Nestes dias de vitória de Trump nas eleições norte-americanas, vieram-me à lembrança as cenas finais do filme O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, em que James Ryan e família visitam um dos cemitérios onde estão enterrados os soldados norte-americanos mortos na Segunda Guerra Mundial. Ryan foi visitar o túmulo do Capitão Miler, que comandara o pelotão enviado, através dos campos de batalha, para retirá-lo do front, pois três de seus irmãos já haviam sido mortos desde que os Aliados haviam invadido a Europa, até então conquistada e vilipendiada pelos nazistas do regime germânico de Hitler.
É uma cena simbólica de homenagem aos esforços norte-americanos para, junto aos aliados ingleses, franceses, russos e outros, liberar a Europa do domínio nazista nos longínquos anos 1940, vitória cujo 60° aniversário foi recentemente celebrado com a presença do ainda presidente norte-americano Joe Biden.
Pois bem, seu sucessor recém- eleito, Donald Trump, na verdade reeleito, promete alterar o equilíbrio mundial arduamente construído desde então, com inúmeras marchas e contramarchas, guerras localizadas, como a do Vietnã, o surgimento e a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e que hoje reúne, de um lado, o bloco ocidental, que soma os EUA e os países da Otan e vários outros e, de outro, o socialista e regimes afins, liderado pela hoje poderosa China, que tomou a proeminência da Rússia e agrega alguns países do Oriente Médio.
Sob o lema “America first”, que também guiou seu primeiro mandato, Trump promete estressar suas relações com os europeus e rever vários tratados e acordos internacionais. Trata-se de uma perspectiva que deixa os mandatários de todo o mundo em suspense, embora não o declarem publicamente, preocupados com o andamento da carruagem das relações internacionais nos próximos quatro anos, pelo menos.
Quais serão os reflexos do lema “America first”, dentro do país que os norte-americanos insistem em chamar de “America”, relevando que ela denomina três continentes (do Norte, Central e do Sul) que se estendem do Alasca, nos EUA, ao Cabo Horn, na Argentina? Trump ganhou com cerca de 51% dos votos – quase 75 milhões na eleição direta e 312 sobre 226 para Kamala no anacrônico Colégio Eleitoral que define o vencedor do pleito nos EUA. Kamala por sua vez teve 71,2 milhões de votos, algo como 48% dos sufrágios. Trump arrastou para si a preferência dos eleitores masculinos, inclusive dos hispânicos, dos jovens e de negros. Acima de tudo, pesou contra o governo e a candidata democrata o patamar dos preços, que subiram muito quando a inflação bateu nos 9% ao ano (consequência da crise do coronavírus) neste mandato de Biden, mas não recuaram junto com os índices que apontavam sua descida para apenas 3% às vésperas da eleição.
Quanto terá pesado, também, o fato de Kamala Harris ser mulher e negra? Ser mulher não foi um fator que obstaculizou Hillary Clinton no seu embate com Trump, vencendo-o por três milhões de votos na eleição popular, embora tenha perdido no Colégio Eleitoral, em 2016. No caso de Kamala, o ex-presidente Barack Obama chegou a fazer um apelo aos homens negros para que nela votassem em um comício da campanha na Pennsylvania. Não terá funcionado?
O fato é que as principais pesquisas eleitorais publicadas antes do pleito apontavam para um empate ou ligeira vantagem para um dos candidatos, e o resultado final foi muito mais favorável a Donald Trump, como mostram os mapas dos EUA com as cores dos partidos vencedores que espelham as escolhas dos norte-americanos, nos quais o vermelho dos republicanos predomina.
O próximo passo das eleições nos EUA é a confirmação do resultado do Colégio Eleitoral, em sessão no Congresso, que deverá ocorrer normalmente, uma vez que Biden e Kamala já reconheceram a vitória de Trump – ao contrário do que ocorreu na vitória de Biden em 2020, em que o então presidente Trump, seu antecessor, incentivou uma turba de republicanos a invadir o Capitólio, onde normalmente se dá publicidade ao resultado do Colégio Eleitoral, provocando um quebra-quebra que resultou inclusive em mortes.
Especula-se que, mais experiente em relação à máquina do governo, contando com maioria nas duas casas do Congresso, e escolhendo uma equipe de assessores mais dobrável aos seus desejos, ao contrário do que no mandato anterior, Trump se dará maior liberdade para ultrapassar limites legais que amarram a atuação presidencial nos EUA. Não é uma perspectiva animadora.
Afinal, por que comecei este artigo lembrando a cena de um filme da Segunda Guerra Mundial se o objetivo era falar da recente reeleição de Donald Trump? O objetivo foi trazer um pequeno insight sobre o papel que os EUA, apesar de sua tradição imperialista e dos conflitos aos quais dá apoio militar, exerce na preservação da cultura, da liberdade e do modo de vida ocidental, com todas as suas qualidades e defeitos.
Aquele filme – O Resgate do Soldado Ryan – é dos mais significativos dos que imortalizaram a vitória militar dos Aliados sobre o nazismo e o fascismo. Outro foi o Mais Longo dos Dias, também sobre a invasão militar da Europa na Segunda Guerra Mundial, dos tempos da minha juventude, que também romanceava as batalhas da retomada do Velho Continente, em 1945. Retrataram um dos momentos fundamentais na manutenção da democracia ocidental que viu também o surgimento do, hoje desaparecido, bloco soviético liderado pela Rússia.
Será que um governo presidido por Donald Trump estará à altura das tradições da história dos EUA? Usei as militares, retratadas em filmes, como uma das tradições (nem sempre justas), mas me preocupo principalmente com as econômicas, sociais e políticas que influenciam o dia a dia dos norte-americanos e repercutem, em maior ou menor grau, em todo o mundo. A experiência do primeiro mandato e a sua campanha para vencer esta última eleição não apontam nessa direção.
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