Como assegurar direitos a jovens migrantes e refugiados desacompanhados

Especialistas talam sobre a importância do primeiro guia de proteção a crianças e adolescentes, migrantes e refugiados desacompanhados lançado pela Unicef

 27/05/2024 - Publicado há 1 mês
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Os jovens ainda não possuem a maturidade cognitiva, emocional e biológica para fazer tudo que os adultos fazem – Foto: CAPTAIN RAJU/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0
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Para assegurar os direitos de jovens que cruzam a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, sozinhos ou sem documentação, a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) lançou o primeiro guia de proteção a crianças e adolescentes, migrantes e refugiados desacompanhados. Apesar do contexto, essa é uma situação que atinge diversos jovens ao redor do mundo e expõe os vários problemas e vulnerabilidades que enfrentam através das migrações forçadas.

Victor Del Vecchio – Foto: victordelvecchio/Instagram

Victor Del Vecchio, pesquisador e mestre em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito (FD) da Universidade de São Paulo, afirma que a situação de crianças e adolescentes refugiados é delicada, já que muitos desses jovens tiveram seus estudos interrompidos. Ele ainda explica que a permanência e continuidade escolar é fundamental na vida dos jovens, os quais ainda passam, às vezes, por períodos prolongados longe dos ensinos quando estão inseridos nessas situações.

“Existem relatos de crianças e adolescentes que passaram por processos migratórios e desenvolveram aquilo que é chamado de uma síndrome de resignação. É como se fosse uma doença de saúde mental relacionada a toda essa dificuldade de deixar o seu país em um cenário de perda, de catástrofe, de escassez, e chegar em um outro local diferente, onde você sabe que não está lá por opção, mas porque a situação do seu país natal te obrigou”, acrescenta.

O especialista diz que, cientificamente, os jovens ainda não possuem a maturidade cognitiva, emocional e biológica para fazer tudo que os adultos fazem, mas são postos em situações das quais precisam passar por diversas complexidades. Isso ocorre porque, durante o processo migratório, há muita perda entre os adultos responsáveis e as crianças e adolescentes, ou mesmo óbitos, que forçam os jovens a continuarem ou até iniciarem o processo sozinhos — o que os expõe a diversos riscos existentes durante o caminho migratório.

João Belvel Fernandes Júnior, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que essa situação de vulnerabilidade torna esses migrantes mais suscetíveis a práticas criminosas, como a exploração laboral e sexual, o tráfico internacional de pessoas, além de outras formas de violências. Ele também conta que há um crescimento, a cada ano maior, da frequência do deslocamento internacional, forçado ou não, de crianças e adolescentes, mas com poucos dados, devido à subnotificação e à clandestinidade da movimentação transfronteiriça de jovens sujeitos a práticas criminosas, como o tráfico de pessoas.

“Nesse sentido, são importantes os dados produzidos pela Defensoria Pública da União (DPU), por exemplo, acerca da Missão Pacaraima, de atendimento ao fluxo migratório venezuelano para o Brasil”, comenta. O doutorando afirma que, nos últimos 12 meses, foi informado um total de quase 10 mil atendimentos feitos a crianças e adolescentes, dentre os quais 66% foram com crianças separadas ou desacompanhadas e 36% com jovens indocumentados.

O guia de proteção a crianças e adolescentes

De acordo com Fernandes Júnior, o guia lançado pela Unicef é um documento que visa à exposição e sistematização de uma série de boas práticas de governança e normas, nacionais e internacionais, referentes a diferentes circunstâncias que incidem sobre crianças e adolescentes em situação de deslocamento forçado ou voluntário, através de fronteiras nacionais.

João Gilberto Belvel Fernandes Júnior – Foto: Reprodução/Fapesp

Ele explica que o guia se baseia na experiência obtida por agentes que trabalham com migrantes, no contexto do fluxo migratório de pessoas que saem da Venezuela em direção a outros países da região, como o Brasil. “Nesse sentido, o guia reflete um determinado estado da técnica na governança migratória, já consolidado em locais e junto a agentes especializados e experimentados nas práticas de identificação e garantia de direitos a crianças e adolescentes separados ou desacompanhados, objetivando a disseminação desse conhecimento em outros locais e para outros agentes que carecem dessa informação”, complementa.

