A batata milagrosa da Dona Ruth

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 14/09/2022 - Publicado há 2 anos

Deixa colocar de uma forma clara: este texto não se refere a uma especialidade de um chef, um prato diferente para você impressionar seus amigos na cozinha. Não se trata de uma concorrência que eu queira fazer com as obras, aliás maravilhosas, da Rita Lobo. Quero apenas lidar com uma personagem marcante que muito me ensinou na vida, inclusive, me provocou e instigou a pensar, mesmo que ela não estivesse tão atenta a isso.

Feito o esclarecimento, vou falar sobre a personagem: a ilustre Dona Ruth. Ela tinha suas famosas e inesquecíveis enxaquecas. Famosas e inesquecíveis porque ela achava que, dado o sofrimento, as pessoas deveriam sempre ajudá-la. Como boa filha de Ribeirão Bonito, cidade do country side do Estado de São Paulo, uma das grandes certezas da vida era que um dado tipo de batata, ao ser cortada e colocada na fronte com um lenço não muito apertado, eliminaria a dor de cabeça, depois de um certo tempo.

Evidentemente que não era qualquer batata (nunca é tão simples!) e era uma dureza encontrar a dita cuja, no tamanho, cor e umidade. De uma forma ou de outra a batata especial era encontrada e, do ponto de vista da Dona Ruth, o problema estaria próximo de ser resolvido.

Anos depois da sua morte, conversando com um médico, perguntei se aquilo fazia sentido, e ele respondeu sem mesmo olhar para mim: um pedaço de ferro frio faria o mesmo efeito! Puxa, eu poderia ter feito a pergunta antes e teria a resposta para mudar as convicções da Dona Ruth! Verdade, mas eu não tive essa força, e ela se foi sem ter uma nova lógica, essa sim, verdadeira de fato (será?). Tive um sentimento de grande ambiguidade: pesaroso e envergonhado pela minha falta de interesse em ampliar o leque de oportunidades para a diminuição do sofrimento da Dona Ruth, e meio feliz por ela não saber da “verdade” no final da vida.

Quem tem que lidar com a inovação pensa que trazer uma coisa nova nem sempre proporciona benefício, alívio e eliminação de todos os problemas. A partir da modelagem e explicitação de evidências podemos legitimar uma nova lógica e é assim que nos movemos. No caso dela essa nova lógica teria várias consequências, inclusive para aquele que teria ensinado essa fórmula mágica para evitar a dor e ele perderia o prestígio e a confiabilidade de um ensinamento supostamente útil propagado durante muito tempo. Quando ela aprendeu o segredo da batata alguém deixou de transmitir o construto adequado. Se, no lugar de ensinar que a batata era o remédio, deveria ter transmitido o conceito de que o elemento frio era o elemento importante. Essa pessoa sabia disso ou também recebeu o construto inadequado e repassou? Ainda assim, ele teria sido útil, mesmo sendo um construto não adequado, mas próximo do que hoje entendemos como adequado?

Ficou evidente que aqui temos um problema metodológico, no sentido mais amplo. Quem repassou o conhecimento? Ele seria aplicável a qual contexto? Que limitações esse conhecimento deveria ter? Que alternativas poderia disponibilizar para os sofredores? A evolução do conhecimento teria apontado para outra referência, além da temperatura? Vai longe a lista dos elementos de reflexão da pesquisa.

Quem conhece as temperaturas de Ribeirão Bonito e as condições de vida da época de adolescência da Dona Ruth vai rapidamente entender que o contexto tem um peso importante nesse tema. O outro ponto importante nessa história é que aprendemos algo de alguém que pode não saber muito, mas ensina aquilo que tem, aquilo que sabe e acredita, sendo algo bem importante na vida das pessoas. É uma das formas de pensar na perspectiva heurística.

Eu não demorei muito para me perguntar se não estaria cometendo o mesmo equívoco em outro ramo do conhecimento ao deixar de fazer as perguntas corretas para os contextos vivenciados e evitar a metáfora da propagação da lógica da cura pela batata no lugar da cura pelo instrumento frio. Lembrei de várias pesquisas em que a relação causal baseada em proxies gerou situações de baixa credibilidade. Percebi que tinha vários exemplos e aceitei que o tempo ajuda muito a entender evolução, mas que o contexto da necessidade do conhecimento tem uma enorme influência sobre a importância do novo e a sua própria validade e alcance da utilização. Por mais que sejamos treinados, devemos ficar alertas para “as perguntas certas” para o direcionamento e identificação da geração dos novos conhecimentos.

Esqueci de comentar sobre outras certezas da Dona Ruth. Ela achava que o bilhete de loteria que iria acertar a vida dela era o bendito borboleta 13. Não vingou, embora a certeza fosse inabalável. Igual às certezas de alguns pesquisadores.


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