O negro, o índio e o ciborgue

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 22/02/2024 - Publicado há 3 meses

A primeira vez que ouvi esse título e suas proposições sugestivas foi numa mesa-redonda, coordenada por Artur Matuck, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pioneiro da arte-comunicação no Brasil, em 2000. Confessadamente, à época, a associação entre esses três sujeitos e as interações entre as questões que movem as populações negras, indígenas e os cyber(netics) – ou seja, os organismos dotados de inteligência artificial – me pareciam distantes, desconectadas e, no mínimo, exercício de reflexão meio delirante, mas não era… nunca foi e o tempo mostra as potencialidades desta convergência.

24 anos depois, quantas conexões são possíveis! Inúmeras. E, entre as possibilidades, merecem destaque as perspectivas de futuros para indígenas, negros e ciborgues e como essas visões, eventualmente utópicas, apresentam-se na produção das artes visuais. Muitas vezes, o suporte dessas imagens de futuros possíveis está no pensamento e nas ações que, neste instante, aquecem a discussão em universidades, museus e (por que não?) nos circuitos nacionais e internacionais das artes.

Convém lembrar que as projeções para o futuro, nessas subjetividades, quase nunca estão desprovidas de ancestralidade. Na essência, o pensamento indígena e o negro observam o amanhã, a partir de conhecimentos ancestrais. E, então, nessa discussão, onde entra o ciborgue? Historicamente, o ciborgue é uma figura híbrida (meio humano, meio máquina) que evoca questões ligadas à identidade, ao gênero, à sexualidade e ao poder. Na verdade, hoje, o ciborgue também se aproxima às metáforas que envolvem as relações com a inteligência artificial, os algoritmos, às conexões entre arte, tecnologia e ciência e, ainda, sugere como essas interações podem construir novas ações e intervir nos tempos vindouros.

Sobre a produção de artes visuais indígenas contemporâneas, o modo de ver e estar no mundo relaciona-se com os escritos de autores e filósofos, tais como Bruce Albert, Davi Kopenawa e Ailton Krenak. A queda do céu: palavra de um xamã yanomami, livro organizado, originalmente em francês, em 2010, por Albert a partir das conversas gravadas com o xamã Kopenawa, nos introduz as visões xamânicas e considerações etnográficas sobre o “mundo dos brancos”, questionando, sobretudo, os conceitos de progresso e desenvolvimento.

Já Ailton Krenak, em especial em Ideias para adiar o fim do mundo, com primeira edição em 2019, em português, assinala a necessidade de se encontrar o equilíbrio entre humanidade e natureza. Ao descrever o modo de ver e estar dos indígenas no mundo contemporâneo, o autor desconstrói o conceito de que a humanidade é algo separado da natureza – ideia motriz da modernidade e do modelo capitalista. Para ele, ser humano é ser natureza – e, assim, não há hierarquia entre os homens e outras formas de vida, propiciando justiça e sustentabilidade ao mundo.

As bases lançadas por Kopenawa e Krenak podem ser vistas nos trabalhos de Moara Tupinambá (Belém, 1983), Denilson Baniwa (Barcelos, 1984) e Gustavo Caboco (Curitiba, 1989), entre outros artistas visuais que usam a arte como estratégia de resistência, mesclando referências cosmológicas, visualidades, apropriações de cânones artísticos, linguagens e, singularmente, as tecnologias. Suas obras tensionam as narrativas hegemônicas sobre as representações indígenas; dão a ver as fissuras do discurso colonial; evidenciam e, às vezes, curam as feridas.

Conhecida como artista e ativista, Moara Tupinambá, por exemplo, tem fomentado intenso debate sobre a consciência indígena nas cidades e sobre os apagamentos da identidade dos povos originários pelo processo de colonização. A partir de diversas plataformas, sua pesquisa emprega referências do modernismo, de modo crítico, revelando o contrassenso. Por meio do uso das mídias sociais, tem ganho notoriedade no sistema da arte contemporânea. Sua série de fotomontagens retrata líderes indígenas, marcados por ancestralidade e memória. Colocados sobre uma profusão de imagens, em fundo cósmico, esses retratos descolam-se do tempo presente e nos deixam a sensação de futuro-ancestral.

