Agora, na edição de 2024, lá está de novo o tropicalista mor, levado à prova por via indireta, no trecho de uma saborosa crônica de Tati Bernardi. No texto, a autora abusa da metalinguagem, contando o quanto a aflige perceber, após a publicação de uma crônica sua, que “escapuliu a palavra ‘coisa’ em alguma frase”. Daí por diante, a “coisa” só cresce: para redimir o termo, supostamente reprovável por ser vago e impreciso, a cronista não apenas relata momentos de ternura em que usou o vocábulo (“O primeiro banho da minha filha foi embalado pela minha voz dizendo, ao fundo, ‘cuidado, ela ainda é uma coisinha tão pequena’”), como também recorre a Caetano, listando belos versos do poeta de Santo Amaro da Purificação (como o que diz “alguma coisa acontece no meu coração”, ou ainda aquele “mexe qualquer coisa dentro doida”). O texto é lindo, os versos de Caetano igualmente, mas o aproveitamento na prova poderia ser melhor.
“Esse papo já tá qualquer coisa”
Com base no excerto da crônica, o elaborador do item explora um tema extremamente relevante para a compreensão de textos: a progressão textual. Grosso modo, podemos dizer que a progressão é o que faz de um texto realmente um texto, não um amontoado de palavras. Dessa forma, pode-se dizer que, quando o leitor percebe que há uma unidade e uma continuidade de sentido ao longo das palavras, das frases, dos parágrafos, ele de fato é capaz de empreender a leitura proficiente de um texto.
No caso dessa questão, o enunciado pede que o leitor identifique o “recurso utilizado na progressão textual para garantir a unidade temática dessa crônica”. Nota-se que o grau de abstração exigido é elevado, pois, mais do que reconhecer a progressão temática, espera-se que os/as concluintes do Ensino Médio (em tese, jovens de aproximadamente 17 anos) sejam capazes de identificar o recurso que a produz.
Entre as alternativas, duas causaram certa confusão. A primeira delas afirma que a progressão se deve à “intertextualidade, marcada pela citação de versos de letras de canções”. Em outra, diz-se que o recurso é a “reiteração, marcada pela repetição de uma determinada palavra e de seus cognatos”. E agora, José?
“Você já tá pra lá de Marrakech”
Atendendo ao clamor dos internautas, Caetano mais uma vez se dispôs a organizar o movimento e orientar o carnaval: em mais um vídeo divertido, o músico se atreve a caminhar contra o vento e buscar a resposta certa. Para ele, que reconhece os próprios versos na crônica de Tati Bernardi, é a intertextualidade o recurso de progressão explorado. Sua resposta, contudo, não é consenso.
No portal Brasil Escola, ocorre fenômeno interessante. O site fez parceria com dois grupos educacionais diferentes para elaborar gabaritos extraoficiais do exame (atendendo à sanha de examinandos que não suportariam aguardar por semanas o gabarito oficial do Inep, órgão responsável pela prova). Resultado: cada grupo indicou uma resposta distinta (e, neste momento em que escrevemos, ainda não se sabe qual será o gabarito oficial). Um deles, acompanhando Caetano Veloso, aponta a intertextualidade como o recurso da progressão. Outro, divergindo do poeta baiano, argumenta que há uma “evidente repetição do termo”, no caso, do termo “coisa”.
“Berro por seu berro, pelo seu erro”
Como dissemos acima, estamos cá escrevendo o artigo antes da publicação do gabarito oficial e, embora tenhamos nossa predileção entre as opções, não nos parece razoável penalizar estudantes que marcaram qualquer dessas duas alternativas.
De um lado, temos motivos para defender que a reiteração da palavra “coisa” é fundamental para a progressão temática: de início, a cronista revela o incômodo que sente quando percebe o uso desse termo ao ler um texto seu no jornal. Depois, para estabelecer um contraponto e dar sequência à reflexão, Tati busca mostrar, usando alguns exemplos seus e outros de Caetano Veloso, quanta poesia pode estar contida em “coisa”, “coisinha”, “coisar”. Essa é a coisa. A intertextualidade não contribui por si mesma para a progressão: ela só funciona porque, nos versos citados, também ocorre a palavra “coisa”.
De outro lado – porém, contudo, entretanto –, seria razoável penalizar candidatos que perceberam a sequência de versos caetaneados como algo relevante para a fluência da crônica? Pense naquele candidato que, ao ler “mexe qualquer coisa dentro doida”, ficou extasiado de ter reconhecido a referência, orgulhoso por sentir-se acolhido pela cultura letrada adulta e, assim como Caetano e mesmo alguns professores, percebeu a importância da intertextualidade naquele texto. É justo penalizá-lo?
Ponderando esses dois lados, parece-nos desejável que o Inep reconheça as duas respostas como possíveis, tal como proposto no gabarito publicado pelo portal G1 (o gabarito destaca C como resposta esperada, mas, na resolução do item, propõe-se que se aceitem A e C).
“Quero que você ganhe, que você me apanhe”
Em termos práticos, dada a dificuldade deste item, é bem possível que seu impacto nas notas seja bastante diminuto, talvez nulo. Isso porque, no Enem, as questões não têm valor fixo, seu peso na composição da nota varia de acordo com uma série de fatores. O cálculo obedece à chamada teoria de resposta ao item (TRI), modelo estatístico que busca medir a proficiência dos examinandos com base nos seus acertos. No caso da prova de Linguagens dessa edição de 2024, considerando que as questões foram em sua maioria bem elaboradas, essa exceção não deve prejudicar os estudantes.
Ainda assim, o Inep poderia, num ato de grandeza, colocar a compreensão textual acima da estatística e considerar as duas possibilidades de resposta, ou mesmo anular oficialmente o item, já que a regra é haver apenas uma correta. Seria uma grande coisa.
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