Nelson Rodrigues, o melhor personagem de si mesmo

Quarenta anos depois de sua morte, o autor de "Vestido de Noiva" incomoda menos, mas continua fustigando - e sendo essencial

O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues - Foto: Domínio público/Arquivo Nacional

Há quatro décadas, no dia 21 de dezembro de 1980, um domingo, Nelson Rodrigues finalizou seu último ato. Na manhã daquele dia quente de quase verão carioca, depois de 68 anos de uma vida conturbada, de muito sucesso e pouco dinheiro, de ter sofrido ataques os mais diversos – vindos de desafetos à direita e à esquerda -, de ter revolucionado o teatro brasileiro (e praticamente tê-lo colocado a fórceps em uma incômoda modernidade) e ter escrito crônicas que entraram para o cânone do gênero no Brasil, Nelson foi vencido pelos problemas cardíacos, respiratórios e gástricos que o atormentaram por anos a fio. Sua morte, no entanto, ainda trouxe um último ingrediente de ironia e de tragédia que marcaram sua vida e sua obra: na tarde daquele domingo, Nelson faria 13 pontos na Loteria Esportiva, em um bolão no qual entrou com o irmão Augusto e amigos de redação de O Globo

Mas isso é apenas mais uma curiosidade na biografia rodriguiana, já suficientemente farta de histórias que, ao mesmo tempo que moldaram a obra do escritor – hoje, reconhecida e referendada -, forjaram seu caráter e sua forma de ver o mundo, por mais que nunca tivesse saído do País. E como o mundo – ou pelo menos o Brasil – o via. E continua vendo. Ao longo de sua carreira de dramaturgo e cronista, Nelson Rodrigues ganhou vários epítetos: o diretor de teatro Antunes Filho o via como “um poeta, um gênio”; para muitos de sua época, ele era “obsceno” – Carlos Lacerda o chamava de “o tarado Nelson Rodrigues”. O poeta Manuel Bandeira o proclamou “o maior poeta dramático que surgiu em nossa literatura”. Já para o jornalista e escritor Ruy Castro, autor da biografia definitiva de Nelson, ele era “o anjo pornográfico”. Mas o crítico e professor da USP Sábato Magaldi, morto em 2016, talvez o maior especialista na obra teatral rodriguiana, tinha uma visão mais abrangente, como ele escreveu em seu livro Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações, de 1987: 

“A maioria dos protagonistas de Nelson suporta uma carga de aniquilação que os aproxima do herói expressionista. Na tragédia grega, pesa sobre o indivíduo uma fatalidade que o faz passar de um estado bom inicial a um estado mau final. Abate-se sobre ele o Destino, brincando ironicamente com as ilusões da aventura terrestre. Até seu último dia de vida, nenhum herói trágico pode acreditar que a vida tenha sido feliz.”

Nelson Rodrigues, essa espécie de arremedo de “herói trágico” de si mesmo, melhor personagem que criou, ambivalente e incômodo, tinha certeza de que a vida não podia ser feliz.

Tragédia no palco e na vida

Cena da peça A Vida Como Ela É - Foto: Águeda Amaral

Porque a vida de Nelson foi marcada por tragédias e, de várias formas, esse drama ultrapessoal acabou sendo levado para sua obra. E a maior de todas as tragédias, aquela que o marcou para sempre, foi o assassinato de seu irmão Roberto, na redação do jornal A Crítica, fundado por seu pai, Mário Rodrigues, no Rio de Janeiro. No final de 1929, a redação foi invadida pela escritora Sylvia Seraphin, que se sentiu difamada por uma matéria do jornal. Foi lá para matar Mário mas, não o encontrando, atirou em Roberto, que morreu dois dias depois. Setenta e sete dias após o assassinato de Roberto, seu pai também morreu, aos 44 anos, de encefalite aguda e hemorragia. Nelson tinha 17 anos e havia 13 que tinha se mudado com a família de Recife para o Rio, e nunca superou essa tragédia. “Ninguém conseguirá penetrar no teatro de Nelson Rodrigues sem entender a tragédia provocada pela morte de Roberto”, escreveu Ruy Castro. O próprio Nelson atestou essa ideia de impressionismo autobiográfico em sua obra em entrevista ao jornalista Lourenço Diaféria, da Folha de S. Paulo, em agosto de 1979, pouco mais de um ano antes de morrer. 

“Vou buscar a inspiração na própria vida, nas minhas lembranças e através de tudo o que a memória guardou. Todos os meus textos dramáticos são uma meditação sobre o amor e sobre a morte. O meu teatro não seria o que é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se eu não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto”, afirmou ao jornal. “Depois da morte de Roberto, aprendi a quase não rir.”