Já Denilson Baniwa quer destruir a ideia persistente do indígena, quando romantizada, pueril e ingênua; quando evolucionista, o “selvagem preso na selva” – esses estereótipos reforçam a exclusão dos indígenas diante dos percursos históricos – como se as etnias não fossem plurais e não estivessem conectadas às tecnologias atuais. No seu processo criativo, por meio de múltiplas linguagens, Baniwa desmitifica o que é “ser indígena hoje”. Na obra Kaá, que integra o projeto Kwema (Amanhecer) e que participou da 35ª edição da Bienal de São Paulo, Coreografias do impossível, ele propôs uma plantação de milho do povo Guarani, com cerca de 250 m2 – o público acompanhou o crescimento do milharal e pôde observar o tempo da natureza. Para o artista, “amanhecer é entender que um novo dia surge após uma pesada noite (…)”.

Outro modo de lidar com os saberes e com as possibilidades de futuro pode ser visto na produção de Gustavo Caboco. Ele vive a identidade indígena nas palavras e gestos de sua mãe, Lucilene, que foi desterrada da comunidade Wapichana da terra indígena Canauanim (Roraima), aos 10 anos de idade. A obra processual de Caboco se dá no retorno à cultura indígena, no fortalecimento de suas raízes com a terra e com seus parentes, ecoando as vozes do povo Wapichana e dos entes a quem ele dedica escuta, como as plantas, as pedras, as serras, os céus e os rios.

Tal como Baniwa, Caboco coloca em pauta “ser indígena hoje”. Em entrevista, ele indica o engano na percepção do tempo: “Quando a gente fala de colonialidade, fala como algo de 1500, como se não acontecesse agora (…)”. A ação de situar os problemas de marginalização dos povos originários no tempo contemporâneo faz toda a diferença para a construção do devir. Seus saberes, assim como os da natureza, contam outras histórias.

No vídeo Recado do Bendegó (2018), exibido na 34ª Bienal de São Paulo, Faz escuro mas eu canto, Caboco tornou-se o interlocutor do meteorito Bendegó, que saiu das proximidades de Monte Santo (sertão baiano) para integrar o acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Durante a narrativa imaginária, a pedra revelou os processos de destruição que testemunhou ao longo da história até o incêndio do museu.

Até aqui foram pontuados três artistas visuais (mas há muitos outros), com percursos diversos, nos quais o diálogo entre passado, presente e futuro passa pela construção de saberes; que colocam em xeque os conceitos de desenvolvimento e progresso, tidos como base da modernidade, e que não se furtam ao emprego de tecnologias para a extroversão das culturas e subjetividades indígenas. Resta, então, ver a perspectiva de futuro do nosso primeiro sujeito: o negro.

Nesse ponto, evocam-se os estudos voltados ao afrofuturismo – exercido nas práticas artísticas, científicas e espirituais da diáspora africana. Apesar do nome “afrofuturismo” ser atribuído a Mark Dery, crítico cultural norte-americano, em 1993, e difundido por Alondra Nelson, professora na Escola de Ciências Sociais do Instituto de Estudos Avançados (Princeton), produções literárias, musicais, cinematográficas e diversas outras manifestações artísticas já empregavam a tecno-cultura e a ficção científica para imaginar futuros negros desde os anos de 1950.

Para a comunidade africana e diaspórica, a estética afrofuturista dispõe a existência para além da centralidade europeia e da ontológica “violência branca”, e aqui a visão do ciborgue fica mais aparente – isto porque a imagem do homem-negro-máquina foi construída e disseminada pela cultura pop, fundamentalmente pelo cinema e pelos quadrinhos – quem não se lembra de Pantera Negra, Wakanda e o Ciborgue da DC Comics? A visão do rei, do super-herói e dos futuros utópicos e distópicos se justapõe nessas produções artístico-culturais e redime do passado de subalternidade; eles nascem da dinâmica imaginária para se tornarem superação da lógica colonial.

No Brasil, o afrofuturismo tornou-se instrumento de resistência, quando age contra uma sociedade excludente, racista e violenta – traduz-se em esforço para colocar em evidência autorias negras e suas potencialidades. Nas universidades e instituições culturais, tem crescido o interesse pelo tema e são questionadas teorias tradicionais que tratam a modernidade como se fosse inseparável da razão iluminista, da percepção de história única, progressiva e cumulativa. E, mais, há intensa crítica no desenvolvimento como sinônimo de riqueza, de hierarquia econômica e consumo de recursos naturais sem preocupações voltadas à sustentabilidade.

