O caso Olga Benário Prestes: o simbolismo de um pedido de perdão

Por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 05/09/2022 - Publicado há 2 anos

O caso Olga Benário – como têm demonstrado dezenas de estudos publicados por pesquisadores nas áreas do Direito, da História Social e Política do Brasil Contemporâneo – deve ser interpretado como a ponta de um iceberg, simbolicamente identificado como um monumento frio que se mantem amparado pela “memória da injustiça”. Essa imagem, além de nos alertar para os perigos de um programa de Estado calcado na intolerância, serve também como um antídoto à repetição da barbárie.

Penso que este recurso estilístico – o da metáfora do iceberg enquanto uma figura de linguagem – é adequado para retomarmos as imagens das vítimas esquecidas do Holocausto. Refiro-me à necessidade emergencial do governo brasileiro reconhecer a sua cumplicidade com a violência genocida praticada pela Alemanha nazista entre 1933-1945. Meu apelo vai de encontro ao pronunciamento da ministra Cármen Lúcia que, em 19 de agosto passado, durante evento promovido pelo Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, sugeriu que o Supremo Tribunal Federal peça perdão pela extradição de Maria Prestes (Olga Benário). Esta herança tem suas raízes em um passado não muito longínquo, assentado nas posturas fascistas do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), cujo programa anticomunista e antissemita fez milhares de vítimas. Portanto, o caso Olga Benário não deve ser interpretado como um ato isolado. Uma sequência de fatos comprova as práticas “antis” contra judeus, ciganos e comunistas, cidadãos indesejados pelo regime.

Abria-se assim a temporada de “caça às bruxas” comandada por Filinto Müller, chefe da polícia política brasileira. Em março de 1936, já havia sido decretado o estado de guerra no País para combater o comunismo e preparar a campanha sucessória, que deveria garantir a continuidade de Vargas no poder. Estava em plena gestação o golpe de Estado que implantaria a ditadura no Brasil, sob a alegação de que os comunistas ameaçavam a ordem social e a segurança nacional. Com a colaboração de Muniz de Aragão, embaixador brasileiro na Alemanha, assim como da Gestapo e dos serviços de inteligência do Terceiro Reich, Filinto Müller conseguiu descobrir a verdadeira identidade de Olga.

Em setembro de 1936, a varredura do “perigo vermelho” culminou com a prisão de duas jovens militantes comunistas, alemãs e judias: Olga Benário (grávida de sete meses) e Elise Saborovsky Ewert (a “Sabo”). Com elas foi preso e torturado Arthur Ewert, codinome de Harry Berger, militante comunista, esposo de “Sabo”. Olga e Elise foram deportadas para a Alemanha, onde foram assassinadas nos campos de concentração de Bernburg e Ravensbrüch, respectivamente. Berger, condenado a 13 anos de prisão, somente conseguiu retornar à Alemanha em 1947. Mentalmente devastado pelos maus-tratos sofridos na prisão, passou o resto de sua vida num hospital psiquiátrico. Nesse interregno, em 27 de novembro de 1936, Olga Benário dava à luz à Anita Leocádia Prestes, na prisão de mulheres da Gestapo, em Berlim, onde, duas décadas antes, esteve reclusa Rosa de Luxemburgo.

Numa sequência de ações antissemitas, o Itamaraty emitia em 25 de maio de 1937 a Ordem de Serviço n. 26, antecipando o teor antissemita da Circular Secreta n. 1.127, assinada em junho. Proibia-se assim a concessão de vistos aos judeus que fugiam da violência nazista, reafirmando o colaboracionismo secreto do Brasil com o programa antissemita do Estado alemão. Na sequência, após o golpe de 10 de novembro de 1937, Vargas instituiria o Estado Novo inspirado em paradigmas fascistas.

A prisão e deportação de Olga Benário continua sendo um dos mais graves erros do Judiciário brasileiro, envenenado pelo antissemitismo e pela xenofobia que regiam o Estado Novo. O ato concretizou-se em 1936, quando a Suprema Corte – nome atribuído ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição Brasileira de 1934 – negou o pedido de Habeas Corpus 26.155 protocolado pelo advogado Heitor Lima em favor de Maria Prestes (Olga). Ao ignorar os direitos humanos fundamentais a Olga Benário, a Suprema Corte negava-lhe também o direito à vida, pois com a sua deportação seu destino estava selado: dificilmente uma judia comunista, alemã, escaparia de uma ação da Gestapo.

Outros tantos casos continuam acobertados pelas versões impostas pela história oficial, que procura manter viva a memória dos seus falsos heróis. Tais constatações nos remetem ao livro Assassinos da Memória, de Vidal-Naquet, editado contra aqueles que negam ou minimizam a dimensão do Holocausto perpetrado pela Alemanha nazista e países colaboracionistas. Ainda que tardia, devemos investir por uma justiça em prol da figura simbólica de Olga Benário que clama por este reconhecimento moral e político.


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