26 de dezembro de 1929: um assassinato que se mantém quase um século depois

Por Sergio Schargel, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 29/02/2024 - Publicado há 2 meses
Sergio Schargel – Foto: Reprodução/FFLCH-USP

 

“gostava também de venenos e mulheres diabólicas que seduziam e corrompiam homens frágeis” (Patrícia Melo)

De vez em quando, antes de dormir, começo a me lembrar. 26 de dezembro de 1929. E as coisas tomam uma nitidez desesperadora. A memória deixa de ser a intermediária entre mim e o fato, entre mim e as pessoas.

Não fui eu quem disse isso, mas poderia ter sido. Porque compartilho com o autor, Nelson Rodrigues, a mesma visão. Claro que com a diferença de que Nelson estava na redação no dia 26 de dezembro de 1929, enquanto eu apenas a revisitei por meio de uma pós-memória — conceito que sugere que traumas são herdados e perpassam gerações — e pelo estudo de anos sobre o caso. O caso, no caso, do assassinato do irmão de Nelson, Roberto Rodrigues, por minha bisavó, Sylvia Serafim.

A história é complexa e perpassa diversas camadas.

Em 26 de dezembro de 1929, um evento trágico e marcante teve lugar no jornal Crítica. A jornalista e escritora renomada Sylvia Serafim entrou buscando uma audiência com o proprietário do periódico, Mário Rodrigues. Porém, tanto Mário quanto seu filho, Mário Filho, não estavam presentes. Sylvia, então, se encontrou no escritório com Roberto Rodrigues, ilustrador do jornal e outro filho de Mário. Embora os detalhes do encontro permaneçam obscurecidos, o desfecho trágico foi o disparo feito por Sylvia que atingiu Roberto na região abdominal, causando sua morte três dias depois. O jovem Nelson Rodrigues, com 17 anos na época, também estava presente na redação.

Conservadores passaram a usar o crime como justificativa para atacar grupos feministas, como se o assassinato fosse uma extensão natural de uma emancipada. Algo já esperado, premeditado, não havia surpresa que alguém que supostamente rejeitava a família e o feminino perpetrasse um assassinato. Do outro lado, as feministas e progressistas se apropriaram do caso para divulgar os ideais sufragistas, corrente que a própria Sylvia seguia.

Só que a disputa não acabou depois do julgamento. Não acabou nem mesmo quando Sylvia morreu em 1936. Os jornais da década de 1930 cobriram o caso em profundidade, e o adaptaram como meio de disputa política, ideológica e econômica, algo que permanece ainda hoje. O caso nunca desapareceu por completo da memória popular, e volta e meia retorna à ordem do dia. As crônicas de Nelson na década de 1970, publicadas depois em O reacionário, por exemplo, canonizaram sua versão — com fragmentos que, curiosamente, contradizem até a cobertura do próprio Crítica. Em 1992, o sucesso de O anjo pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, reforçou o cristal do cânone da versão nelsoniana, sem preocupação com o que Sylvia ou sua família teriam para dizer.

Essas obras, longe de gerarem interesse de novos leitores ou pesquisadores em se aprofundarem sobre o caso, terminaram por criar apenas uma profusão de novos trabalhos, que se queriam ficcionais ou não, que apenas repetiam o diálogo Nelson-Castro. Mesmo trabalhos acadêmicos ― encontrei mais de 30, entre teses, dissertações, artigos, ensaios, monografias ― trazem Sylvia, com apenas duas exceções notáveis, como nota de rodapé responsável por impulsionar a carreira de Nelson. Sempre lembrada como assassina, nunca como poetisa. Ficcionalizada ao limite, transformada em personagem da prosa de Nelson Rodrigues nas peças, livros, séries e filmes que surgiram sobre o assassinato. Os trabalhos artísticos e políticos de Sylvia permaneceram na obscuridade, interessava muito mais às pessoas a violência do que seus escritos sobre feminismo ou direitos trabalhistas.

Enfim chegou a hora de retirar a poetisa de sua até então exclusiva função de assassina.

Sylvia sofreu um processo de desumanização que não falha em encontrar ecos históricos com imagens como as “bruxas” ou a “histérica”. Sendo uma mulher que ousou transpor as barreiras limitadas ao seu gênero até então, tornou-se alvo fácil das estruturas patriarcais e conservadoras.

É preciso formar algum esboço de crítica sobre o trabalho de Sylvia ― o que, obviamente, não implica ressaltar somente as suas qualidades. O fato é que foi esquecida sua outrora relevância, o devido resgate e avaliação estética permitem compreender não apenas essa autora, mas também o seu tempo. Tendo despontado no final da década de 1920, e uma das únicas, caso não a única, mulher a ter uma coluna fixa em um grande jornal da época (antes, Para as horas do lazer feminino, depois rebatizada como Para a mulher no lar), seus escritos sobre emancipação feminina e direitos de grupos minoritários aparecem como mais relevantes do que nunca.

