica, mas infelizmente nos deixou precocemente e o romance não foi escrito; em São Paulo, Sinval Medina acabara de editar Memorial de Santa Cruz, que abraça a circularidade mítica do território continental pela voz do personagem Brasil de Santa Cruz. Seu romance, Nélida, compunha em ecos profundos esse mergulho identitário da república de sonhos.

Devo dizer que pude reafirmar esse vulcão telúrico que a arte vocaliza, na tese de livre-docência apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em 1989. Como consequência dos três livros anteriores – Viagem à literatura portuguesa contemporânea, Escritor brasileiro hoje, A posse da terra e Sonha Mamana África – defendi o que aprendera, Nélida, com você e seus parceiros: os míticos povoadores da saga romanesca são o espelho profundo dos habitantes da terra. E por isso a tese e o livro publicado a seguir levam por título Povo e Personagem (1996). Não fosse o privilégio de contar com a especial interlocução de Antonio Candido na banca, ainda teria a memória, em 1989, duas outras vozes inesquecíveis. Em 1980, numa conversa em São Paulo com Edgar Morin (celebramos no ano passado seus vitais cem anos), ele enunciou um entendimento basilar: quem, no século 21, quiser conhecer melhor o que se passou no século em que estamos, terá de ir ao romance. Anos depois, em Moçambique, um grande poeta que encontrei em Maputo se despediu de mim no portãozinho de sua modesta casa com uma síntese: olhe, eu sou poeta, mas quero dizer-lhe que um povo se escreve no romance.

Como poderia deixar de anotar tais lembranças nesta carta de elegia a você, romancista de laços ibéricos, ancestrais da Galícia, nascida e criada nesse Rio de Janeiro que, como São Paulo, resume a aventura brasileira. E, como viajante inveterada, você não me surpreendeu ao fechar os olhos, aos 85 anos, em Lisboa, sábado passado. De sua boca, em público ou em entrevistas, ficam as frases irretocáveis (sempre notei a excelência de sua oratura); da escrita que nos deixa, a palavra poética, os parágrafos densos, capítulos que se encadeiam com perfeita regência dos contextos dramáticos às cenas do cotidiano, da seriedade reflexiva à leveza lúdica. Mas para isso a historiografia literária tem e terá muito a dizer.

Nestes últimos tempos, tenho escrito alguns breves e sentidos adeuses. Nem sei agora como me despedir de você, Nélida Piñon…


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.