E essa inspiração trágica se refletiu na maioria esmagadora de suas peças, como afiança a professora da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora Carla Risso em sua tese de doutorado O Ato da Sociedade Paulista, defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP: “O desfecho trágico presente nesse drama da vida pessoal do dramaturgo é comum em 15 das 17 peças que Nelson veio a escrever. Mortes violentas, crimes e suicídios são desfechos constantes dos personagens rodriguianos”, escreve a pesquisadora. Entre essas peças estão A Mulher sem Pecado, Álbum de FamíliaOs Sete GatinhosToda Nudez Será Castigada e Beijo no Asfalto. Além, claro, daquela que pode ser considerada sua obra-prima, o trabalho que alçou seu nome à estratosfera teatral – e que também foi um de seus únicos trabalhos a agradar o público de cara: Vestido de Noiva.

Cena da peça Vestido de Noiva - Foto: Divulgação/Obcom

E é curioso pensar que Nelson criou sua obra dramatúrgica – principalmente Vestido de Noiva – a partir de premissas, digamos, bem peculiares. Ele ficou espantado ao ver como uma peça de Raymundo Magalhães Jr., A Família Lerolero, fazia sucesso no Teatro Rival, na Cinelândia carioca. E pensou: “Por que não escrever teatro?”. Afinal, concluiu ele, fazer teatro seria uma tarefa mais rápida do que escrever um romance. “Sua primeira peça, A Mulher sem Pecado, escrita em meados de 1941 e encenada em 1942, deu-lhe os primeiros sinais de prestígio dentro do cenário teatral. O sucesso mesmo veio com Vestido de Noiva, que trazia, em matéria de teatro, uma renovação nunca vista em nossos palcos”, escreve Carla Risso. Encenada pelo grupo Os Comediantes, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio em 28 de dezembro de 1943 e contava a história, a partir de um texto fragmentado e ousado, das lembranças e delírios de uma mulher que agoniza durante uma cirurgia. A direção do polonês radicado no Brasil Ziembinski, além do texto inovador, renovou o palco brasileiro moderno e Nelson conheceu uma fulminante celebridade, segundo Sábato Magaldi. Mas ficou por aí. A partir de então, Nelson Rodrigues se tornou a bête noire da cultura brasileira. 

Muito por causa dos temas incômodos que Nelson passou a apresentar em seus trabalhos. Os censores iam à loucura com as peças – a começar com a seguinte a Vestido de NoivaÁlbum de Família, de 1945 -, o público ainda extremamente conservador não entendia nada – ou preferia entender tudo errado – e a crítica se dividia. “Com Vestido de Noiva, conheci o sucesso: com as peças seguintes, perdi-o para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um teatro que poderia chamar assim – ‘desagradável’”, afirmou ele, ainda em 1949. Ou, como disse a Lourenço Diaféria na entrevista para a Folha em 1979, se tornou um autor “abominável”. “Imaginem vocês um centauro que fosse metade cavalo e a outra metade também. Era esta a minha imagem para gregos e troianos, detestado para uns, tarado para outros, mal-amado para todos”, escreveu ele em uma crônica de 1970, colocando  o dedo na ferida aberta por seu fado. O incômodo de suas peças vararam as décadas mas, com o tempo, Nelson Rodrigues foi vendo, bem aos poucos, a gritaria contra sua suposta “obscenidade” diminuir – isso, mesmo com a adaptação errática de algumas de suas obras para o cinema nos anos 1970, com a predileção dos diretores em carregar nas tintas do erótico, quase pornográfico, deixando qualquer discussão ou crítica social mais aprofundada de lado. Ele mesmo se caracterizou, certa vez, como um menino a olhar o amor pelo buraco da fechadura. Só que esse amor que ele via – e descrevia – era impróprio para menores. Daí toda a celeuma que causou, toda a irritação cáustica que atraiu. “Havia em torno de minha pessoa, textos e atos, uma sólida e crudelíssima unanimidade”, afirmou ele certa vez. Mas, como ele mesmo escreveu, “toda unanimidade é burra”. Então…

Por isso é importante voltarmos a Magaldi. Foi ele quem melhor definiu o teatro de Nelson Rodrigues, inclusive categorizando-o. Assim, sua obra dramatúrgica, de acordo com o crítico, pode ser dividida em três fases: peças psicológicas, míticas e tragédias cariocas. Em todas, Nelson colocou suas características instigantes, incômodas e inovadoras – uma marca para todos os dramaturgos brasileiros que vieram depois dele, querendo-se ou não. “Por meio da linguagem, límpida, sucinta, vibrátil, e da capacidade de expor os desvãos menos confessáveis de suas personagens, Nelson abriu caminho para todos os dramaturgos surgidos nas últimas décadas”, escreveu Sábato Magaldi. E o crítico não deixava por menos: para ele, Nelson Rodrigues é o maior autor da história do teatro brasileiro.