Outro aspecto de destaque, dentro da produção afrofuturista, é a recuperação de saberes ancestrais para dialogar com o tempo presente. Assim, alguns teóricos centrados no afrofuturismo propõem uma forma de “modernidade africana transnacional”, ou ainda, a ideia de tempo e múltiplas modernidades – de fato, não seria mais um futuro tão somente eurocêntrico.

O debate é denso. Sabe-se que a visão afrofuturista tem suas limitações. Há perguntas complexas: “como escapar do olhar branco ocidental?”. Ou ainda, “como imaginar uma nação africana sem a influência dos colonizadores europeus?”. Alguns estudiosos veem o termo como elitizante e/ou “guetizante”; observam como fenômeno que agrega uma determinada elite, arriscando-se à reprodução de um discurso neocolonial voltado ao soft power, surgindo daí derivações tais como o africanofuturismo e o afropolitanismo – o que podemos dizer é que as discussões teóricas são veementes.

No campo das artes visuais, estão as produções de Jean-Michel Basquiat (Brooklin, 1960-1987) e de Rubem Valentim (Salvador, 1922 – São Paulo, 1991), que são colocadas, por alguns críticos, como protofuturistas. No vocabulário de Basquiat, coexistem símbolos de civilizações remotas e citações modernas – presente, passado e futuro se justapõem – a compreensão de história está em jogo. Já na trajetória de Valentim estão os símbolos míticos aliados aos elementos geométricos: num primeiro momento, os signos litúrgicos afro-brasileiros aparecem agrupados sobre o plano, com cores puras e chapadas. Num segundo momento, surge a experiência tridimensional, acompanhando a distinção entre figura e fundo – a figura “pula” do plano. Esses objetos, gradativamente, tornam-se “altares”, como o Templo de Oxalá, obra apresentada na 16ª Bienal de São Paulo (1977) – aqui, Valentim nos conta de um tempo que não é o do relógio, mas é o do espiritual.

Na atualidade, mencione-se os repertórios de No Martins (São Paulo, 1987) e Gustavo Nazareno (Três Pontas, 1994) – embora não sejam observadas referências diretas ao afrofuturismo nas suas produções, esses artistas, dentro de suas visualidades, abordam as questões sociais e raciais; usam múltiplos meios e linguagens e, acima de tudo, sobrepõem temporalidades.

No Martins, por exemplo, emprega a pintura, a performance e a experimentação com objetos para abordar o negro no cotidiano urbano, interrogando o territorialismo, o acesso, o racismo e o encarceramento da população negra. Gustavo Nazareno dedica suas obras à diáspora africana na religiosidade. Os orixás do Candomblé e da Umbanda surgem em pinturas, desenhos em óleo e carvão – muitas de suas imagens partem de fábulas criadas pelo próprio artista. Em 2019, Nazareno concebeu a série de desenhos em carvão denominada Bará, como uma cerimônia em forma de oferenda para uma qualidade de Exu – Elegbara.

Indubitavelmente, com a explosão das redes sociais, entre os anos de 2010 e 2020, a estética afrofuturista parece ter tomado a produção de jovens criadores brasileiros. O terreno cibernético tornou-se alternativa para artistas visuais periféricos – visto como um furo na bolha das galerias de arte e museus, que apesar de em 2023 terem recebido um número grande de exposições de autores negros e indígenas, ainda são espaços majoritariamente brancos e elitistas.

E, assim, autores negros e indígenas revivem o passado, discutem o presente e projetam o devir. A ciência, a tecnologia, a inteligência artificial ou, ainda, tudo isso centrado na metáfora do ciborgue – que aqui neste texto é pensada como o elo entre o humano e a tecnologia – têm sido instrumentos para essas populações. Na arte contemporânea, esses criadores têm refletido sobre a relação entre humanos, máquinas e a natureza. Eles sabem que os algoritmos, por exemplo, podem perpetuar a exclusão, mas também sabem que o seu domínio e uso podem conectá-los com a ancestralidade e criar futuros possíveis.

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