Em maio de 2016 viajei para a Noruega com a minha esposa e fizemos um passeio de trem por algumas montanhas. Em um dado momento, o trem parou sobre uma ponte, bem ao lado de uma grande cachoeira que corria caudalosa pelo flanco da montanha, a poucos metros de distância da plataforma. Dezenas de turistas desceram apressados, máquinas fotográficas e celulares em mãos, para contemplar aquela maravilha da natureza. Foi aí que levei um susto: praticamente todos esses turistas, com pouquíssimas exceções, caminharam até a beira do mirante, viraram de costas para a cachoeira, fizeram uma selfie e voltaram para o trem, sem nem olhar para o que estava a sua frente. Não contemplaram coisa nenhuma; fizeram um registro para as redes sociais, olharam a cachoeira pela tela do celular — para ver se tinham saído bem na foto — e retornaram aos seus assentos — para logo compartilhar as fotos nas redes sociais, obviamente.
Para alguém que adora contemplar a natureza, como eu, foi uma visão desconcertante — ainda que não fosse surpreendente àquela altura do campeonato, em que as redes sociais já dominavam amplamente o comportamento das pessoas. Lembrei imediatamente de um artigo que havia lido no meu primeiro ano de graduação em jornalismo, na Western Michigan University, em que o autor (infelizmente não me lembro do nome) argumentava que a “febre da fotografia” estava arruinando a relação dos seres humanos com a natureza. (E olha que naquela época, 1995, ainda não existiam smartphones nem redes sociais; eu ainda escrevia cartas e mandava fotos pelo correio para me comunicar com a família no Brasil.)
Segundo esse autor, as pessoas deveriam viajar sem máquinas fotográficas, para ver e sentir as coisas “a olho nu”, e não através de uma lente (ou de uma tela digital). Era um posicionamento radical, mas que me fez refletir sobre o assunto e confesso que, por algum tempo, peguei uma certa birra de fotografia. Não parei de fotografar, mas passei a prestar muito mais atenção nas coisas — olhar, cheirar e escutar a paisagem, sem pressa, para só depois, quem sabe, fazer uma fotinho de recordação. Foi uma experiência enriquecedora; muitas das minhas lembranças mais vívidas como mergulhador, por exemplo, referem-se a encontros inesperados com a vida marinha que ocorreram sem a presença de uma câmera: o tête-à-tête com um mero em Noronha, o cara-a-cara com uma tartaruga gigante em Arraial do Cabo, o tubarão que navegava sobre os corais abaixo de mim em Abrolhos. Memórias incríveis, guardadas apenas nos meus neurônios.
Olhando em retrospecto, essa desconexão com a realidade, muito frequentemente intensificada pelas mídias digitais, talvez seja um ingrediente importante desse caldo corrosivo de desinformação e desconhecimento que esgarça o tecido social, distancia as pessoas, gera solidão e ameaça a nossa governança democrática — não apenas no Brasil, mas em vários países. As pessoas têm muitas fotos para mostrar, mas poucas histórias para contar. Vivem de costas para a cachoeira, contentando-se em ver uma foto dela no Instagram. Comem frango todo dia, mas parece que nunca viram uma galinha. Passam o show inteiro filmando o palco com o celular, em vez de dançar. Acreditam em qualquer “notícia” que recebem pelo celular, sem parar nem dois segundos para pensar se aquilo faz sentido ou condiz com a realidade.
Transpondo a discussão para o jornalismo, essa desconexão com o mundo real abre portas enormes para a propagação de notícias falsas, teorias conspiratórias e discursos de ódio disfarçados de moralidade. Fica fácil pintar uma “realidade alternativa” quando as pessoas perdem a capacidade de distinguir entre realidade e ficção, quando só conhecem o mundo pela tela do celular. Nas redes sociais todo mundo é feliz, ninguém tem rugas nem manchas na pele e, dependendo da bolha digital que você habita, desmatamento não existe, vacina faz mal e ivermectina cura covid. Cada um acredita no que quiser, não é mesmo? Mas a realidade é a realidade, mesmo que você não queira acreditar nela. Talvez por isso seja tão difícil hoje sensibilizar as pessoas para a importância da natureza e para o sofrimento alheio, entre outras coisas.
A única maneira de se aproximar da verdade dos fatos é por meio de informações confiáveis, que é o que a boa ciência e o bom jornalismo buscam fornecer à sociedade. Nesse sentido, a cachoeira da Noruega serve como uma analogia para muita coisa. Nada de errado em tirar milhões de selfies e se divertir nas redes sociais — eu também faço isso, ainda que em menor escala —, mas é importante não se deixar engolir pelo mundo virtual e perder contato com a realidade de carne e osso.
Lembrei disso mais uma vez no início deste mês, ao fazer uma viagem para a região dos Abrolhos, no sul da Bahia, para uma reportagem especial envolvendo baleias jubartes (a ser publicada em breve no Jornal da USP, atenção). Passei dois dias embarcado com pesquisadores e cruzamos com um bocado de baleias. Nos primeiros encontros, minha prioridade foi fotografar e filmar o trabalho de pesquisa para a reportagem. Mas chegou um momento em que coloquei a câmera de lado e falei: “Agora eu vou só olhar”. Foi só então que, realmente, eu vi as baleias pela primeira vez.