A política externa do governo Lula

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 05/07/2023 - Publicado há 10 meses

Em menos de seis meses de mandato, o presidente da República fez sete viagens ao exterior. Se sua decisão de reintroduzir o país nas relações internacionais – após quatro anos de uma total ausência – foi correta, sua implementação, contudo, vem deixando a desejar. Um dia após sua chegada a Paris para a cúpula com foco ambiental, por exemplo, ele foi capa do jornal francês Liberation que o apontou como “a decepção”, em sua manchete.

Após afirmar que Lula vem agindo como “um falso amigo do Ocidente”, o jornal o classificou como “uma miragem ou uma imagem embaçada”, por valorizar a Rússia e a China, apesar do empenho dos Estados Unidos em apoiá-lo quando seu sucessor, temendo a derrota no pleito de outubro, passou a questionar a lisura do sistema eleitoral brasileiro. Vários jornais já lembraram que o presidente confunde interesses pessoais e políticos com interesses nacionais, como no caso do uso do BNDES para financiar obras em alguns países. Também têm apontado que ele vê o mundo atual com o olhar voltado ao passado, revelando-se incapaz de compreender a natureza dos conflitos geopolíticos mundiais e de conhecer os pontos fortes e as fragilidades do país no âmbito da geoeconomia.

Além disso, se por um lado foi bem recebido quando anunciou uma mudança de direção nas questões ambientais internas e externas e a decisão de sediar em Belém a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, por outro há indícios de que Lula não teria compreendido com a devida argúcia o impacto, na segurança internacional, das mudanças causadas pela pandemia nas cadeias globais de valor e no campo da energia.

A exemplo do que ocorre na economia, onde falta um direcionamento claro para onde ela vai, os objetivos da política externa do governo também não são de todo claros. Se de um lado Lula foi feliz ao tratar do meio ambiente e das mudanças climáticas, ainda que não tenha proposto metas para redução de emissões de gases de efeito estufa e a normativização do mercado de carbono, de outro a proposta de paz no caso da invasão da Ucrania ignorou a responsabilidade da Rússia. Além disso, por falar compulsivamente sem medir as consequências do que diz, sua saudação ao autocrata Nicolás Maduro durante a reunião de cúpula dos países da América do Sul, afirmando que existe um “preconceito” em relação à política venezuelana que envolveria visões negativas sobre a democracia naquele país, foi contestada pelos presidentes do Uruguai, um conservador, e do Chile, um esquerdista. Ambos afirmaram que “é impossível fazer vista grossa para as violações de direitos humanos na Venezuela”.

Acima de tudo, o governo parece não ter uma visão estratégica de médio e longo prazo voltada ao enfrentamento das mudanças globais. Sobram ideologia e lugares comuns, mas falta uma política externa formulada com objetivos mais consistentes, fundada na premissa de que ela pertence ao país em sua totalidade e implementada com base em um princípio organizador e um plano articulado de ação. Como dizia no início dos anos de 1960 o embaixador João Augusto de Araújo Castro, quando ocupou a Secretaria Geral Adjunta para Organizações Internacionais do Itamaraty, a política externa não deveria ser entendida como instrumento cativo de qualquer uma das correntes partidárias que disputam o poder. “Nenhuma diplomacia será válida, viável e até mesmo respeitável se não for representativa do país e do povo que a desenvolvem”, afirmava, ao tratar das interações entre política doméstica e política exterior. E advertia: “uma política externa, para ser verdadeiramente, tem de ser independente das pressões da imaturidade e do radicalismo”.

Em relatório que enviou em setembro de 1961 ao ministro das Relações Exteriores, San Thiago Dantas, a quem sucederia em 1963, Castro, que desprezava determinismos e simplificações da realidade, fez afirmações que podem iluminar o atual governo. Partindo da ideia de que no campo internacional todo poder é “fluído” por implicar força militar e desenvolvimento econômico, e temendo políticas externas formuladas “em bases precárias e contraditórias”, ele enfatizou a necessidade de o Itamaraty ter “a coragem de fazer o mínimo, em bases corretas”. Advertiu que “não é com golpes de teatro que se aumenta o poder de barganha do país” no cenário internacional. E disse que queria “a política mais independente para o Brasil”, mas que não almejava que, “por mero amor à independência”, o Itamaraty fizesse “coisas que politicamente” seriam “inconvenientes”.

O mundo, à época em que Araújo Castro dirigiu o Itamaraty e depois foi embaixador em Washington era o da guerra fria – um mundo bipolarizado em cujo âmbito países que não queriam ficar sujeitos a um ou outro bloco se esforçavam para manter ao máximo sua liberdade de movimento, com o objetivo de contribuir para a paz. Seis décadas depois, o mundo é outro, marcado pelos fluxos de informação e imigração, pela interconectividade das relações mundiais, pela globalização dos mercados, pelo impacto econômico da pandemia, pelas crises de governança global e por novas fontes de tensões geopolíticas. Por isso, as respostas que Castro deu aos problemas de sua época em matéria de paz, desarmamento, descolonização e desenvolvimento estão superadas.

Contudo, não são suas propostas substantivas em matéria de política externa que merecem ser lembradas. É, isto sim, a maneira como pensava e analisava partir de quatro itens: disciplinar, coordenar, suavizar e metodizar. Ou seja, é a técnica apurada como formulava um plano de ação a partir da definição de uma linha política em função e dentro do contexto da política mundial, por um lado, e de um diagnóstico feito com base na natureza fria dos jogos de poder do qual o país participava, por outro. Em síntese, é o realismo com que interpretava os interesses nacionais a partir dos problemas, das contingências e das dinâmicas do poder no cenário mundial.

É isso o que falta ao atual governo para recuperar a credibilidade internacional do país em espaços multilaterais que foi perdida pelo irresponsável governo que o antecedeu. Quanto mais se atrasar em suprir essa carência, mais rapidamente o presidente dizimará o capital político com que assumiu o governo. E mais argumentos dará quem a quem o vem criticando por ter se tornado uma figura tão obcecada consigo mesmo, a ponto de já não estar conseguindo mais interpretar a realidade.

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