O crítico de teatro Sábato Magaldi, em foto de 2000 – Foto: Osvaldo J. Santos/Arquivo Jornal da USP

“Sobrenatural de Almeida” e “Suzana Flag”

Se Nelson Rodrigues incomodava com seu teatro, o mesmo talvez não possamos dizer com suas crônicas – fossem elas de cunho mais cotidiano, social, ou as de futebol. Afinal, mesmo com todo o trabalho que seu teatro exigia, Nelson nunca deixou de ser jornalista – precisava pagar as contas, não é?  Ele começou como repórter de polícia em O Globo, a convite de Roberto Marinho, logo depois que seu pai morreu. Passeou por várias editorias no jornal, mas começou a namorar com a crônica quando deixou o diário criado por Irineu Marinho e migrou para O Jornal, de Assis Chateaubriand, em 1945. Ali, passou a escrever folhetins e crônicas sob o pseudônimo de “Suzana Flag”, até ser convidado por Samuel Wainer, em 1951, para assumir uma coluna diária em um novo jornal que ele estava criando, chamado Última Hora. A coluna, misto de crônica e conto, chamava-se “A vida como ela é…” e foi a grande fonte onde Nelson bebeu para encontrar as histórias da vida suburbana carioca e que inspiraram muitos dos personagens que zanzariam, angustiados, pelos palcos em suas peças. No teatro, ele continuou sendo jornalista – um jornalista de fatos terríveis.

Mas foi nas crônicas sobre futebol – ou com o futebol como metáfora para discutir a sociedade brasileira – que Nelson encontrou seu filão mais rico e versátil – e menos incômodo para os leitores mais sensíveis. Afinal, o máximo que ele poderia fazer seria desagradar algum torcedor rubro-negro diante dos elogios hiperbólicos – e bem rodriguianos – de uma vitória de seu tricolor carioca em um Fla x Flu. Talvez nem isso: Nelson Rodrigues, com sua visão característica e quase apocalíptica, já dizia que todo mundo, pelo menos uma vez na vida, tinha sido rubro-negro e que o Fla x Flu havia surgido “40 minutos antes do nada”.

Nelson começou a escrever sobre futebol na revista Manchete Esportiva, onde também escrevia seu irmão Mário Filho – este, também dono do carioca Jornal dos Sports, rubro-negro discreto e defensor ferrenho da construção de um estádio municipal no Rio de Janeiro para a Copa do Mundo de 1950. O estádio foi erguido e, para quem (ainda) não sabe, o nome oficial do Maracanã é “Estádio Mário Filho”. Mas voltando a Nelson Rodrigues: foi nas crônicas – principalmente as esportivas – na revista da editora Bloch e, mais tarde, em O Globo que surgiram personagens inesquecíveis como o “Sobrenatural de Almeida” – que dava as caras quando um gol (principalmente do Fluminense) não saía de maneira alguma -, a “grã-fina de narinas de cadáver”, que não fazia ideia de como se jogava futebol; a “vizinha gorda e patusca”, sempre com uma opinião a dar, por mais equivocada que fosse; os “idiotas da objetividade” (autoexplicativo); a “estagiária de calcanhar sujo”, estudante de Jornalismo; o “padre de passeata”, uma crítica aos religiosos envolvidos com política; e a “cabra vadia”, única testemunha das entrevistas imaginárias que o autor fazia. Isso, para ficarmos só em alguns rápidos exemplos, que davam tanto a ideia da criatividade de Nelson quanto de sua postura muitas vezes conservadora e reacionária – sua visão favorável à ditadura militar só sofreu uma metamorfose quando seu filho, Nelsinho, foi preso.

Nelson Rodrigues em protesto de artistas contra a ditadura militar - Foto: Domínio público/Arquivo Nacional

Nelson Rodrigues era prolífico, trabalhava compulsivamente, mesmo contrariando ordens médicas e não sossegava. Mas tinha o condão de entender o Brasil sem nunca ter passado nem perto das ciências sociais. Mas ele tentava entender, dissecar e mostrar a alma brasileira, mesmo que de um jeito extremamente peculiar e, para muitos, questionável e carregado nos tons. Mas, ainda assim, único. Foi dele a expressão redentora quando da vitória da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1958, ao afirmar que o País estava deixando de lado seu “complexo de vira-latas”.

Lá se vão 40 anos que Nelson Rodrigues morreu, e nesses tempos de pandemia, negacionismos e terras-planas, nos vemos às voltas com questões ao mesmo tempo incômodas e improváveis, como que criadas por mais um personagem rodriguiano, o “quadrúpede de 28 patas”, aquele sujeito que se proclama de bom grado ignorante, um “Narciso às avessas que trata a própria imagem a pontapés”. A vida continua sendo. 


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