O máximo de crítica que temos sobre Sylvia foi esboçado por Ruy Castro em O anjo pornográfico. No entanto, se limita a um curto parágrafo em que o biógrafo afirma que a literatura de Serafim é de baixa qualidade, sem, contudo, explicar o motivo dessa afirmação. Castro apenas menciona que:

[…] Sylvia não tinha a menor vocação para a literatura. Poucos meses antes do julgamento, ela publicara o seu primeiro livro: “Fios de prata (Sinfonias da dor)”, uma coletânea de crônicas ginasianas de amor entre as quais a que começava com a frase “Malditos sejam todos aqueles que me desejam”. Era dedicado aos que “me fizeram sofrer”. No ano seguinte lançaria “Ramos de coral (Poemas de um coração de mãe)”, ilustrado com fotos de seus filhos e incluindo textos em estilo tatibitate com evocações à “alma de seu nenê”, a fadas e ao Papai do Céu. Mas seu livro mais surpreendente seria o “Manual de civilidade”, publicado em 1935: um rigoroso manual de etiqueta, afinal bem escrito, mas de um cruel deboche tratando-se de uma autora que respeitara bem pouco a etiqueta ao visitar aquela redação em 1929.

Em que pese a possibilidade de Castro ter razão quanto à fragilidade do trabalho artístico de Sylvia, isso não muda o fato de que não há crítica sobre sua obra, nem diminui a importância de se reconhecer o valor, pelo menos do ponto de vista historiográfico, de criar um registro sobre seu trabalho. Além disso, mesmo que sua literatura possa não ser considerada revolucionária, o mesmo não se aplica aos seus trabalhos jornalísticos e políticos, que continuam relevantes no contexto contemporâneo, embora igualmente ignorados. A parcialidade de Castro foi tão marcante que o crítico literário Wilson Martins sentiu-se compelido a escrever um pequeno desagravo em 5 de junho de 1993:

No terrível episódio em que Sylvia Seraphim se viu envolvida, o menos que se pode dizer é que lhe invadiram a privacidade de forma brutal e grosseira, sem que nenhuma razão de ordem pública o justificasse. É, por isso mesmo, descabida a censura que lhe faz Ruy Castro a propósito do “Manual de civilidade”: “um rigoroso manual de etiqueta, afinal bem escrito, mas de um cruel deboche tratando-se de uma autora que respeitara bem pouco a etiqueta ao visitar aquela redação em 1929”. Não seriam, certamente, os jornalistas da “Crítica” os mais autorizados a dar lições de civilidade. Tudo isso prova que também Ruy Castro é humano.

Como sabemos, o cânone é um mecanismo exclusivista que se manteve fechado para mulheres, ainda mais para uma assassina. Não faltam exemplos de autoras que vêm, aos poucos, sendo revisitadas e incluídas no cânone, como Carolina Maria de Jesus. Talvez ainda exista espaço para Sylvia, mas antes é preciso verificar quais contribuições a autora pode dar para os diversos campos em que transitou.

Esse processo de revisão do cânone vem, de alguma forma, respingando sobre ela. Além de mim, seu descendente, sei de pelo menos dois outros pesquisadores que se debruçaram sobre a sua obra e buscaram formar uma visão distinta sobre a personagem. É pouco, muito pouco, mas já é mais do que foi feito nos quase cem anos anteriores. Graças a Karla Carloni, vinculada ao programa de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Marcus de Moura Barros, doutor pela Sorbonne, temos esboço de crítica sobre a intelectual. Mais interessante: nenhum dos dois pesquisadores possui laços de sangue com Sylvia, diferente de mim. Em que pese a qualidade de ambos os trabalhos, os vários universos relacionados a Sylvia Serafim estão longe de se esgotarem. Sylvia precisa deixar de ser nota de rodapé na vida de Nelson, é hora de receber o seu espaço próprio.

Carloni discorda de Castro, e entende que a obra de Serafim, mesmo literária, tinha diversos méritos. Como diz, seu texto era “requintado e marcado por toques de ironia”. Mas, limitada pelo curto espaço de um artigo transformado em capítulo de livro, aliado à necessidade de contextualização da personagem e do caso, não sobra muito espaço para a pesquisadora desenvolver a sua crítica. Uma vez mais: essencial e de enorme mérito, mas ainda apenas um começo.

Esse esquecimento se refletiu na dificuldade de achar os trabalhos da intelectual. Foram cerca de dois anos de buscas em sebos até encontrar o primeiro de seus livros, Fios de prata, sinfonias da dor. Material inédito, nunca analisado, também está disponível para consulta na Biblioteca Nacional. Mas agora, pela primeira vez, também digitalizado. Outro livro seu também na BN é Manual de civilidade, um curioso manual de etiquetas em que a autora ensina, entre outras coisas, a prática do flerte na década de 1930. Também já foi devidamente digitalizado. O último livro de Sylvia, Ramos de coral (Poemas de um coração de mãe), é o único que não foi encontrado de nenhuma forma (embora fragmentos estejam disponíveis em reprodução nos jornais da época). Também há relatos em um jornal de 1936 de que Sylvia teria deixado um manuscrito de romance inacabado, que traria seu terceiro filho, meu avô, como protagonista.

Existe um núcleo passional no envolvimento desta história. As cicatrizes nunca desapareceram, e são reabertas com frequência. As consequências permanecem quase cem anos depois, nas três famílias envolvidas. Inclusive sobre mim, seu bisneto.

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