Segundo o doutorando, o guia parte do pressuposto de que a situação da governança sobre o tema é desigual regionalmente, já que, por exemplo, quem trabalha junto à Operação Acolhida, a qual atende pessoas que chegam ao Brasil no âmbito do fluxo migratório venezuelano no Norte do País, tem mais experiência do que os agentes públicos de outras regiões, que lidam com a questão migratória de forma esporádica. “A ideia é disseminar a informação e o conhecimento que se produziu nos locais que concentram maior experiência no assunto, a fim de que os direitos dos sujeitos, a que se referem as crianças e adolescentes desacompanhados, possam ser garantidos”, afirma.

Fernandes Júnior informa que a disseminação dessas informações envolve uma série de complexidades, que demandam uma boa formação dos agentes públicos e privados. Dentre elas, existe a situacional, que impede, por exemplo, a assistência necessária por carência de uma rede de apoio familiar ou ilegalidade de documentos; a defasagem institucional, com a ausência de uma agência que centralize, no Brasil, a guarda e a promoção dos direitos dos imigrantes e que fiscalize a sua efetividade; e a cultural, implicada na diferença das práticas, significados, hábitos e da própria legislação referente aos fluxos migratórios.

Sobre o último caso, exemplifica: “Um caso exemplar é o dos indígenas Warao, povo oriundo da Venezuela que foi forçado a abandonar sua terra natal e cruzou a fronteira até o Brasil desde 2012. Chegando ao Brasil, diversos conselhos tutelares locais viram uma forma de exploração na participação de crianças e adolescentes em suas práticas de coleta de dinheiro, adaptação cultural de suas tradições coletivistas à realidade urbana a que foram forçados”.

A respeito das complexidades que envolvem essa questão, Del Vecchio ainda acrescenta a estratégia de interiorização, adotada pelo Brasil com o fluxo venezuelano. Ela indica uma realocação voluntária para outros municípios brasileiros, a fim de garantir uma inclusão socioeconômica, com melhores oportunidades de integração social, ingresso no mercado de trabalho e estabilização no País. Dessa forma, evidencia a necessidade do guia, para auxiliar, com a experiência acumulada em todos os casos regionais e internacionais, as cidades que possuem menor conhecimento no assunto.

Impacto do guia

O especialista ainda comenta: “O impacto atual e futuro nessas crianças e adolescentes é desfrutar de uma acolhida mais adequada pelos desafios que elas apresentam. É muito importante que essas pessoas tenham melhores condições para se integrar e poder construir suas vidas no Brasil, e eu acredito que um guia, que facilite o melhor acolhimento dessa população, é um ótimo passo nesse sentido”.

Apesar disso, Fernandes Júnior explica que o guia é apenas um pequeno passo na direção que o mundo deve seguir para cumprir com os direitos que as leis e os tratados internacionais já garantem aos imigrantes. “A questão é muito mais a de suprir uma necessidade imediata para os órgãos públicos e privados, do que obrigá-los, como deveria ser feito, a dar efetividade aos direitos dessas pessoas. O guia não tem eficácia vinculante, ele não determina como os órgãos públicos e os órgãos privados deverão agir a partir de agora, ele simplesmente indica qual é um bom caminho que esses órgãos podem seguir para dar efetividade aos direitos de imigrantes e de refugiados”, adiciona.

O doutorando afirma que a única função do guia é disseminar informações a respeito do marco legal sobre o tema, mas que pode se tornar ineficaz por causa da falta de uma agência centralizadora. Além do caráter não vinculante, menciona a desinformação da sociedade em relação a quem acessa e manuseia o guia: “Sabemos que nas grandes capitais, onde há uma expressiva presença de imigrantes de diversas origens, esse conhecimento é mais disseminado, mas em cidades pequenas, do interior, que são a maioria das cidades brasileiras e onde expressiva parcela da população migrante está alocada, o interesse pelo acesso a informações como as do guias é absolutamente escasso”.

Conforme Fernandes Junior, isso impacta diretamente a vida de crianças e adolescentes, separados ou desacompanhados, que consigam chegar ao interior, já que as rotas do tráfico ilegal de pessoas não se dão através das passagens de fronteira mais conhecidas e regulamentadas. “Então a eficácia do guia, o impacto que ele vai ter, é de muito difícil apreensão, mas acredito que seja um primeiro passo na direção de uma discussão sobre como podemos dar efetividade aos direitos desses sujeitos no País por via das instituições públicas, que têm esse dever”, finaliza.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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